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O E s p i r i t i s m o
ESPIRITISMO - A TERCEIRA REVELAÇÃO - "O CONSOLADOR PROMETIDO"
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Allan Kardec
Chico Xavier
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I N T R O D U Ç Ã O
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AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA
1
PALAVRAS NOVAS
Para designar coisas novas são
necessárias palavras novas; assim exige a clareza de uma língua, para
evitar a confusão que ocorre quando uma palavra tem múltiplo sentido. As
palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm um significado
bem definido, e acrescentar-lhes uma nova significação para aplicá-las à
Doutrina dos Espíritos seria multiplicar os casos já tão numerosos de
palavras com duplo sentido. De fato, o espiritualismo é o oposto do
materialismo, e qualquer um que acredite ter em si algo além da matéria é
espiritualista, embora isso não queira dizer que creia na existência
dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo material. Em vez das
palavras espiritual, espiritualismo, utilizamos, para designar a crença
nos Espíritos, as palavras espírita e Espiritismo, que lembram a origem e
têm em si a raiz e que, por isso mesmo, têm a vantagem de ser
perfeitamente inteligíveis, reservando à palavra espiritualismo sua
significação própria. Diremos que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo
tem por princípio a relação do mundo material com os Espíritos ou seres
do mundo espiritual. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas ou, se
quiserem, os espiritistas. Como especialidade, o Livro dos Espíritos
contém a Doutrina Espírita; como generalidade, liga-se ao espiritualismo
num dos seus aspectos. Esta é a razão por que traz, no início de seu
título, as palavras: “filosofia espiritualista”.
2
A alma
Há outra palavra sobre a qual devemos
igualmente nos entender, por constituir em si um dos fechos de abóbada2 ,
isto é, a sustentação de toda a doutrina moral, e que se tornou objeto
de muitas controvér- 1 - É extraordinária a clareza com que Allan Kardec
se refere à alma como ponto de partida para a discussão em torno de
assunto tão relevante. Poderia ter dito que a alma é a base; mas, não.
Diz que é o fecho de abóbada, a cúpula. O cimo, o mais alto, o mais
importante, sobre o qual se deve estruturar tudo (Nota do Editor). 2 -
Fecho de abóbada: Fecho de abóbada: pedra angular e principal de uma
abóbada ou arco, na qual se sustenta toda a estrutura e as cargas
externas. Neste caso: a questão primordial, a mais importante (N. E.)
sias por falta de um significado que a
defina com precisão determinada. É a palavra alma. A divergência de
opiniões sobre a natureza da alma resulta da aplicação particular que
cada um faz dessa palavra. Uma língua perfeita, em que cada ideia
tivesse sua representação por um termo próprio, evitaria muitas
discussões; com uma palavra para cada coisa, todos se entenderiam.
Segundo alguns, a alma é o princípio da vida material orgânica, não tem
existência própria e termina com a vida: é o materialismo puro. É nesse
sentido e por comparação que se diz de um instrumento rachado quando não
emite mais som: não tem alma. De acordo com essa opinião, a alma seria
um efeito e não uma causa. Outros pensam que a alma é o princípio da
inteligência, agente universal do qual cada ser absorve uma porção. De
acordo com esse pensamento, haveria para todo o universo apenas uma
única alma que distribui suas centelhas entre os diversos seres
inteligentes durante a vida. Após a sua morte, cada centelha retornaria à
fonte comum, onde se misturaria no todo, como as águas dos riachos e
dos rios retornam ao mar de onde saíram. Essa opinião difere da anterior
apenas em que, nessa hipótese, há no corpo mais do que a matéria e que
resta alguma coisa depois da morte; mas é quase como se não restasse
nada, uma vez que, incorporando-se ao todo de onde veio, perde a
individualidade e, assim, não teríamos mais consciência de nós mesmos.
De acordo com essa opinião, a alma universal seria Deus e cada ser, uma
porção da divindade. Essa é uma variante do panteísmo3 . E por fim,
segundo outros, a alma é um ser moral, distinto e independente da
matéria, que conserva sua individualidade após a morte. Essa concepção
é, indiscutivelmente, a mais generalizada, visto que, sob um nome ou
outro, a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra como crença
instintiva e independentemente de qualquer ensinamento, entre todos os
povos, seja qual for o grau de sua civilização. Essa doutrina, segundo a
qual a alma é a causa e não o efeito, é a dos espiritualistas. Sem
discutir o mérito dessas opiniões, considerando apenas o lado
linguístico da questão, diremos que as três aplicações da palavra alma
constituem três ideias distintas e que, para serem claramente expressas,
cada uma precisaria de um termo diferente. A palavra tem, portanto, uma
tríplice significação e cada uma tem razão em seu ponto de vista, na
definição que lhe dá. O problema é a língua ter apenas uma palavra para
designar três ideias. Para evitar qualquer equívoco, seria preciso
aplicar o significado da palavra alma a uma dessas três ideias. Escolher
qualquer uma é indiferente, é uma questão de ajuste 3 - Panteísmo:
Panteísmo: doutrina filosófica segundo a qual só Deus é real. Tudo o que
existe é a manifestação de Deus, que por sua vez é a soma de tudo o que
existe (N. E.). 11 de opiniões; o importante é que nos entendamos.
Acreditamos mais lógico tomá-la na sua concepção mais comum; é por isso
que denominamos ALMA o ser imaterial e individual que existe em nós e
que sobrevive ao corpo. Ainda que esse ser não existisse e fosse apenas
um produto da imaginação, seria preciso assim mesmo um termo para
designá-lo. Na falta de uma palavra especial para cada uma das outras
duas ideias, denominamos princípio vital o princípio da vida material e
orgânica, qualquer que lhe seja a origem, e que é comum a todos os seres
vivos, desde as plantas até o homem. Podendo existir vida sem depender
da capacidade de pensar, o princípio vital é assim uma propriedade
distinta e autônoma 4 . A palavra vitalidade não daria a mesma ideia.
Para alguns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito
que se produz quando a matéria se encontra em determinadas
circunstâncias. Segundo outros, e esta é a ideia mais comum, ele se
encontra num fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada
ser absorve e assimila uma parte durante a vida, como vemos os corpos
inertes absorverem a luz. Este seria, então, o fluido vital, que,
segundo algumas opiniões, seria o fluido elétrico animalizado, designado
também sob os nomes de fluido magnético, fluido nervoso, etc. O que
quer que ele seja, há um fato que não se poderá contestar, porque é
resultante da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma força
íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força dure; que a
vida material é comum a todos os seres orgânicos e é independente da
inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são
capacidades próprias de algumas espécies orgânicas; e que, enfim, entre
as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento, há uma
que é dotada de um senso moral especial que lhe dá uma incontestável
superioridade sobre as outras: é a espécie humana. Concebe-se assim que
nem o materialismo nem o panteísmo excluem em suas teorias a noção de
alma por causa do significado abrangente que se lhe pode atribuir. Mesmo
o espiritualista pode entender muito bem a alma segundo uma das duas
primeiras definições, sem reduzir o ser imaterial distinto ao qual dará
um nome qualquer. Assim, a palavra alma não representa uma ideia única; é
um Proteu5 que cada um acomoda a seu gosto, daí a fonte de tantas
disputas intermináveis. Ao se utilizar da palavra alma em qualquer dos
três casos, teríamos uma ideia clara ao lhe acrescentar um qualificativo
que especificasse o ponto de vista a que se refere, ou a aplicação que
se faz dela. 4 - Autônoma: Autônoma: que se realiza sem a intervenção de
agentes externos; independente, livre (N. E.). 5 - Proteu: aquele que
muda constantemente de opinião ou de sistema (N. E.)
Seria, então, uma palavra genérica,
representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da
inteligência e do sentido moral, mas que se diferenciaria por um
atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue quando lhe
acrescentamos as palavras hidrogênio, oxigênio ou azoto. Assim é que
deveríamos compreender a alma vital para designar o princípio da vida
material; a alma intelectual para o princípio da inteligência que se
expressa enquanto há vida e a alma espírita para o princípio de nossa
individualidade após a morte. Como se vê, tudo isso é uma questão de
palavras, mas uma questão muito importante para entender. De acordo com
isso, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas,
animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos
homens; e a alma espírita, apenas do homem. Acreditamos dever insistir
nessas explicações, porque a Doutrina Espírita baseia-se naturalmente na
existência em nós de um ser independente da matéria e que sobrevive à
morte do corpo. Como a palavra alma deve aparecer frequentemente no
decorrer desta obra, é importante saber o exato sentido que lhe damos, a
fim de evitar qualquer equívoco. Vamos, agora, ao ponto principal desta
instrução preliminar.
3
A história
A A Doutrina Espírita, como toda idéia
nova, tem seus adeptos e seus opositores. Vamos tentar responder a
algumas das objeções, examinando o valor dos motivos em que se apoiam,
sem termos, entretanto, a pretensão de convencer a todos, porque há
pessoas que acreditam que a luz tenha sido feita exclusivamente para
elas. Dirigimo-nos às pessoas de boa-fé, sem idéias preconcebidas ou
obstinadas e sinceramente desejosas de se instruir, e demonstraremos que
a maior parte das objeções à Doutrina provém de uma observação
incompleta dos fatos e de um julgamento feito com muita leviandade e
precipitação. Lembremos primeiramente e em poucas palavras a série
progressiva dos fenômenos que deram origem à Doutrina Espírita. O
primeiro fato observado foi o de que diversos objetos se movimentavam;
de maneira geral, chamaram-no de mesas girantes ou dança das mesas. Esse
fenômeno, observado primeiramente nos Estados Unidos, ou melhor, que se
repetiu e foi anunciado naquele país, porque a história prova que
remonta à mais alta Antiguidade, se produziu acompanhado de
circunstâncias estranhas, como barulhos anormais, pancadas sem causa
aparente ou conhecida. Dos Estados Unidos se propagou rapidamente pela
Europa e em seguida por todo o mundo. A princípio houve muita
incredulidade, mas a multiplicidade das experiências não mais permitiu
duvidar da realidade.
Se o fenômeno tivesse ficado restrito ao
movimento dos objetos materiais, poderia ser explicado por uma causa
puramente física. Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da
natureza e todas as propriedades daqueles que conhecemos; a
eletricidade, aliás, multiplica a cada dia ao infinito os recursos que
ela proporciona ao homem e parece destinada6 a iluminar a ciência com
uma nova luz. Não haveria, portanto, nada de impossível se a
eletricidade, modificada por algum fator ou qualquer outro agente
desconhecido, fosse a causa desse movimento. A reunião de muitas
pessoas, aumentando o poder da ação, parecia apoiar essa teoria, porque
se podia considerar todo o conjunto como uma pilha múltipla cujo
potencial estava em razão do número de elementos. O movimento circular
não apresentaria nada de extraordinário, está na natureza, todos os
astros se movem em círculos; poderíamos ter um pequeno reflexo do
movimento geral do universo, ou melhor, uma causa até então desconhecida
poderia produzir acidentalmente, com pequenos objetos e em determinadas
circunstâncias, uma corrente parecida à que faz girar os mundos. Ocorre
que o movimento nem sempre era circular; muitas vezes era brusco,
desordenado; outras vezes o objeto era violentamente sacudido,
derrubado, levado numa direção qualquer e, contrariamente a todas as
leis da estática7 , levantado do chão e mantido no espaço. Ainda não
havia nada nesses fatos que não pudesse ser explicado pelo poder de um
agente físico invisível. Não vemos a eletricidade derrubar edifícios,
destruir árvores, lançar ao longe os mais pesados corpos, atraí-los ou
repeli-los? Os ruídos anormais, as pancadas, supondo-se que não fossem
um dos efeitos normais da dilatação da madeira ou de qualquer outra
causa acidental, poderiam muito bem ser produzidos pelo acúmulo de um
fluido oculto: a eletricidade não produz os ruídos mais violentos8 ? Até
aí, como se vê, tudo podia ocorrer no domínio dos fatos puramente
físicos e fisiológicos. Sem sair desse círculo de idéias, havia matéria
para estudos sérios e dignos de fixar a atenção dos sábios. Por que isso
não aconteceu? É lamentável dizer, mas isso se prende a causas que
provam, entre mil fatos semelhantes, a leviandade do espírito humano.
Por se tratar de um objeto comum, no caso a mesa que serviu de base às
primeiras experiências, provocou a estranheza e a indiferença dos
sábios. Que influência, muitas vezes, não tem uma palavra sobre as
coisas mais sérias? Sem considerar que o movimento- 6 - Kardec escreveu
“parece destinada” porque referia-se aos primeiros inventos relacionados
à eletricidade, como a lâmpada, que estava, na época, em pesquisas e
ainda era desconhecida (N. E.). 7 - Estática: Estática: ciência que
estuda o equilíbrio dos corpos sob a ação das forças (N. E.). 8 - Os
trechos “não vemos a eletricidade derrubar edifícios...” e “a
eletricidade não produz os ruídos mais violentos” referem-se às
descargas elétricas provocadas pelos relâmpagos, trovões e raios (N.
E.).
poderia ser dado a um outro objeto
qualquer, a idéia das mesas prevaleceu, sem dúvida, porque esse era o
objeto mais cômodo e ao redor de uma mesa as pessoas se sentam com mais
naturalidade do que ao redor de qualquer outro móvel. Portanto, os
homens de inteligência superior são, algumas vezes, tão pretensiosos que
não seria nada impossível considerar que inteligências de elite tenham
acreditado que se rebaixariam caso se ocupassem daquilo que foi
convencionado chamar a dança das mesas. É mesmo provável que se o fenô-
meno observado por Galvani9 o tivesse sido por homens comuns e ficasse
conhecido por um nome simples, ainda estaria rebaixado ao mesmo plano da
varinha mágica. Qual é, de fato, o sábio que não teria julgado uma
indignidade se ocupar da dança das rãs10? Entretanto, alguns sábios,
bastante modestos por admitir que a natureza poderia muito bem não lhes
ter dito sua última palavra, quiseram ver, para tranquilizar as suas
consciências. Mas aconteceu que o fenômeno nem sempre correspondeu à
expectativa que tinham, e como o fato não se produziu conforme a sua
vontade e segundo seu modo de experimentação, concluíram pela negativa.
Apesar do que decretaram, as mesas continuaram a girar, e podemos dizer
como Galileu: “Todavia elas se movem!” Diremos mais: “É que os fatos se
multiplicaram de tal modo que hoje têm direito à cidadania e que não se
trata senão de achar-lhes uma explicação racional”. Pode-se deduzir algo
contra a realidade de um fenômeno pelo fato de ele não se produzir de
um modo sempre idêntico, atendendo à vontade e às exigências do
observador? Acaso não estão os fenômenos da eletricidade e da química
também subordinados a certas condições? Deve-se negá-los porque não se
produzem fora dessas condições? Portanto, não há nada de surpreendente
em que o fenômeno do movimento dos objetos pelo fluido humano também
tenha suas condições para se realizar e deixe de se produzir quando o
observador, colocando-se em seu próprio ponto de vista, pretende fazer
com que ele se realize conforme o seu capricho ou submetê-lo às leis dos
fenômenos conhecidos, sem considerar que para os fatos novos pode e
deve haver novas leis? Portanto, para conhecer essas leis é preciso
estudar as circunstâncias em que os fatos se produzem, e esse estudo só
pode ser fruto de uma observação perseverante, atenta e às vezes muito
longa. Mas algumas pessoas alegam que muitas vezes há fraudes evidentes.
Em primeiro lugar, devemos perguntar se estão bem certas disso e se não
tomaram por fraudes os efeitos que não conseguiram entender, como o
camponês que confundiu um sábio professor de física realizando 9 - Luigi
Galvani: Luigi Galvani: médico e físico italiano (N. E.). 10 - Dança
das rãs: Dança das rãs: Galvani notou que as rãs dissecadas, expostas em
pedaços sobre uma superfície de ferro, davam pulos. Dessa observação a
ciência caminhou para o conhecimento do fluido nervoso e mais tarde da
pilha elétrica (N. E.).
experiências como um mágico habilidoso.
Mas, mesmo supondo que a fraude pudesse acontecer algumas vezes, seria
razão para negar o fato? Deve-se negar a física porque há ilusionistas e
mágicos que dão a si mesmo o título de físicos? Aliás, é preciso levar
em conta o caráter das pessoas e o interesse que podiam ter em enganar.
Então seria um gracejo? Admite-se que uma pessoa possa se divertir por
um instante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão
cansativa para o mistificador11 quanto para o mistificado. De resto,
numa mistificação que se propaga de um lado a outro do mundo e entre
pessoas mais sérias, mais veneráveis e mais esclarecidas, haveria algo
tão extraordinário quanto o próprio fenômeno.
4
O método
Se os fenômenos de que nos ocupamos
ficassem restritos ao movimento dos objetos, estariam dentro, como
dissemos, do domínio das ciências físicas. Mas não foi isso que
aconteceu: estavam destinados a nos colocar no caminho de fatos de uma
natureza estranha. Acreditou-se descobrir, não sabemos por iniciativa de
quem, que a impulsão dada aos objetos não era somente produto de uma
força mecânica cega, mas que havia nesse movimento a intervenção de uma
causa inteligente. Esse caminho, uma vez aberto, revelou um campo
totalmente novo de observações: era o véu levantado de sobre muitos
mistérios. Há, de fato, um poder inteligente? Essa é a questão. Se esse
poder existe, qual é ele, qual é a sua natureza, sua origem? Ele está
acima da humanidade? Essas são as outras questões decorrentes da
primeira. As primeiras manifestações inteligentes aconteceram por meio
de mesas se levantando e batendo, com um dos pés, um número determinado
de pancadas e respondendo desse modo sim ou não, segundo fora
convencionado, a uma questão proposta. Até aí, não havia nada de
convincente para os céticos12, porque se podia acreditar num efeito do
acaso. Obtiveram-se, em seguida, respostas mais desenvolvidas por meio
das letras do alfabeto: o objeto móvel, batendo um número de vezes
correspondente ao número de ordem de cada letra, chegava a formular
palavras e frases respondendo às perguntas propostas. A precisão das
respostas e sua correlação com a pergunta causaram espanto. O ser
misterioso que assim respondia, quando interrogado sobre sua natureza,
declarou que era um Espírito ou gênio, deu o seu nome e forneceu
diversas informações a seu respeito. Aqui há um fato muito importante
que convém ressaltar: ninguém havia imaginado os Espíritos como um meio
de explicar o fenômeno. Foi o próprio fenômeno que se revelou. Muitas
vezes, nas ciências exatas, formulam-se hipóteses para se ter uma base
de raciocínio, mas isso não ocorreu nesse caso. Esse meio de comunicação
era demorado e incômodo. O Espírito, e isso ainda é uma circunstância
digna de nota, indicou um outro processo. Foi um desses seres
espirituais que ensinou a prender um lápis a um pequeno cesto ou a um
outro objeto. Esse cesto, colocado sobre uma folha de papel, foi posto
em movimento pelo mesmo poder oculto que fazia mover as mesas; mas, em
vez de um simples movimento regular, o lápis traçou, por si mesmo,
letras formando palavras, frases e discursos inteiros de muitas páginas,
tratando das mais altas questões da filosofia, da moral, da metafísica,
da psicologia, etc., e isso com tanta rapidez como se fosse escrito à
mão. Esse conselho foi dado simultaneamente nos Estados Unidos, na
França e em diversos países. Eis os termos em que foi dado em Paris, no
dia 10 de junho de 1853, a um dos mais fervorosos adeptos da Doutrina,
que desde 1849 se ocupava com a evocação dos Espíritos: “Vá pegar no
quarto ao lado o pequeno cesto; prenda-lhe um lápis, coloque-o sobre um
papel e ponha os dedos sobre a borda”. Alguns instantes depois, o cesto
se pôs em movimento, e o lápis escreveu esta frase muito claramente: “O
que eu vos digo aqui, eu vos proíbo expressamente de o dizer a alguém. A
próxima vez que eu escrever, escreverei melhor”. O objeto ao qual se
adaptava o lápis era apenas um instrumento, sua natureza e forma não
tinham importância. Procurou-se sua disposição mais cômoda, por isso
muitas pessoas fazem uso de uma pequena prancheta.
O cesto ou a prancheta apenas podem ser
colocados em movimento sob a influência de algumas pessoas dotadas, para
esse fim, de um poder especial e que são designadas como médiuns, isto
é, intermediários entre os Espíritos e os homens. As condições de que se
origina esse poder especial têm causas ao mesmo tempo físicas e morais
ainda desconhecidas, visto que se encontram médiuns de todas as idades,
de ambos os sexos e em todos os graus de desenvolvimento intelectual.
Essa faculdade13, esse dom, se desenvolve pelo exercício.
5
O SURGIMENTO DA PSICOGRAFIA
Mais tarde se reconheceu que o cesto e a
prancheta, na realidade, eram apenas um substituto da mão, e o médium,
pegando diretamente o lápis, pôs-se a escrever por um impulso
involuntário e quase febril.
Dessa forma, as comunicações tornaram-se
mais rápidas, fáceis e completas. Hoje é o meio mais empregado, tanto é
que o número de pessoas dotadas dessa aptidão é muito grande e
multiplica-se todos os dias. A experiência fez conhecer outras
variedades da faculdade mediúnica e constatou-se que as comunicações
poderiam igualmente ter lugar pela fala, pela audição, pela visão, pelo
tato, etc. e até mesmo pela escrita direta dos Espíritos, ou seja, sem a
interferência da mão do médium nem do lápis. Comprovado o fato, era
preciso estabelecer e demonstrar um ponto essencial: qual era o papel do
médium nas respostas e a parte que poderia nelas tomar, mecânica e
moralmente. Duas circunstâncias fundamentais, que não poderiam escapar a
um observador atento, podem resolver a questão. A primeira é a maneira
pela qual o cesto se movia sob influência do médium, somente pela
imposição dos dedos sobre a borda. O exame demonstra a impossibilidade
de que o médium pudesse lhe impor qualquer direção. Essa impossibilidade
torna-se mais evidente quando duas ou três pessoas colocam ao mesmo
tempo as pontas dos dedos nas bordas de um mesmo cesto. Seria preciso
uma concordância de movimentos entre elas verdadeiramente fenomenal, e
ainda seria preciso mais, a concordância de seus pensamentos para que
pudessem se entender quanto à resposta a dar à questão formulada. Um
outro fato, não menos importante, ainda vem se juntar à dificuldade: é a
mudança radical que se constata na caligrafia, conforme o Espírito que
se manifesta; porém, cada vez que o mesmo Espírito retorna, sua escrita
se reproduz. Seria preciso, portanto, que o médium fosse capaz de mudar
sua própria escrita de 20 maneiras diferentes e, principalmente, que
pudesse se lembrar da que pertence a este ou àquele Espírito. A segunda
circunstância resulta da própria natureza das respostas que são, na
maioria, principalmente quando se trata de questões abstratas14 ou
científicas, notoriamente fora dos conhecimentos e algumas vezes além da
capacidade intelectual do médium, que não tem consciência do que
escreve sob influência do Espírito. Com freqüência, o médium não ouve ou
não compreende a questão proposta, uma vez que pode ser feita numa
língua que lhe é estranha, ou mesmo mentalmente; e a resposta pode ser
dada por escrito ou falada nessa mesma língua. Enfim, acontece que
muitas vezes o cesto escreve espontaneamente, sem pergunta prévia, sobre
um assunto qualquer e inteiramente inesperado. Essas respostas, em
alguns casos, têm uma tal marca de sabedoria, profundidade e
oportunidade, revelam pensamentos tão elevados, tão sublimes, que
somente podem proceder de uma inteligência superior, fundamentada na
mais pura moralidade. Outras vezes, são tão levianas, tão fúteis e até
mesmo tão vulgares que a razão se recusa a acreditar que possam proceder
de uma mesma fonte. Essa diversidade da linguagem e dos ensinamentos
somente se pode explicar pela diversidade das inteligências que se
manifestam. Estarão essas inteligências na humanidade ou fora dela? Esse
é o ponto a esclarecer, para o qual se encontrará a explicação completa
nesta obra, exatamente como foi revelada pelos próprios Espíritos. Eis
que os efeitos ou fenômenos evidentes e incontestáveis que se produzem
fora do círculo habitual de nossas observações não se processam
misteriosamente, mas sim à luz do dia, e todos podem vê-los e
constatá-los, porque não são privilégio de um único indivíduo, uma vez
que milhares de pessoas os repetem todos os dias à vontade. Esses
efeitos têm necessariamente uma causa, e a partir do momento que revelam
a ação de uma inteligência e de uma vontade saem do domínio puramente
físico. Muitas teorias foram anunciadas a esse respeito. Elas serão
examinadas em seguida e veremos se podem fornecer a razão de todos os
fatos que se produzem. Admitamos, em princípio, antes de chegar até lá, a
existência de seres distintos da humanidade, uma vez que esta é a
explicação fornecida pelas inteligências que se revelam, e vejamos o que
nos dizem.
6
RESUMO DOS PRINCIPAIS PONTOS DA DOUTRINA ESPÍRITA
Os seres que se comunicam designam-se, a
si mesmos, como o dissemos, sob o nome de Espíritos ou de Gênios, tendo
pertencido, pelo menos alguns, a homens que viveram na Terra. Eles
constituem o mundo espiritual, como nós constituímos, durante nossa
vida, o mundo corporal. Resumimos assim, em poucas palavras, os pontos
mais importantes da Doutrina que eles nos transmitiram, a fim de
respondermos mais facilmente a algumas objeções. “Deus é eterno,
imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom.”
“Criou o universo, que compreende todos os seres animados e inanimados,
materiais e imateriais.” “Os seres materiais constituem o mundo visível
ou corporal; os seres imateriais, o mundo invisível ou espírita, ou
seja, dos Espíritos.” “O mundo espírita é o mundo normal, primitivo,
eterno, preexistindo e sobrevivendo a tudo.” “O mundo corporal é apenas
secundário, poderia deixar de existir ou nunca ter existido, sem alterar
a essência do mundo espírita.” “Os Espíritos vestem temporariamente um
corpo material perecível, cuja destruição pela morte lhes devolve a
liberdade.”
“Entre as diferentes espécies de seres
corporais, Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos
Espíritos que atingiram um certo grau de desenvolvimento, o que lhe dá a
superioridade moral e intelectual sobre os outros.” “A alma é um
Espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório.” “Há três
coisas no homem: 1ª) o corpo ou ser material semelhante ao dos animais e
animado pelo mesmo princípio vital; 2ª) a alma ou ser imaterial,
Espírito encarnado no corpo; 3ª) o laço que une a alma ao corpo,
princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. “Assim, o homem
tem duas naturezas: pelo corpo participa da natureza dos animais, dos
quais tem os instintos; pela alma participa da natureza dos Espíritos.”
“O laço ou perispírito que une o corpo e o Espírito é uma espécie de
envoltório semi-material. A morte é a destruição do envoltório mais
grosseiro. “O Espírito conserva o segundo, que constitui para ele
um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, mas que pode
tornar-se algumas vezes visível e mesmo tangível, como ocorre no
fenômeno das aparições.” “O Espírito não é, portanto, um ser abstrato,
indefinido, que somente o pensamento pode conceber; é um ser real,
definido, que, em alguns casos, pode ser reconhecido, avaliado pelos
sentidos da visão, da audi- ção e do tato.” “Os Espíritos pertencem a
diferentes classes e não são iguais em poder, inteligência, saber e nem
em moralidade. Os da primeira ordem são os Espíritos superiores, que se
distinguem dos outros por sua perfeição, seus conhecimentos, sua
proximidade de Deus, pela pureza de seus sentimentos e seu amor ao bem:
são os anjos ou Espíritos puros. Os das outras classes não atingiram
ainda essa perfeição; os das classes inferiores são inclinados à maioria
das nossas paixões: ao ódio, à inveja, ao ciúme, ao orgulho, etc. Eles
se satisfazem no mal; entre eles há os que não são nem muito bons nem
muito maus, são mais trapaceiros e importunos do que maus, a malícia e a
irresponsabilidade parecem ser sua diversão: são os Espíritos
desajuizados ou levianos.” “Os Espíritos não pertencem perpetuamente à
mesma ordem. Todos melhoram ao passar pelos diferentes graus da
hierarquia espí- rita. Esse progresso ocorre pela encarnação, que é
imposta a alguns como expiação15 e a outros como missão. A vida material
é uma prova que devem suportar várias vezes, até que tenham atingido a
perfeição absoluta. É uma espécie de exame severo ou de depuração, de
onde saem mais ou menos purificados.”
“Ao deixar o corpo, a alma retorna ao
mundo dos Espíritos, de onde havia saído, para recomeçar uma nova
existência material, depois de um período mais ou menos longo, durante o
qual permanece no estado de Espírito errante16.” “O Espírito deve
passar por várias encarnações. Disso resulta que todos nós tivemos
muitas existências e que ainda teremos outras que, aos poucos, nos
aperfeiçoarão, seja na Terra, seja em outros mundos.” “A encarnação dos
Espíritos se dá sempre na espécie humana; seria um erro acreditar que a
alma ou o Espírito pudesse encarnar no corpo de um animal*.” “As
diferentes existências corporais do Espírito são sempre progressivas e o
Espírito nunca retrocede, mas o tempo necessário para progredir depende
dos esforços de cada um para chegar à perfeição.” “As qualidades da
alma17, isto é, as qualidades morais, são as do Espírito que está
encarnado em nós; desse modo, o homem de bem é a encarnação do bom
Espírito, e o homem perverso a de um Espírito impuro.” “A alma tinha sua
individualidade antes de sua encarnação e a conserva depois que se
separa do corpo.” “Na sua reentrada no mundo dos Espíritos, a alma
reencontra todos aqueles que conheceu na Terra e todas as suas
existências anteriores desfilam na sua memória com a lembrança de todo o
bem e de todo o mal que fez.” “O Espírito, quando encarnado, está sob a
influência da matéria. O homem que supera essa influência pela elevação
e pela depuração de sua alma aproxima-se dos bons Espíritos, com os
quais estará um dia. Aquele que se deixa dominar pelas más paixões e
coloca todas as alegrias da sua existência na satisfação dos apetites
grosseiros se aproxima dos Espíritos impuros, porque nele predomina a
natureza animal.” “Os Espíritos encarnados habitam os diferentes globos
do universo.” “Os Espíritos não encarnados ou errantes não ocupam uma
região determinada e localizada, estão por todos os lugares no espaço e
ao nosso lado, vendo-nos numa presença contínua. É toda uma população
invisível que se agita ao nosso redor.” “Os Espíritos exercem sobre o
mundo moral e o mundo físico uma ação incessante. Eles agem sobre a
matéria e o pensamento e constituem uma das forças da natureza, causa
determinante de uma multidão de fenômenos até agora inexplicável ou mal
explicada e que apenas encontram esclarecimento racional no
Espiritismo.” “As relações dos Espíritos com os homens são constantes.
Os bons Espíritos nos atraem e estimulam para o bem, sustentando-nos nas
provações da vida e ajudando-nos a suportá-las com coragem e
resignação. Os maus nos sugestionam para o mal; é um prazer para eles
nos ver fracassar e nos assemelharmos a eles.” “As comunicações dos
Espíritos com os homens são ocultas ou ostensivas. As comunicações
ocultas ocorrem pela influência boa ou má que exercem sobre nós sem o
sabermos; cabe ao nosso julgamento discernir as boas das más
inspirações. As comunicações ostensivas ocorrem por meio da escrita, da
palavra ou outras manifestações materiais, muitas vezes por médiuns que
lhes servem de instrumento.” “Os Espíritos se manifestam espontaneamente
ou por evocação. Podem-se evocar todos os Espíritos, tanto aqueles que
animaram homens simples como os de personagens mais ilustres, qualquer
que seja a época em que viveram, os de nossos parentes, amigos ou
inimigos, e com isso obter, por meio das comunicações escritas ou
verbais, conselhos, ensinamentos sobre sua situação depois da morte,
seus pensamentos a nosso respeito, assim como as revelações que lhes são
permitidas nos fazer.” “Os Espíritos são atraídos em razão de sua
simpatia pela natureza moral do ambiente em que são evocados. Os
Espíritos superiores se satisfazem com reuniões sérias em que dominam o
amor pelo bem e o desejo sincero de receber instrução e aperfeiçoamento.
A sua presença afasta os Espíritos inferiores que, caso contrário,
encontrariam aí livre acesso e poderiam agir com toda a liberdade entre
as pessoas levianas ou guiadas somente pela curiosidade. Em todos os
lugares onde se encontram maus instintos, longe de obter bons conselhos,
ensinamentos úteis, devem-se esperar apenas futilidades, mentiras,
gracejos de mau gosto ou mistificações, visto que, freqüentemente, eles
tomam emprestado nomes veneráveis para melhor induzir ao erro.”
“Distinguir os bons dos maus Espíritos é extremamente fácil. A linguagem
dos Espíritos superiores é constantemente digna, nobre, repleta da mais
alta moralidade, livre de toda paixão inferior; seus conselhos exaltam a
sabedoria mais pura e sempre têm por objetivo nosso aperfeiçoamento e o
bem da humanidade. A linguagem dos Espíritos inferiores, ao contrário, é
inconseqüente, muitas vezes banal e até mesmo grosseira; se por vezes
dizem coisas boas e verdadeiras, dizem na maioria das vezes coisas
falsas e absurdas por malícia ou por ignorância. Zombam da credulidade e
se divertem à custa daqueles que os interrogam ao incentivar a vaidade,
alimentando seus desejos com falsas esperanças. Em resumo, as
comunicações sérias, no verdadeiro sentido da palavra, apenas acontecem
nos centros sérios, cujos membros estão unidos por uma íntima comunhão
de pensamentos, visando ao bem”.
“A moral dos Espíritos superiores se
resume, como a de Cristo, neste ensinamento evangélico: ‘Fazer aos
outros o que quereríamos que os outros nos fizessem’, ou seja, fazer o
bem e não o mal. O homem encontra neste princípio a regra universal de
conduta, mesmo para as suas menores ações.” “Eles nos ensinam que o
egoísmo, o orgulho e a sensualidade são paixões que nos aproximam da
natureza animal, prendendo-nos à matéria; que o homem que se desliga da
matéria já neste mundo, desprezando as futilidades mundanas e amando o
próximo, se aproxima da natureza espiritual; que cada um de nós deve se
tornar útil segundo as capacidades e os meios que Deus nos colocou nas
mãos para nos provar; que o forte e o poderoso devem apoio e proteção ao
fraco, pois aquele que abusa de sua força e de seu poder para oprimir
seu semelhante transgride a Lei de Deus. Enfim, ensinam que no mundo dos
Espíritos nada pode ser escondido, o hipócrita será desmascarado e
todas as suas baixezas descobertas; que a presença inevitável, em todos
os instantes, daqueles com quem agimos mal é um dos castigos que nos
estão reservados; que ao estado de inferioridade e de superioridade dos
Espíritos equivalem punições e prazeres que desconhecemos na Terra.”
“Mas também nos ensinam que não há faltas imperdoáveis que não possam
ser apagadas pela expiação. Pela reencarnação, nas sucessivas
existências, mediante os seus esforços e desejos de melhoria no caminho
do progresso, o homem avança sempre e alcança a perfeição, que é a sua
destinação final.” Este é o resumo da Doutrina Espírita, resultante do
ensinamento dado pelos Espíritos superiores. Vejamos agora as objeções
que lhe fazem.
7
A DOUTRINA ESPÍRITA E A CIÊNCIA
Para muitas pessoas, a oposição de
cientistas, se não é uma prova, é pelo menos uma forte opinião
contrária. Não somos dos que se levantam contra os sábios, porque não
queremos que digam que nós os insultamos; nós os temos, ao contrário, em
grande estima e ficaríamos muito honrados de estar entre eles. Porém,
suas opiniões não podem ser em todas as circunstâncias um julgamento
irrevogável. Quando a ciência sai da observação material dos fatos e
procura apreciar e explicar esses fatos, o campo está aberto às
hipóteses e às suposições; cada um defende seu pequeno sistema na
intenção de fazê-lo prevalecer e o sustenta com firmeza. Não vemos todos
os dias as opiniões mais divergentes alternativamente acatadas e
rejeitadas, repelidas como erros absurdos, ou proclamadas como verdades
incontestáveis? Os fatos, eis o verdadeiro critério de nossos
julgamentos, o argumento incontestável. Na ausência de fatos, a dúvida é
opinião sábia e prudente. Para as coisas de conhecimento de todos, a
opinião dos sábios deve ser respeitada, e com razão, porque sabem mais e
melhor do que a maioria das pessoas comuns; mas na questão de novos
princípios, de coisas desconhecidas, sua maneira de ver é sempre e
apenas uma suposição, porque não estão mais do que quaisquer outros
livres de preconceitos. Direi até mesmo que o sábio talvez tenha mais
preconceitos, porque uma tendência natural leva-o a submeter tudo ao
ponto de vista em que se especializou: o matemático apenas vê a prova
numa demonstração algébrica, o químico relaciona tudo à ação dos
elementos, etc. Todo homem que se dedica a uma especialização subordina a
ela todas as suas ideias. Fora do seu campo, muitas vezes se perderá,
por querer submeter tudo ao seu modo de ver; é uma consequência da
fraqueza humana. Consultarei, de bom grado e com toda a confiança, um
químico sobre uma questão de análise de uma substância, um físico sobre a
energia elétrica, um mecânico sobre a força motriz; mas eles me
permitirão, sem que isso desmereça o respeito que sua especialização
merece, considerar suas opiniões negativas sobre o Espiritismo idênticas
ao conceito de um arquiteto sobre uma questão de música. As ciências
gerais se apoiam nas propriedades da matéria, que pode ser manipulada e
experimentada à vontade; os fenômenos espíritas se fundamentam na ação
das inteligências que têm vontade própria e nos provam a cada instante
que não estão à disposição dos nossos caprichos. As observações, em
vista disso, não podem ser feitas da mesma maneira; requerem condições
diferenciadas, especiais e um outro ponto de partida. Querer submetê-las
aos nossos processos comuns de investigação é querer estabelecer e
forçar semelhanças que não existem. A ciência propriamente dita, como
ciência, é incompetente para pronunciar-se na questão do Espiritismo;
ela não tem que se ocupar com isso, e qualquer que seja seu julgamento,
favorável ou não, não tem nenhuma importância. O Espiritismo pode vir a
ser uma convicção pessoal que os sábios possam ter como indivíduos, sem
considerar a sua qualidade de sábios, isto é, a sua especialização e o
seu saber científico. Contudo, querer conceder a questão à ciência
equivaleria a decidir a existência da alma por uma assembleia de físicos
ou astrônomos. De fato, o Espiritismo está inteiramente fundamentado na
existência da alma e na sua situação depois da morte; contudo, é
extremamente ilógico pensar que um homem deve ser um grande psicólogo
porque é um grande matemático ou um grande anatomista. O anatomista, ao
dissecar o corpo humano, procura a alma, e como o seu bisturi não a
encontra, como encontra um nervo, ou porque não a vê sair volátil como
um gás, conclui que ela não existe, porque se coloca sob um ponto de
vista exclusivamente material. Resultará que ele tenha razão contra a
opinião universal? Não. Vemos, portanto, que o Espiritismo não é da
competência da ciência. Quando a crença espírita estiver bastante
difundida, quando for aceita pelas massas, e, a se julgar pela rapidez
com que se propaga, esse tempo não está longe, acontecerá com o
Espiritismo o que ocorre com todas as ideias novas que encontraram
oposição: os sábios irão se render à evidência. Chegarão a ela por si
sós e pela força das coisas. Até lá, é inoportuno desviá-los de seus
trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de uma coisa estranha
ao seu mundo, que não está nem nas suas atribuições, nem nos seus
programas. Enquanto isso não ocorre, aqueles que, sem um estudo prévio e
aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e zombam de todos
os que não estão de acordo com a sua opinião, esquecem que o mesmo
ocorreu com a maior parte das grandes descobertas que honram a
humanidade. Eles se expõem a ver seus nomes incluídos na extensa lista
dos ilustres contestadores das ideias novas e inscritos ao lado dos
membros da erudita assembleia que, em 1752, acolheu com zombaria e
muitos risos o relatório de Franklin18 sobre os para-raios, julgando-o
indigno de figurar ao lado das comunicações que eram apreciadas; e desse
outro que fez a França perder o benefício da iniciativa do motor a
vapor, declarando que o sistema de Fulton19 era um sonho irrealizável.
Entretanto, essas eram questões da sua competência. Se essas
assembleias, que contavam em seu seio com a elite dos sábios do mundo,
apenas tiveram a zombaria e o sarcasmo por ideias que não compreendiam e
que alguns anos mais tarde deveriam revolucionar a ciência, os costumes
e a indústria, como esperar que uma questão estranha aos seus trabalhos
obtenha melhor acolhimento? Esses erros lamentáveis de alguns homens de
comprovada sabedoria, indignos de sua memória, não tiraram dos sábios
os títulos com que, em outros campos de ação, se fazem respeitar. Mas
acaso é necessário um diploma oficial para se ter bom senso, e fora das
poltronas acadêmicas somente há tolos e imbecis? Que se observem os
adeptos da Doutrina Espírita, e que avaliem se entre eles somente há
ignorantes, e se o número imenso de homens de mérito que a abraçaram
permite nivelá-la à categoria das crendices populares. Pelo caráter e
pelo saber desses homens, vale bem a pena dizer: uma vez que eles
afirmam, é certo pelo menos que há alguma coisa. Repetimos ainda que se
os fatos de que nos ocupamos ficassem reduzidos ao movimento mecânico
dos objetos, a procura da causa física desse fenômeno entraria no campo
da ciência; mas, desde que se trata de uma manifestação fora das leis
dos homens, ela escapa da competência da ciência material, porque não se
pode exprimir nem por algarismos, nem pela força mecânica. Quando surge
um fato novo que não se situa no círculo de alguma ciência conhecida, o
sábio, para estudá-lo, deve despojar-se de seu saber e considerar que é
um estudo novo que não se pode fazer com idéias preconcebidas. O homem
que considera que o seu saber é infalível está bem perto do erro. Mesmo
os que defendem as mais falsas idéias apóiam-se sempre na sua razão, e é
em virtude disso que rejeitam tudo que lhes parece impossível. Aqueles
que antigamente repeliram as admiráveis descobertas de que hoje a
humanidade se honra faziam apelo à razão para as rejeitar; porém, o que
se chama razão é, muitas vezes, somente orgulho disfarçado, e quem quer
que se acredite infalível se coloca como igual a Deus. Dirigimo-nos,
portanto, àqueles que são bastante ponderados para duvidar do que não
viram e que, julgando o futuro pelo passado, não acreditam que o homem
tenha chegado ao seu apogeu, nem que a natureza tenha virado para ele a
última página de seu livro.
8
A SERIEDADE DA DOUTRINA
Acrescentamos que o estudo de uma
doutrina, como a Doutrina Espírita, que nos lança de repente e em cheio
numa ordem de coisas tão novas e grandiosas, somente pode ser feito por
homens sérios, perseverantes, isentos de prevenções e movidos por uma
firme e sincera vontade de chegar a um resultado esclarecedor. Não podem
ser considerados assim os que julgam, a priori20, levianamente e sem
ter visto tudo; que não dão a seus estudos nem a seqüência, nem a
regularidade, nem a cautela necessária; e muito menos certas pessoas
que, para não perder a pose de sua reputação de homens de espírito21, se
empenham em encontrar um lado ridículo nas coisas mais verdadeiras, ou
assim julgadas, por pessoas cujo saber, caráter e convicções fazem jus
ao respeito de quem se tem na conta de ser bem-educado. Aqueles que não
julgarem os fatos espíritas dignos de si e de sua atenção que se calem;
ninguém tenciona violentar sua crença, mas que saibam respeitar a dos
outros. O que caracteriza um estudo sério é a sequência que se dá a esse
estudo. Deve causar estranheza o fato de não se obter, muitas vezes,
nenhuma resposta sensata às questões, sérias por si próprias, quando são
feitas ao acaso e lançadas à queima-roupa no meio de enxurradas de
perguntas absurdas? Uma questão, aliás, é muitas vezes complexa e
requer, para ser esclarecida, indagações preliminares ou complementares.
Quem quer aprender uma ciência deve fazer um estudo metódico dela,
começar pelo início e seguir o encadeamento e o desenvolvimento das
idéias. Aquele que sem mais nem menos pergunta a um sábio algo sobre a
ciência da qual nada sabe acaso obterá algum proveito? E o próprio sábio
poderá, com a melhor boa vontade, dar uma resposta satisfatória? Essa
resposta isolada será forçosamente incompleta e, muitas vezes, por isso
mesmo, ininteligível, ou poderá parecer absurda e contraditória.
Acontece exatamente o mesmo nas relações que estabelecemos com os
Espíritos. Se quisermos nos instruir na sua escola, é preciso fazer um
curso com eles, mas proceder exatamente como entre nós: selecionar os
professores e trabalhar com constância. Dissemos que os Espíritos
superiores apenas vêm às reuniões sérias e, em especial, àquelas em que
reina uma perfeita comunhão de pensamentos e de sentimentos pelo bem. A
leviandade e as questões inúteis os afastam, como, entre os homens,
afastam as pessoas racionais; o campo fica, então, livre à multidão de
Espíritos mentirosos e fúteis, sempre à espreita de ocasiões para zombar
e se divertir à nossa custa. O que devemos esperar de uma reunião dessa
natureza quando desejamos resposta a uma questão séria? Será
respondida? Sim, será, mas respondida por quem? É como se no meio de um
bando de gozadores lançássemos estas questões: o que é a alma? O que é a
morte? E outras também de igual tom recreativo. Se quereis respostas
sérias, sede sérios no verdadeiro sentido da palavra e colocai-vos de
acordo com todas as condições que se requerem. Somente assim obtereis
grandes coisas. Sede mais laboriosos e perseverantes em vossos estudos;
sem isso os Espíritos superiores vos abandonarão, como faz um professor
com seus alunos negligentes.
9
A DOUTRINA E OS SEUS CONTESTADORES
O movimento dos objetos é um fato
comprovado. A questão é saber se, nesse movimento, há ou não uma
manifestação inteligente e, caso haja, qual é a origem dessa
manifestação. Não trataremos somente do movimento inteligente de alguns
objetos, nem de comunicações verbais, nem mesmo das diretamente escritas
pelo médium. Esse gênero de manifestação, clara e evidente para aqueles
que viram e se aprofundaram no assunto, não é à primeira vista muito
convincente para um observador novato, por não a entender como
independente da vontade do médium. Não trataremos somente da escrita
obtida com a ajuda de um objeto qualquer munido de um lápis, como o
cesto, a prancheta, etc. A maneira como os dedos do médium ficam
colocados sobre o objeto desafia, como já dissemos, a habilidade mais
consumada de poder participar de qualquer modo que seja no traçado das
letras. Mas admitamos ainda que, por efeito de uma habilidade
maravilhosa, o médium possa enganar o olhar mais atento. De que maneira
explicar a natureza das respostas, quando estão muito além de todas as
idéias e de todos os conhecimentos do médium? E, que se note bem, não se
trata de respostas monossilábicas, mas muitas vezes de numerosas
páginas escritas com a mais espantosa rapidez, seja espontaneamente,
seja sobre um assunto determinado. Pela mão do médium, mais alheio e
avesso à literatura, nascem, algumas vezes, poesias de uma sublimidade e
pureza irrepreensíveis, que os melhores poetas se dignariam em assinar.
O que acrescenta ainda mais estranheza a esses fatos é que acontecem em
todos os lugares, e que os médiuns se multiplicam ao infinito. Esses
fatos são reais ou não? Para isso, apenas temos uma resposta: vede e
observai, ocasiões não faltarão; mas observai repetidamente, por um
período e obedecendo às condições determinadas. Diante da evidência, o
que respondem os opositores? “Sois”, dizem, “vítimas do charlatanismo ou
joguete de uma ilusão.” Diremos, primeiramente, que é preciso separar a
idéia de charlatanismo de onde não há lucro; os charlatães não fazem
seu trabalho de graça. Isso seria, então, uma mistificação. Mas por que
estranha coincidência tantos mistificadores teriam combinado em harmonia
e concordância para, de um canto a outro do planeta, agir da mesma
forma, produzir os mesmos efeitos e dar sobre os mesmos assuntos e em
tão diversas línguas respostas idênticas, se não quanto às palavras,
pelo menos quanto ao sentido? E o que levaria pessoas sérias, honradas,
instruídas a se prestar a semelhantes artimanhas e com que objetivo?
Como encontrar entre as crianças a paciência e a habilidade necessárias
para esse fim? Porque, se esses médiuns não são instrumentos passivos,
será preciso reconhecer neles habilidade e conhecimentos incompatíveis
com a idade infantil e com certas posições sociais. Então, dizem que, se
não há trapaças, os dois lados podem ser vítimas de uma ilusão. Numa
avaliação lógica, a qualidade dos testemunhos tem grande valor;
portanto, é o caso de se perguntar se a Doutrina Espírita, que hoje
conta com milhões de seguidores, apenas os recruta entre os ignorantes?
Os fenômenos em que se apóia são tão extraordinários que compreendemos a
dúvida, mas não se pode admitir a pretensão de alguns incrédulos que
julgam ter o privilégio exclusivo do bom senso e que, sem respeito pela
decência ou o valor moral de seus adversários, tacham, sem cerimônia, de
tolos todos que não estão de acordo com as suas opiniões. Aos olhos de
toda pessoa sensata, ajuizada, a opinião das pessoas esclarecidas, que
por muito tempo viram, estudaram e meditaram um fato, constituirá
sempre, se não uma prova, pelo menos uma probabilidade em seu favor, uma
vez que pôde prender a atenção de homens sérios que não têm interesse
em propagar erros, nem tempo a perder com futilidades.
10
OBJEÇÕES
Dentre as objeções, há algumas sedutoras,
pelo menos na aparência, que podem induzir ao erro por serem tiradas da
observação dos fenômenos espíritas e serem feitas por pessoas
respeitáveis. Uma delas é que a linguagem de alguns Espíritos não parece
digna da elevação que se supõe em seres sobrenaturais. Mas, se
considerarmos o resumo da Doutrina que apresentamos, seguramente se
concluirá o que os próprios Espíritos nos ensinam: eles não são iguais
nem em conhecimento, nem em qualidades morais, e que não se deve tomar
ao pé da letra tudo o que dizem. Cabe às pessoas sensatas distinguir o
bom do mau. Seguramente, os que, em função disso, concluem que apenas
temos contato com seres maldosos, cuja única ocupação é a de mistificar,
não têm conhecimento das comunicações que se recebem nas reuniões, onde
apenas se manifestam Espíritos Superiores; caso contrário, não
pensariam assim. É lastimável que a casualidade os tenha levado a ver
apenas o lado mau do mundo espí- rita, pois é difícil imaginar que por
uma tendência de simpatia tenham atraído para si Espíritos maus,
mentirosos ou aqueles cuja linguagem é revoltante de tão grosseira, em
vez dos bons Espíritos. No máximo, poderíamos concluir que a solidez dos
princípios dos opositores da Dourina Espírita não é bastante poderosa
para afastar o mal e que, encontrando um certo prazer em satisfazer sua
curiosidade, os maus Espíritos aproveitam a oportunidade para se
introduzir entre eles, enquanto os bons se afastam. Julgar a questão dos
Espíritos por esses fatos seria tão pouco lógico quanto julgar o
caráter de um povo pelo que se diz e se faz numa reunião de alguns
amalucados ou de pessoas de má fama, e da qual não participam nem os
sábios, nem as pessoas sensatas. Essas pessoas se encontram na situação
de um estrangeiro que, chegando a uma grande capital pelo mais pobre e
feio subúrbio, julgasse todos os habitantes pelos costumes e a linguagem
desse bairro ínfimo. No mundo dos Espíritos, há também uma sociedade de
bons e de maus. Portanto, que os opositores da Doutrina estudem bem o
que se passa entre os Espíritos Superiores e ficarão convencidos de que a
cidade celeste encerra outra coisa além da ralé do povo, a camada mais
baixa da sociedade. Mas, perguntam, os Espíritos Superiores vêm até nós?
A isso respondemos: Não fiqueis no subúrbio; vede, observai e julgai.
Os fatos estão aí para todos, a menos que sejam a elas que se apliquem
essas palavras de Jesus: “Têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem”.
Uma variante dessa opinião consiste em ver somente nas comunicações
espíritas, e em todos os fenômenos a intervenção de um poder diabólico,
novo Proteu que se revestiria de todas as formas para melhor nos
enganar. Não a consideramos à altura de um exame sério, por isso não nos
deteremos nela; encontra-se respondida por aquilo que dissemos;
acrescentaremos somente que, se fosse assim, seria preciso convir que o
diabo é algumas vezes muito sábio, razoável e, sobretudo, muito moral,
ou, então, que há também bons diabos. Como acreditar, de fato, que Deus
somente permita ao Espírito do mal se manifestar para nos perder, sem
nos dar, por contrapeso, os conselhos dos bons Espíritos? Se Ele não o
pode impedir, é impotente; se o pode e não o faz, é incompatível com sua
bondade; qualquer destas suposições seria uma blasfêmia. Notai que
admitir a comunicação dos maus Espíritos é reconhecer em princípio as
manifestações; portanto, a partir do momento que elas existem, isso
somente pode acontecer com a permissão de Deus; como acreditar sem
impiedade que Ele permita o mal com a exclusão do bem? Semelhante
doutrina seria contrária às mais simples noções do bom senso e da
religião.
11
QUE ESPÍRITOS?
Um fato interessante, dizem, é que
somente se fala com Espíritos de pessoas conhecidas e pergunta-se por
que só eles se manifestam. Essa afirmativa é um erro proveniente, como
muitos outros, de uma observação superficial. Entre os Espíritos que se
comunicam espontaneamente há para nós muito mais desconhecidos do que
ilustres. Eles se designam por um nome qualquer e, muitas vezes, por um
nome figurado ou característico. Quanto aos que se evocam, a menos que
não seja um parente ou um amigo, é bastante natural evocar os que são
conhecidos. O nome das pessoas ilustres impressiona mais, é por isso que
são mais notados. Considera-se estranho também que Espíritos de homens
ilustres venham familiarmente ao nosso chamado e se ocupem, por vezes,
de coisas insignificantes em comparação com as que realizaram durante a
sua vida. Não há nada de espantoso para aqueles que sabem que o poder ou
a consideração que esses homens desfrutaram na Terra não lhes dá
nenhuma supremacia no mundo espiritual; os Espíritos confirmam nisso as
palavras do Evangelho: “Os grandes serão rebaixados e os pequenos,
elevados”, o que se deve entender como a categoria que cada um de nós
virá a ocupar. Assim aquele que foi o primeiro na Terra pode ser um dos
últimos no mundo espiritual; aquele diante do qual curvávamos a cabeça
numa vida pode vir entre nós agora como o mais humilde operário, porque,
ao deixar a vida, deixou toda a sua grandeza, e o mais poderoso monarca
talvez possa estar abaixo do último de seus soldados.
12
A identidade dos espíritos
Um fato que a observação demonstrou e foi
confirmado pelos próprios Espíritos é que os Espíritos inferiores
apresentam-se, muitas vezes, com nomes conhecidos e respeitados. Quem
pode nos assegurar que aqueles que dizem ter sido, por exemplo,
Sócrates, Júlio César, Carlos Magno, Fénelon, Napoleão, Washington, etc.
tenham realmente animado esses personagens? Essa dúvida existe entre
alguns adeptos fervorosos da Doutrina Espírita; admitem a intervenção e a
manifestação dos Espíritos, mas se perguntam como comprovar sua
identidade. Essa comprovação é, de fato, muito difícil de estabelecer,
já que não pode ser apurada de uma maneira tão prática e simples como
por meio de um documento de identidade. Pode, entretanto, ser feita por
alguns indícios. Quando o Espírito de alguém que conhecemos pessoalmente
se manifesta, seja de um parente ou de um amigo, por exemplo,
especialmente se morreu há pouco tempo, ocorre, em geral, que sua
linguagem está em perfeita relação com o seu caráter; isso já é um
indício de identidade. Mas não há mais dúvida quando esse Espírito fala
de coisas particulares, lembra de fatos de família apenas conhecidos
pelo interlocutor. Um filho não se equivocaria certamente com a
linguagem de seu pai ou de sua mãe, nem os pais com a de seu filho.
Algumas vezes, nessas evocações, acontecem coisas surpreendentes, de
forma a convencer o mais incrédulo. O cético mais endurecido fica,
então, maravilhado com as revelações inesperadas que lhe são feitas. Uma
outra circunstância muito característica vem fundamentar a identidade
do Espírito. Dissemos que a letra do médium muda geralmente com o
Espírito evocado, e que essa escrita se reproduz exatamente igual a cada
vez que o mesmo Espírito se apresenta. Constatou-se, muitas vezes, que
para as pessoas mortas há pouco tempo, essa escrita tem uma semelhança
marcante com a da pessoa quando viva; têm-se visto assinaturas de uma
exatidão perfeita. Estamos longe de dar esse fato, embora observado,
como regra e, principalmente, como uma regra constante; nós o
mencionamos como algo digno de nota. Somente os Espíritos que atingiram
um certo grau de purificação estão desligados de toda influência
corporal. Porém, quando não estão completamente desmaterializados (é
essa a expressão da qual se servem), conservam a maior parte das idéias,
das tendências e até mesmo das manias que tinham na Terra, o que
demonstra o meio de os reconhecermos; como também numa grande quantidade
de fatos e detalhes, que somente uma observação atenta e firme pode
revelar. Veem-se escritores discutir suas próprias obras ou suas
doutrinas, aprovar ou condenar certas partes; outros Espíritos a lembrar
fatos ignorados ou pouco conhecidos de sua vida ou de sua morte; enfim,
detalhes que são pelo 12 31 menos provas morais de identidade, as
únicas a que se pode recorrer quando se trata de coisas abstratas, isto
é, que estão fora da realidade. Se, portanto, a identidade do Espírito
evocado pode ser, até certo ponto, estabelecida em alguns casos, não há
razão para que não o seja em outros, e se, em relação às pessoas cuja
morte ocorreu há mais tempo, não há os mesmos meios de controle, tem-se
sempre o da linguagem e do caráter que revelam, porque, seguramente, o
Espírito de um homem de bem não falará como um perverso ou um devasso.
Quanto aos Espíritos que se apresentam exibindo nomes respeitá- veis,
logo se traem pela linguagem e pelos ensinamentos. Aquele que dissesse
ser Fénelon, por exemplo, e embora acidentalmente ofendesse o bom senso e
a moral, mostraria, por esse simples fato, a fraude. Se, ao contrário,
os pensamentos que exprimisse fossem sempre puros, sem contradições e
constantemente à altura do caráter de Fénelon, não haveria motivos para
duvidar de sua identidade. De qualquer maneira, seria preciso supor que
um Espírito que apenas prega o bem pode conscientemente empregar a
mentira, e isso sem utilidade. A experiência nos ensina que os Espíritos
da categoria, do mesmo caráter e animados pelos mesmos sentimentos se
reúnem em grupos ou em famílias; que o número de Espíritos é
incalculável e estamos longe de conhecê-los todos; e que até mesmo a
maior parte deles não tem nome para nós. Um Espírito da mesma categoria
de Fénelon pode vir em seu lugar, muitas vezes, enviado a seu pedido;
apresentar-se sob seu nome, pois lhe é idêntico, e substituí-lo, porque
precisamos de um nome para fixar nossas ideias. Mas o que importa, em
definitivo, que um Espírito seja realmente ou não o de Fénelon? A partir
do momento que somente diz coisas boas e que fala como o próprio
Fénelon falaria, é um bom Espírito; o nome com que se apresenta é
indiferente e, muitas vezes, é apenas um meio de fixar nossas ideias. O
mesmo não seria admissível nas evocações dos familiares; mas aí, como
dissemos, a identidade pode ser estabelecida por provas de alguma forma
evidentes. Contudo, é certo que a substituição dos Espíritos pode
ocasionar uma série de enganos e resultar em erros e, muitas vezes, em
mistificações; essa é uma dificuldade do Espiritismo prático. Mas nunca
dissemos que fosse algo fácil, nem que se pudesse aprendê-lo brincando,
como não se faz com qualquer outra ciência. Nunca será demais repetir
que ele pede um estudo assíduo e, frequentemente, bastante prolongado;
não podendo provocar os fatos, é preciso esperar que se apresentem por
si mesmos e, frequentemente, são conduzidos por circunstâncias com as
quais nem ao menos se sonha. Para o observador atento e paciente, os
fatos se produzem e então ele descobre milhares de detalhes
característicos que representam fachos de luz. É assim também nas
ciências comuns, enquanto o homem superficial vê numa flor apenas uma
forma elegante, o sábio descobre nela tesouros para o pensamento.
13
CONTRADIÇÕES ENTRE OS ESPÍRITOS
As observações nos levam a dizer algumas
palavras a respeito de uma outra dificuldade, a da divergência na
linguagem dos Espíritos. Como os Espíritos são muito diferentes uns dos
outros nos conhecimentos e na moralidade, é evidente que a mesma questão
pode ser por eles explicada com sentidos opostos, conforme a categoria
que ocupam, como se ela fosse proposta, entre os homens, ora a um sábio,
ora a um ignorante ou a um gracejador de mau gosto. O ponto essencial,
já o dissemos, é saber a quem se dirige. Mas, dizem os críticos: como se
explica que os Espíritos reconhecidos por seres superiores não estejam
sempre de acordo? Diremos, primeiramente, que além da causa que acabamos
de assinalar há outras que podem exercer uma certa influência sobre a
natureza das respostas, independentemente da qualidade dos Espíritos.
Este é um ponto importante cuja explicação somente será dada pelo
estudo. É por isso que dizemos que esses estudos requerem uma atenção
firme, uma observação profunda e, principalmente, como em todas as
ciências humanas, continuidade e perseverança. São necessários anos para
fazer um médico medíocre, três quartos da vida para fazer um sábio;
como pretender, em algumas horas, adquirir a ciência do infinito?
Portanto, não nos enganemos: o estudo do Espiritismo é imenso, toca em
todas as questões da metafísica22 e da ordem social, é todo um mundo que
se abre diante de nós; será de espantar que seja preciso tempo, e muito
tempo, para o adquirir? A contradição, aliás, não é sempre tão evidente
quanto pode parecer. Não vemos, todos os dias, homens que, ensinando a
mesma ciência, divergem quanto à definição de uma coisa, seja ao
empregar termos diferentes, seja ao encará-la sob um outro ponto de
vista, ainda que a idéia fundamental permaneça a mesma? Que se conte, se
possível, o número de definições que foram dadas pela gramática!
Acrescentamos ainda que a forma da resposta depende, muitas vezes, da
forma da pergunta. Seria ingenuidade encontrar uma contradição onde há
apenas uma diferença de palavras. Os Espíritos Superiores não se prendem
de nenhum modo à forma; para eles, o fundo do pensamento é tudo.
Tomemos por exemplo a definição da alma. Por essa palavra comportar
várias significações, os Espíritos podem, assim como nós, divergir na
definição que lhe dão: um poderá dizer que é o princípio da vida; um
outro, chamá-la de centelha anímica23; um terceiro, dizer que é interna;
um quarto, que é externa, etc., e todos terão razão em seu ponto de
vista. Poderíamos até mesmo acreditar que alguns deles, em vista da sua
definição, ensinassem teorias materialistas e, entretanto, não é assim.
Ocorre o mesmo em relação a Deus; Ele será: o Princípio de todas as
coisas, o Criador do universo, a Soberana inteligência, o Infinito, o
Grande Espírito, etc., etc. e decisivamente será sempre Deus. Citamos,
por fim, a classificação dos Espíritos. Eles formam uma escala contínua
desde o grau inferior até o superior; portanto, a classificação não é
rígida: um poderia estabelecer três classes; um outro, cinco, dez ou
vinte, à vontade, sem estar, por isso, em erro. Também as ciências
humanas nos oferecem o exemplo: cada sábio tem o seu sistema, os
sistemas mudam, mas a ciência não. Que se aprenda botânica pelo sistema
de Lineu, de Jussiel ou de Tournefort 24 e não será menos botânica.
Deixemos de dar, portanto, às coisas de pura convenção mais importância
do que merecem, para nos ocupar daquilo que é verdadeiramente sério, e a
reflexão nos fará descobrir, muitas vezes, naquilo que parece mais
contraditório, uma semelhança que nos havia escapado à primeira vista.
14
MANEIRAS E MÉTODOS/ERROS DE ORTOGRAFIA
ortografia de alguns Espíritos, se ela
não nos permitisse fazer, sobre o fato, uma observação essencial. A
ortografia deles, é preciso dizer, nem sempre é impecável; mas é
necessário não ter mais nenhum argumento para fazer disso objeto de uma
crítica séria, alegando que, uma vez que os Espíritos sabem tudo, devem
saber ortografia. Poderíamos apontar numerosos pecados desse gênero
cometidos por mais de um sábio da Terra, o que não lhes tira em nada o
mérito; entretanto, há nesse fato uma questão mais importante: para os
Espíritos e principalmente para os Espíritos Superiores, a idéia é tudo,
a forma não é nada. Desligados da matéria, sua linguagem é rápida como o
pensamento, uma vez que é o próprio pensamento que se comunica sem
intermediário; em vista disso, devem sentir-se constrangidos, pouco à
vontade, quando são obrigados, para se comunicar conosco, a se servir de
formas longas e confusas da linguagem humana, agravadas pela
insuficiência e imperfeição dessa linguagem para exprimir todas as
ideias; é o que eles próprios dizem. É curioso também ver os meios que
empregam para atenuar esse inconveniente. Certamente faríamos o mesmo se
tivéssemos que nos exprimir numa língua mais longa em palavras e
expressões e mais pobre do que aquela que nos é usual. É o embaraço que
experimenta o homem de gênio, como podemos imaginar, se impacientando
com a lentidão de sua caneta, que está sempre atrás de seu pensamento.
Concebe-se, por essa razão, que os Espíritos deem pouca importância ao
detalhe da pobreza das regras ortográficas, quando se trata
especialmente de um ensinamento sério. Já não é maravilhoso, aliás, que
eles se exprimam indiferentemente em todas as línguas e as compreendam
todas? Entretanto, não devemos concluir que a correção convencional da
linguagem lhes seja desconhecida; eles a observam quando necessário. É
assim, por exemplo, que a poesia ditada por eles, muitas vezes, desafia a
crítica mais meticulosa, e isso apesar da ignorância do médium.
15
A LOUCURA E O ESPIRITISMO
Há também pessoas que veem perigo em
todos os lugares e em tudo o que não conhecem e rapidamente apontam uma
consequência desfavorável no fato de algumas pessoas, ao estudar a
Doutrina Espírita, terem perdido a razão. Como é que homens de bom senso
podem ver nesse fato uma objeção séria? Não ocorre o mesmo com todas as
preocupações intelectuais sobre um cérebro fraco? Sabe-se lá o número
de loucos e maníacos produzidos pelos estudos matemáticos, médicos,
musicais, filosóficos e outros? É preciso, por causa disso, banir esses
estudos? O que prova esse fato? Muitas vezes os trabalhos corporais
deformam ou mutilam os braços e as pernas, que são os instrumentos da
ação material; pode acontecer que os trabalhos da inteligência
danifiquem o cérebro, o instrumento pelo qual o pensamento se expressa.
Mas se o instrumento está quebrado, o Espírito está intacto, e quando se
libertar do corpo vai se achar de posse e na plenitude de suas
capacidades. É dessa maneira, como homem, um mártir do trabalho.
Qualquer uma das grandes preocupações do Espírito pode ocasionar a
loucura: as ciências, as artes e a própria religião mostram-nos vários
casos. A loucura tem como causa principal uma predisposição orgânica do
cérebro, que o torna mais ou menos acessível a algumas impressões. Se
houver predisposição para a loucura, ela assume um caráter de
preocupação principal, se transformando em idéia fixa, podendo tanto ser
a dos Espíritos, em quem com eles se ocupou, como poderá ser a de Deus,
dos anjos, do diabo, da fortuna, do poder, de uma arte, de uma ciência,
da maternidade ou a de um sistema político-social. É provável que um
louco religioso se tornasse um louco espírita, se o Espiritismo fosse
sua preocupação dominante, como um louco espírita o teria sido sob uma
outra forma, segundo as circunstâncias. Digo, portanto, que o
Espiritismo não tem nenhum privilégio nessa relação; e digo mais, afirmo
que, se bem compreendido, o Espiritismo é uma defesa contra a loucura.
Entre as causas mais comuns de supraexcitação cerebral, ou seja, do
desequilíbrio mental, estão as decepções, as infelicidades, as afei-
ções contrariadas, que são, ao mesmo tempo, as causas mais frequentes de
suicídio. Assim é que o verdadeiro espírita vê as coisas deste mundo de
um ponto de vista mais elevado; elas lhe parecem tão pequenas, tão
mesquinhas, diante do futuro que o espera; a vida é para ele tão curta,
tão passageira, que as tribulações são, a seus olhos, apenas incidentes
desagradáveis de uma viagem. O que em qualquer outro produziria uma
violenta emoção pouco o afeta; sabe, além de tudo, que os desgostos da
vida são provas que servem para o seu adiantamento, se as suporta sem
lamentar, porque será recompensado segundo a coragem com que as tiver
suportado. Suas convicções lhe dão uma resignação que o protege do
desespero e, por consequência, de uma causa frequente de loucura e
suicídio. Ele sabe, por outro lado, por observar as comunicações com os
Espíritos, o destino dos que encurtaram voluntariamente seus dias, e
esse quadro é muito sério para fazê-lo refletir; também o número de
pessoas que por causa disso se detiveram sobre essa inclinação fatal é
considerável. Esse é um dos resultados do Espiritismo. Que os incrédulos
riam dele quanto quiserem. Desejo-lhes as consolações que ele
proporciona a todos que se dão ao trabalho de sondar-lhe as misteriosas
profundezas. Ao número das causas de loucura é preciso ainda adicionar o
dos temores, e entre estes o medo do diabo, que provocou o
desequilíbrio de mais de um cérebro. Sabe-se lá o número de vítimas que
se fez ao amedrontar as fracas imaginações com esse quadro que se
procura tornar sempre mais pavoroso com terríveis detalhes? O diabo que,
dizem, apenas mete medo às criancinhas, é um freio para torná-las
ajuizadas, como o bicho-papão e o lobisomem. Contudo, quando não têm
mais medo deles, tornam-se piores; e esse belo resultado não é levado em
conta no número das epilepsias25 causadas pelo abalo em cérebros
delicados. A religião seria bem fraca se não gerasse medo, sua força
correria risco, seria abalada. Felizmente não é assim, há outros meios
de ação sobre as almas; o Espiritismo lhe aponta os mais eficazes e os
mais sérios, se souber usá-los com proveito; mostra a realidade das
coisas e com isso neutraliza os efeitos desastrosos de um temor
exagerado.
16
TEORIAS ENGANADORAS
Resta-nos examinar duas objeções; as
únicas que merecem verdadeiramente esse nome, porque são baseadas em
teorias racionais. Ambas admitem a realidade de todos os fenômenos
materiais e morais, mas excluem a intervenção dos Espíritos. A primeira
dessas teorias diz que todas as manifestações atribuí- das aos Espíritos
não seriam outra coisa senão efeitos magnéticos. Os médiuns entrariam
num estado que se poderia chamar de sonambulismo acordado, fenômeno do
qual toda pessoa que estudou o magnetismo pôde verificar e testemunhar.
Nesse estado, as capacidades intelectuais adquirem um desenvolvimento
anormal; o círculo das percepções intuitivas se estende além dos limites
de nossa concepção normal. Dessa maneira, o médium tiraria de si mesmo e
por efeito de sua lucidez tudo o que diz e todas as noções que
transmite, mesmo sobre assuntos que lhe são completamente desconhecidos
quando se acha no seu estado normal. Não seremos nós que contestaremos a
força do sonambulismo, do qual vimos os extraordinários fenômenos e os
estudamos em todas as fases durante mais de 35 anos. Concordamos, de
fato, que muitas manifestações espíritas podem se explicar por ele, mas
uma observação paciente e atenta mostra uma multidão de fatos em que a
intervenção do médium, a não ser como instrumento passivo, é
materialmente impossível. Àqueles que partilham dessa opinião diremos
como aos outros: vede e observai, pois seguramente não vistes tudo. Em
seguida propomos duas considerações tiradas de sua própria doutrina. De
onde veio a teoria espírita? É um sistema imaginado por alguns homens
para explicar os fatos? De modo algum. Quem a revelou? Precisamente
esses mesmos médiuns dos quais exaltais a lucidez. Se, portanto, essa
lucidez é exatamente como a supondes, por que teriam eles atribuído aos
Espíritos o que possuíam em si mesmos? Como dariam esses ensinamentos
tão precisos, lógicos e sublimes sobre a natureza dessas inteligências
extrahumanas? De duas coisas, uma: ou são lúcidos ou não o são; se o são
e se se pode confiar em sua veracidade, não haveria como, sem contradi-
ção, admitir que não estão com a verdade. Em segundo lugar, se todos os
fenômenos tivessem origem no médium, seriam idênticos no mesmo
indivíduo e não se veria a mesma pessoa manifestar-se em linguagens
diferentes e exprimir alternativamente as mais polêmicas idéias. Essa
falta de unidade nas manifestações obtidas por um mesmo médium prova a
diversidade das fontes; se, portanto, não se pode encontrá-las todas no
médium, é preciso procurá-las fora dele. Uma outra opinião diz que o
médium é a fonte das manifestações, mas, em vez de as tirar de si mesmo,
assim como o pretendem os par tidários da teoria sonambúlica, as tira
do meio ambiente. Assim sendo, o médium seria uma espécie de espelho
refletindo todas as idéias, pensamentos e conhecimentos das pessoas que o
rodeiam; não diria nada que já não fosse conhecido pelo menos por
alguns. Não se poderia negar, e isso é mesmo um princípio da Doutrina, a
influência exercida pelos assistentes sobre a natureza das
manifestações. Porém, essa influência é diferente da que os opositores
supõem existir, e daí a ser o médium o eco dos pensamentos daqueles que o
rodeiam há uma grande distância, visto que milhares de fatos demonstram
indiscutivelmente o contrário. Portanto, há nisso um erro grave que
atesta, uma vez mais, o perigo das conclusões prematuras. Essas pessoas,
não podendo negar a existência de um fenômeno que a ciência comum não
pode explicar e não querendo admitir a presença dos Espíritos, o
explicam a seu modo. Esta teoria, embora enganosa, seria atraente se
pudesse abraçar todos os fatos, mas não é assim. Quando se lhes
demonstra com a clareza mais lógica que algumas comunicações do médium
são completamente estranhas ao pensamento, aos conhecimentos, às
próprias opiniões de todos os assistentes, que essas comunicações são,
muitas vezes, espontâneas e contradizem todas as ideias preconcebidas,
eles não recuam e nem se dão por convencidos. A irradiação, dizem,
estende-se muito além do círculo imediato que nos rodeia; o médium é o
reflexo de toda a humanidade, de forma que, se não tira suas inspirações
das coisas que estão ao seu redor, vai procurá-las fora, na cidade, no
país, em todo o globo e mesmo em outras esferas. Não creio que se
encontre nessa teoria uma explicação mais simples e mais provável que a
do Espiritismo, embora revele uma causa bem mais maravilhosa. Porém, a
ideia de que seres inteligentes povoam os espaços e que, estando em
contato permanente conosco, nos comunicam seus pensamentos, nada tem que
choque mais a razão do que se supor que essa irradiação universal vinda
de todos os pontos do universo possa concentrar-se no cérebro de um
indivíduo. Ainda uma vez, e esse é um ponto importante sobre o qual
nunca é demais insistir: tanto a teoria sonambúlica quanto a que se
poderia chamar refletiva foram imaginadas por alguns homens; são
opiniões individuais criadas para explicar um fato, enquanto a Doutrina
dos Espíritos não é de concepção humana. Foi ditada pelas próprias
inteligências que se manifestaram quando ninguém sequer a concebia e que
a própria opinião geral a repelia. Portanto, perguntamos: de onde os
médiuns foram tirar uma doutrina que não existia no pensamento de
ninguém na Terra? E perguntamos mais: por que estranha coincidência
milhares de médiuns espalhados por todos os pontos do globo, que nunca
se viram, combinaram dizer a mesma coisa? Se o primeiro médium que
apareceu na França revelou a influência das mesmas opiniões já aceitas
nos Estados Unidos, por que razão teria ido procurar essas idéias a 2000
léguas além dos mares, entre um povo de costumes e linguagem estranhos,
em vez de procurá-las ao seu redor? Mas há uma outra particularidade
sobre a qual não se tem pensado o suficiente. É que as primeiras
manifestações, tanto na França quanto nos Estados Unidos, não ocorreram
pela escrita, nem pela fala, mas por pancadas que concordavam com as
letras do alfabeto formando palavras e frases. Foi por esse meio que as
inteligências que se revelavam declararam ser Espíritos. Se pudermos,
portanto, supor que haja a intervenção do pensamento dos médiuns nas
comunicações verbais ou escritas, o mesmo não pode ter ocorrido com as
pancadas, cuja significação não poderia ser conhecida com antecedência.
Poderíamos citar muitos outros fatos que demonstram, na inteligência que
se manifesta, uma individualidade evidente e uma independência absoluta
de vontade. Remetemos, entretanto, os discordantes a uma observação
mais atenta, e se querem estudar sem prevenção e não concluir antes de
terem visto tudo, reconhecerão a fragilidade de sua teoria para explicar
os fatos. Nós nos limitaremos a colocar as questões seguintes: por que a
inteligência que se manifesta, seja ela qual for, recusa-se a responder
a algumas questões sobre assuntos perfeitamente conhecidos, como, por
exemplo, sobre o nome ou a idade do interrogador, sobre o que tem na
mão, o que fez na véspera e o que fará no dia seguinte, etc.? Se o
médium é de fato o espelho do pensamento dos assistentes, nada haveria
de ser mais fácil do que dar essas respostas. Os adversários retrucam o
argumento ao perguntar, por sua vez, por que os Espíritos, que devem
saber tudo, não podem responder a coisas tão simples, de acordo com o
axioma26 Quem pode o mais pode o menos, concluindo, daí, que não são
respostas dos Espíritos. Se um ignorante ou um zombador se apresentasse
diante de uma assembleia de sábios e perguntasse, por exemplo, por que
faz dia em pleno meio-dia, acredita-se que alguém se desse ao trabalho
de responder seriamente? Seria razoável por isso concluir, pelo silêncio
ou desdém que se desse ao interrogador, que os componentes dessa
assembleia são tolos? Portanto, é precisamente porque os Espíritos são
superiores que não respondem às questões inúteis e ridículas e não
querem se pôr em evidência, é por isso que se calam ou dizem se ocupar
com coisas mais sérias. Perguntaremos, por fim, por que os Espíritos vêm
e vão frequentemente num dado momento, e por que, passado esse momento,
não há preces nem súplicas que os possam trazer de volta? Se o médium
somente agisse como um reflexo do impulso mental dos assistentes, é
evidente que, nessa circunstância, o concurso de todas as vontades
reunidas deveria estimular sua clarividência. Se não cede ao desejo da
assembleia, fortalecido também por sua própria vontade, é porque obedece
a uma influência estranha a ele mesmo e aos que estão à sua volta, e
que essa influência demonstra, por esse fato, sua independência e sua
individualidade.
17
A DOUTRINA E AS OBRAS DE DEUS
A descrença com que se têm referido à
Doutrina Espírita, quando não é o resultado de uma oposição sistemática
interesseira, tem quase sempre origem no conhecimento incompleto dos
fatos, o que não impede algumas pessoas de abordar e decidir a questão
como se a conhecessem perfeitamente. Pode-se ser muito inteligente, ter
muita instrução e não se ter bom senso; portanto, o primeiro indício de
falta de discernimento quando se julga é acreditar ser infalível. Muitas
pessoas também vêem as manifestações espíritas somente como
curiosidade; esperamos que pela leitura deste livro elas encontrem
nesses extraordinários fenô- menos outra coisa além de um simples
passatempo. A ciência espírita compreende duas partes: uma experimental,
sobre as manifestações em geral, e outra filosófica, sobre as
manifestações inteligentes. Todo aquele que somente observou a primeira
está na posição de quem conhece a física apenas por experiências
recreativas, sem ter penetrado a fundo na ciência. A verdadeira Doutrina
Espírita está no ensinamento dado pelos Espíritos, e os conhecimentos
que esse ensinamento comporta são muito sérios para serem adquiridos de
qualquer outro modo que não seja por um estudo atencioso e contínuo,
feito no silêncio e no recolhimento, porque somente nessa condição
pode-se observar um número infinito de fatos e de detalhes que escapam
ao observador superficial e permitem firmar uma opinião. Se este livro
não tivesse outra finalidade que não fosse mostrar o lado sério da
questão e de provocar estudos nesse sentido, para nós já seria bastante
honroso e ficaríamos felizes por ter realizado uma obra a que não
pretendemos, de resto, nos atribuir mérito pessoal, uma vez que seus
princípios não são de nossa criação e o seu mérito é inteiramente dos
Espíritos que a ditaram. Esperamos que ela tenha um outro resultado: o
de guiar os homens desejosos de se esclarecer, mostrando-lhes nestes
estudos um objetivo grande e sublime: o do progresso individual e
social, e de lhes indicar o caminho a seguir para atingi-lo. Concluímos
com uma última consideração. Os astrônomos, ao sondar os espaços,
encontraram na distribuição dos corpos celestes lacunas não justificadas
e em desacordo com as leis do conjunto. Eles supuseram que essas
lacunas deveriam estar ocupadas por globos que escapavam à sua
observação, mas, ao mesmo tempo, observa ram alguns efeitos cuja causa
desconheciam e concluíram: “Aí deve haver um mundo, porque essa lacuna
não pode existir e esses efeitos devem ter uma causa”. Analisando,
então, a causa pelo efeito, puderam calcular os elementos, e mais tarde
os fatos vieram justificar suas previsões. Apliquemos esse mesmo
raciocínio a uma outra ordem de ideias. Se observarmos todas as
criaturas, verificaremos que formam uma cadeia, sem interrupção, desde a
matéria bruta até o homem mais inteligente. Mas entre o homem e Deus, o
alfa e o ômega27 de todas as coisas, que imensa lacuna! É racional
pensar que terminem no homem os elos dessa cadeia? Ou que ele possa
transpor de uma vez a distância que o separa do infinito? A razão nos
diz que entre o homem e Deus deve haver outros escalões, como disse aos
astrônomos que entre os mundos conhecidos devia haver outros mundos
desconhecidos. Qual é a filosofia que preencheu essa lacuna? O
Espiritismo a mostra ocupada por seres de todas as categorias do mundo
invisível, e esses seres não são outros senão os Espíritos dos homens
que atingiram os diferentes graus que conduzem à perfeição; então, tudo
se liga, tudo se encaixa, desde o alfa até o ômega. Vós que negais a
existência dos Espíritos, preenchei, portanto, o vazio que eles ocupam; e
vós que rides deles, ousai rir das obras de Deus e de seu grande poder!
Allan Kardec
Princípios Básicos
Os fenômenos que estão além das leis da
ciência comum se manifestam por toda parte e revelam na causa que os
produz a ação de uma vontade livre e inteligente. A razão diz que um
efeito inteligente deve ter como causa uma força inteligente, e os fatos
provaram que essa força pode entrar em comunicação com os homens por
meio de sinais materiais. Essa força, interrogada sobre sua natureza,
declarou pertencer ao mundo dos seres espirituais que se libertaram do
corpo carnal do homem. Foi assim que a Doutrina dos Espíritos foi
revelada. As comunicações entre o mundo espírita e o mundo corporal
estão na ordem natural das coisas e não constituem nenhum fato
sobrenatural, é por isso que seus vestígios são encontrados entre todos
os povos e em todas as épocas e hoje são comuns e evidentes para todos.
Os Espíritos anunciam que os tempos marcados pela Providência para uma
manifestação universal chegaram e que, sendo os mensageiros de Deus e os
agentes de sua vontade, sua missão é instruir e esclarecer os homens ao
abrir uma nova era para a regeneração da humanidade. Este livro contém
os seus ensinamentos, foi escrito por ordem e sob o ditado dos Espíritos
Superiores para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional,
isenta dos preconceitos sistemáticos; não contém nada que não seja a
expressão do pensamento deles e que não tenha sido submetido ao seu
controle. Somente a ordem e a distribuição metódica das matérias, assim
como as notas e a forma de algumas partes da redação, são obra daquele
que recebeu a missão de publicá-lo.
Entre os Espíritos que concorreram para a
realização desta obra, muitos viveram em diversas épocas na Terra, onde
pregaram e praticaram a virtude e a sabedoria; outros não pertencem,
pelo nome, a nenhum personagem cuja lembrança a história tenha guardado,
mas sua elevação é atestada pela pureza dos seus ensinamentos e sua
união com aqueles que trazem nomes venerados. Eis em que termos nos
deram por escrito, e por intermédio de muitos médiuns, a missão de
escrever este livro: “Ocupa-te com zelo e perseverança do trabalho que
empreendeste com a nossa cooperação, porque esse trabalho é nosso. Nele
pusemos as bases do novo edifício que se eleva e deve um dia reunir
todos os homens num mesmo sentimento de amor e de caridade; mas antes de
o publicares, nós o reveremos em conjunto, a fim de verificar todos os
seus detalhes. Estaremos contigo todas as vezes que o pedires e para te
ajudar em todos os outros trabalhos, porque isso é somente uma parte da
missão que te foi confiada e que já te foi revelada por um de nós. Entre
os ensinamentos que te são dados, há alguns que deves guardar somente
para ti, até nova ordem. Nós vamos te indicar quando o momento de
publicá-los tiver chegado. Enquanto esperas, examinaos e medita sobre
eles, para estares pronto quando o dissermos. Coloca no início do livro a
cepa de vinha que te desenhamos*, como emblema do trabalho do Criador;
todos os princípios materiais que podem melhor representar o corpo e o
Espírito estão nela reunidos: o corpo é a cepa; o Espírito é o licor; a
alma ou o Espírito unido à matéria é o bago da uva. O homem purifica o
Espírito pelo trabalho e tu sabes que é somente pelo trabalho do corpo
que o Espírito adquire conhecimento. Não te deixes desencorajar pela
crítica. Encontrarás opositores ferozes, especialmente entre as pessoas
interessadas nos abusos. Irás encontrá-los, também, mesmo entre os
Espíritos, porque aqueles que não são completamente desmaterializados
frequentemente procuram semear a dúvida pela malícia ou ignorância; mas
continua sempre, acredita em Deus e marcha com confiança: aqui estaremos
para te sustentar e está próximo o tempo em que a Verdade brilhará por
toda parte. A vaidade de alguns homens que acreditam saber tudo e querem
explicar tudo à sua maneira fará surgir opiniões divergentes, mas todos
que tiverem em vista o grande princípio de Jesus vão se irmanar num
mesmo sentimento de amor ao bem e se unir por um laço fraternal que
abrangerá o mundo inteiro. Eles deixarão de lado as disputas mesquinhas
de palavras para apenas se ocupar das coisas essenciais, e a Doutrina
será sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos aqueles que receberem
as comunicações dos Espíritos Superiores. É com a perseverança que
chegarás a recolher o fruto de teus trabalhos. O prazer que
experimentarás ao ver a Doutrina se propagar e ser compreendida será uma
recompensa da qual conhecerás todo o valor, talvez mais no futuro do
que no presente. Não te inquietes, portanto, com os espinhos e as pedras
que os incrédulos ou os maus semearão no teu caminho; conserva a
confiança: com a confiança chegarás ao objetivo e merecerás ser sempre
ajudado. Lembra-te que os bons Espíritos somente assistem aos que servem
a Deus com humildade e desinteresse e repudiam todo aquele que procura
no caminho do céu um degrau para conquistar as coisas da Terra; eles se
distanciam dos orgulhosos e ambiciosos. O orgulho e a ambição serão
sempre uma barreira entre o homem e Deus; são um véu lançado sobre as
claridades celestes, e Deus não pode se servir do cego para fazer
compreender a luz”. São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente
de Paulo, São Luís, O Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon,
Franklin, Swedenborg, etc.
PARTE PRIMEIRA
AS CAUSAS PRIMÁRIAS
DEUS E O INFINITO
CAPÍTULO 1
DEUS Deus e o infinito
Provas da existência de Deus
Atributos da Divindade – Panteismo
1 O que é Deus? – Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
2 O que devemos entender por
infinito? – O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo o que é
desconhecido é infinito.
3 Poderíamos dizer que Deus é infinito? –
Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, que é
insuficiente para definir as coisas que estão acima de sua
inteligência. Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é
uma abstração. Dizer que Deus é infinito é tomar o atributo2 de uma
coisa por ela própria, é definir uma coisa que não é conhecida por uma
outra igualmente desconhecida.
PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS
4 Onde podemos encontrar a prova da
existência de Deus? – Num axioma que aplicais às vossas ciências: não há
efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem, e
a vossa razão vos responderá. Para acreditar em Deus, basta ao homem
lançar os olhos sobre as obras da criação. O universo existe, portanto
ele tem uma causa. Duvidar da existência de Deus seria negar que todo
efeito tem uma causa e admitir que o nada pôde fazer alguma coisa.
5 Que conclusão podemos tirar do
sentimento intuitivo que todos os homens trazem em si mesmos da
existência de Deus? – A de que Deus existe; de onde lhes viria esse
sentimento se repousasse sobre o nada? É ainda uma consequência do
princípio de que não há efeito sem causa.
6 O sentimento íntimo que temos em nós da
existência de Deus não seria o efeito da educação e das ideias
adquiridas? – Se fosse assim, por que vossos selvagens teriam também
esse sentimento? Se o sentimento da existência de um ser supremo fosse o
produto de um ensinamento, não seria universal. Somente existiria
naqueles que tivessem recebido esse ensinamento, como acontece com os
conhecimentos científicos.
7 Poderemos encontrar a causa primária da
formação das coisas nas propriedades íntimas da matéria? – Mas, então,
qual teria sido a causa dessas propriedades? Sempre é preciso uma causa
primária. Atribuir a formação primária das coisas às propriedades
íntimas da matéria seria tomar o efeito pela causa, porque essas
propriedades são elas mesmas um efeito que deve ter uma causa.
8 O que pensar da opinião que atribui a
formação primária a uma combinação acidental e imprevista da matéria, ou
seja, ao acaso? – Outro absurdo! Que homem de bom senso pode conceber o
acaso como um ser inteligente? E, além de tudo, o que é o acaso?
Nada. A harmonia que regula as atividades do universo revela
combinações e objetivos determinados e, por isso mesmo, um poder
inteligente. Atribuir a formação primária ao acaso seria um
contrassenso, porque o acaso é cego e não pode produzir os efeitos que a
inteligência produz. Um acaso inteligente não seria mais um acaso.
9 Onde é que se vê na causa primária a
manifestação de uma inteligência suprema e superior a todas as
inteligências? – Tendes um provérbio que diz: “Pela obra reconhece-se o
autor.” Pois bem: olhai a obra e procurai o autor. É o orgulho que causa
a incredulidade. O homem orgulhoso não admite nada acima dele; é por
isso que se julga um espírito forte. Pobre ser, que um sopro de Deus
pode abater! ? Julga-se o poder de uma inteligência por suas obras. Como
nenhum ser humano pode criar o que a natureza produz, a causa primária
é, portanto, uma inteligência superior à humanidade. Quaisquer que sejam
os prodígios realizados pela inteligência humana, essa inteligência tem
ela mesma uma causa e, quanto mais grandioso for o que ela realize,
maior deve ser a causa primária. É essa inteligência superior que é a
causa primária de todas as coisas, qualquer que seja o nome que o homem
lhe queira dar.
ATRIBUTOS DA DIVINDADE
10 - O homem pode compreender a natureza íntima de Deus? – Não, falta-lhe, para isso, um sentido.
11 Um dia será permitido ao homem
compreender o mistério da Divindade? – Quando seu Espírito não estiver
mais obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, estiver mais
próximo de Deus, então o verá e o compreenderá. A inferioridade das
faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de
Deus. Na infância da humanidade, o homem O confunde muitas vezes com a
criatura, da qual lhe atribui as imperfeições; mas, à medida que o senso
moral nele se desenvolve, seu pensamento compreende melhor o fundo das
coisas e ele faz uma idéia de Deus mais justa e mais conforme ao seu
entendimento, embora sempre incompleta.
12 Se não podemos compreender a natureza
íntima de Deus, podemos ter idéia de algumas de suas perfeições? – Sim,
de algumas. O homem as compreende melhor à medida que se eleva acima da
matéria. Ele as pressente pelo pensamento.
13 Quando dizemos que Deus é eterno,
infinito, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo
e bom, não temos uma ideia completa de seus atributos? – Do vosso ponto
de vista, sim, porque acreditais abranger tudo. Mas ficai sabendo bem
que há coisas acima da inteligência do homem mais inteligente e que a
vossa linguagem, limitada às vossas ideias e sensações, não tem
condições de explicar. A razão vos diz, de fato, que Deus deve ter essas
perfeições em grau supremo, porque se tivesse uma só de menos, ou que
não fosse de um grau infinito, não seria superior a tudo e, por
conseguinte, não seria Deus. Por estar acima de todas as coisas, Ele não
pode estar sujeito a qualquer instabilidade e não pode ter nenhuma das
imperfeições que a imaginação possa conceber. Deus é eterno. Se Ele
tivesse tido um começo teria saído do nada, ou teria sido criado por um
ser anterior. É assim que, de degrau em degrau, remontamos ao infinito e
à eternidade. É imutável; se estivesse sujeito a mudanças, as leis que
regem o universo não teriam nenhuma estabilidade. É imaterial, ou seja,
sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria; de outro modo não
seria imutável, porque estaria sujeito às transformações da matéria. É
único; se houvesse vários deuses, não haveria unidade de desígnios, nem
unidade de poder na ordenação do universo. É todo-poderoso, porque é
único. Se não tivesse o soberano poder, haveria alguma coisa mais ou tão
poderosa quanto Ele; não teria feito todas as coisas e as que não
tivesse feito seriam obras de um outro Deus.
É soberanamente justo e bom. A sabedoria
providencial das Leis Divinas se revela nas menores como nas maiores
coisas, e essa sabedoria não permite duvidar de sua justiça nem de sua
bondade.
PANTEÍSMO
14 Deus é um ser distinto, ou seria, segundo a opinião de alguns, resultante de todas as forças e de todas as inteligência.
Deus existe, não podeis duvidar disso, é o essencial. Crede em mim, não
deveis ir além, não vos percais num labirinto de onde não podereis
sair, isso não vos tornaria melhores, mas talvez um pouco mais
orgulhosos, porque acreditaríeis saber e na realidade não saberíeis
nada. Deixai de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos
tocam mais diretamente, a começar por vós mesmos. Estudai vossas
próprias imperfeições a fim de vos desembaraçar delas, isso vos será
mais útil do que querer penetrar no que é impenetrável.
15 O que pensar da opinião de que todos
os corpos da natureza, todos os seres, todos os globos do universo,
seriam parte da Divindade e constituiriam, pelo seu conjunto, a própria
Divindade, ou seja, o que pensar da doutrina panteísta? – O homem, não
podendo se fazer Deus, quer pelo menos ser uma parte d’Ele. 16 Aqueles
que acreditam nessa doutrina pretendem nela encontrar a demonstração de
alguns atributos de Deus. Sendo os mundos infinitos, Deus é, por isso
mesmo, infinito; não havendo o vazio ou o nada em nenhuma parte, Deus
está, portanto, em toda parte; Deus, estando por toda parte, uma vez que
tudo é parte integrante de Deus, dá a todos os fenômenos da natureza
uma razão de ser inteligente. O que se pode opor a esse raciocínio? – A
razão. Refleti maduramente e não vos será difícil reconhecer o absurdo
disso. Esta doutrina faz de Deus um ser material que, embora dotado de
uma inteligência suprema, seria em tamanho grande o que nós somos em
tamanho pequeno. Uma vez que a matéria se transforma sem parar, se assim
for, Deus não teria nenhuma estabilidade, estaria sujeito a todas as
mudanças e variações, a todas as necessidades da humanidade, e lhe
faltaria um dos atributos essenciais da Divindade: a imutabilidade. Não
se pode imaginar que são as mesmas as propriedades da matéria e a
essência de Deus, sem O rebaixar na nossa concepção. Todas as sutilezas
do sofisma3 não conseguirão resolver o problema na sua natureza íntima.
Não sabemos tudo o que Deus é, mas sabemos o que não pode deixar de ser,
e a teoria do panteísmo está em contradição com suas propriedades mais
essenciais; ela confunde o criador com a criatura, exatamente como se
afirmasse categoricamente que uma máquina engenhosa fosse parte
integrante do mecânico que a concebeu. A inteligência de Deus se revela
em suas obras como a de um pintor em seu quadro, mas as obras de Deus
não são o próprio Deus, assim como o quadro não é o pintor que o
concebeu e executou.
CAPÍTULO 2
ELEMENTOS GERAIS DO UNIVERSO
Conhecimento do princípio das coisas -
Espírito e matéria - Propriedades da matéria -
Espaço universal
CONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DAS COISAS
17 É permitido ao homem conhecer o princípio das coisas? – Não, Deus não permite que tudo seja revelado ao homem aqui na Terra.
18 O homem penetrará um dia no mistério
das coisas que lhe são ocultas? – O véu se levanta para ele à medida que
se depura; mas, para compreender algumas coisas, precisa de faculdades,
dons, que ainda não possui.
19 O homem não pode, pelas investigações
das ciências, penetrar em alguns dos segredos da natureza? – A ciência
lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas, mas não pode
ultrapassar os limites fixados por Deus. Quanto mais é permitido ao
homem penetrar pelo conhecimento nesses segredos, maior deve ser sua
admiração pelo poder e sabedoria do Criador; mas, seja pelo orgulho ou
fraqueza, sua própria inteligência o torna, muitas vezes, joguete da
ilusão. Amontoa sistemas sobre sistemas e cada dia que passa lhe mostra
quantos erros tomou por verdades e quantas verdades rejeitou como erros.
São outras tantas decep- ções para o seu orgulho.
20 Fora das investigações da ciência, é
permitido ao homem receber comunicações de uma ordem mais elevada sobre o
que escapa ao alcance dos seus sentidos? – Sim, se Deus julgar útil,
pode revelar o que a ciência não consegue apreender. É por essas
comunicações que o homem obtém, dentro de certos limites, o conhecimento
de seu passado e de sua destinação futura.
ESPÍRITO E MATÉRIA
21 A matéria existe desde o princípio,
como Deus, ou foi criada por Ele em determinado momento? – Somente Deus o
sabe. Entretanto, há uma coisa que a vossa razão deve deduzir: é que
Deus, modelo de amor e caridade, nunca esteve inativo. Por mais remoto
que possa vos parecer o início de sua ação, acaso o podereis imaginar
por um segundo sequer na ociosidade?
22 Define-se, geralmente, a matéria como
sendo o que tem extensão, o que pode causar impressão aos nossos
sentidos, o que é impenetrável. Essas definições são exatas? – Do vosso
ponto de vista são exatas, visto que somente falais do que conheceis.
Mas a matéria existe em estados que para vós são desconhecidos. Pode
ser, por exemplo, tão etérea e sutil que não cause nenhuma impressão aos
vossos sentidos; entretanto, é sempre matéria, embora para vós não o
seja.
22 a Que definição podeis dar da matéria?
– A matéria é o laço que prende o Espírito; é o instrumento de que ele
se serve e sobre o qual, ao mesmo tempo, exerce sua ação. ? De acordo
com essa idéia, pode-se dizer que a matéria é o agente, o intermediário,
com a ajuda do qual, e sobre o qual, atua o Espírito.
23 O que é o Espírito? – Espírito é o princípio inteligente do universo1 .
23 a Qual é a natureza íntima do
Espírito? – Não é fácil explicar o Espírito com a vossa linguagem. Para
vós, ele não é nada, visto que o Espírito não é algo palpável, mas para
nós é alguma coisa. Sabei bem: o nada não é coisa nenhuma, o nada não
existe.
24 Espírito é sinônimo de inteligência? –
A inteligência é um atributo essencial do Espírito, mas ambos se
confundem num princípio comum, de modo que, para vós, são a mesma coisa.
25 O Espírito é independente da matéria
ou é apenas uma propriedade dela, como as cores são propriedades da luz e
o som uma propriedade do ar? – Ambos são distintos, mas é preciso a
união do Espírito e da matéria para que a inteligência se manifeste na
matéria.
25 a Essa união é igualmente necessária
para a manifestação do Espírito? (Entendemos, aqui, por espírito o
princípio inteligente, e não as individualidades designadas sob esse
nome). – Ela é necessária para vós, porque não sois organizados para
perceber o Espírito sem a matéria; vossos sentidos não são feitos para
isso.
26 Pode-se conceber o Espírito sem a matéria e a matéria sem o Espírito? – Pode-se, sem dúvida, pelo pensamento.
27 Haveria, assim, dois elementos gerais
do universo: a matéria e o Espírito? – Sim, e acima de tudo Deus, o
Criador, o Pai de todas as coisas. Deus, Espírito e matéria são o
princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas ao elemento
material é preciso acrescentar o fluido universal, que faz o papel de
intermediário entre o Espírito e a matéria propriamente dita, muito
grosseira para que o Espírito possa ter uma ação sobre ela. Ainda que
sob certo ponto de vista se possa incluí-lo no elemento material, ele se
distingue por propriedades especiais. Se o fluido universal fosse
matéria, não haveria razão para que o Espírito não o fosse também. Ele
está colocado entre o Espírito e a matéria; é fluido, como a matéria é
matéria; suscetível, por suas inumeráveis combinações com ela e sob a
ação do Espírito, de poder produzir uma infinita variedade de coisas das
quais conheceis apenas uma pequena parte. Esse fluido universal,
primitivo, ou elementar, sendo o agente que o Espírito utiliza, é o
princípio sem o qual a matéria estaria em perpétuo estado de dispersão e
nunca adquiriria as propriedades que a força da gravidade lhe dá.
27 a Seria esse fluido o que designamos
sob o nome de eletricidade? – Dissemos que ele é suscetível de
inumeráveis combinações; o que chamais fluido elétrico, fluido
magnético, são modificações do fluido universal, que é, propriamente
falando, uma matéria mais perfeita, mais sutil e que se pode considerar
como independente.
28 Uma vez que o próprio Espírito é
alguma coisa, não seria mais exato e menos sujeito a confusões designar
esses dois elementos gerais pelas palavras: matéria inerte e matéria
inteligente? – As palavras pouco nos importam; cabe a vós formular vossa
linguagem de maneira a vos entenderdes. Vossas controvérsias surgem
quase sempre do que não compreendeis sobre as palavras que usais, porque
vossa linguagem é incompleta para as coisas que os vossos sentidos não
percebem. Um fato notório domina todas as hipóteses: vemos matéria sem
inteligência e vemos um princípio inteligente independente da matéria. A
origem e a ligação dessas duas coisas nos são desconhecidas. Se elas
vêm ou não de uma fonte comum, se há pontos de contato entre elas, se a
inteligência tem sua existência própria ou se é uma propriedade, um
efeito ou mesmo, conforme a opinião de alguns, se é uma emanação da
Divindade, é o que ignoramos. Elas nos aparecem distintas, é por isso
que nós as admitimos como formando dois princípios que constituem o
universo. Vemos acima de tudo isso uma inteligência que domina todas as
outras e as governa, que se distingue por seus atributos essenciais. É a
essa inteligência suprema que chamamos Deus.
PROPRIEDADES DA MATÉRIA
29 A ponderabilidade2 é um atributo
essencial da matéria? – Da matéria, assim como a entendeis, sim; mas não
da matéria considerada como fluido universal. A matéria etérea e sutil
que forma esse fluido é imponderável para vós, mas nem por isso deixa de
ser o princípio de vossa matéria pesada.
A gravidade3 é uma propriedade relativa.
Fora das esferas de atração dos mundos, não há peso, do mesmo modo que
não há nem acima, nem abaixo.
30 A matéria é formada de um único ou de
vários elementos? – De um único elemento primitivo. Os corpos que
considerais simples não são verdadeiros elementos, mas transformações da
matéria primitiva.
31 De onde vêm as diferentes propriedades
da matéria? – São modificações que as moléculas4 elementares sofrem por
sua união e em determinadas circunstâncias.
32 Diante disso, os sabores, os odores,
as cores, o som, as qualidades venenosas ou salutares dos corpos apenas
seriam modificações de uma única e mesma substância primitiva? – Sim,
sem dúvida, e que apenas existem pela disposição dos órgãos destinados a
percebê-los. Esse princípio é demonstrado pelo fato de que nem
todo mundo percebe as qualidades dos corpos da mesma maneira: um acha
uma coisa agradável ao gosto, outro a acha ruim; uns veem azul o que
outros veem vermelho; o que é um veneno para uns é inofensivo ou salutar
para outros.
33 A mesma matéria elementar é suscetível
de passar por todas as modificações e adquirir todas as propriedades? –
Sim, e é o que se deve entender quando dizemos que tudo está em tudo*.
O oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o
carbono e todos os corpos que consideramos como simples são somente
modificações de uma substância primitiva. Na impossibilidade em que nos
encontramos até o presente de conhecer, a não ser pelo pensamento, essa
matéria primitiva, esses corpos são para nós verdadeiros elementos e
podemos, sem maiores consequências, considerá-los assim, até nova ordem.
33 a E essa teoria parece dar razão à
opinião daqueles que só admitem na matéria duas propriedades essenciais,
a força e o movimento, e pensam que todas as outras propriedades são
apenas efeitos secundários, variando de acordo com a intensidade da
força e a direção do movimento? – Essa opinião é exata. É preciso também
acrescentar: conforme a disposição das moléculas, como vês, por
exemplo, num corpo opaco, que pode tornar-se transparente, e vice-versa.
34 As moléculas têm uma forma determinada? – Sem dúvida, as moléculas
têm uma forma, que não é perceptível para vós.
34 a Essa forma é constante ou variável? –
Constante para as moléculas elementares primitivas e variável para as
moléculas secundárias, que são somente aglomerações das primeiras;
porque aquilo que chamais molécula ainda está longe da molécula
elementar.
ESPAÇO UNIVERSAL
35 O espaço universal é infinito ou
limitado? – Infinito. Supondo que fosse limitado, devíeis perguntar: o
que haverá além de seus limites? Isso confunde a razão, bem o sei, e,
entretanto, a própria razão diz que não pode ser de outro modo. Essa é a
idéia do infinito em todas as coisas, e não é na vossa pequena esfera
que podeis compreendê-lo. Supondo-se um limite ao espaço, por mais
distante que o pensamento possa concebê-lo, a razão diz que além desse
limite há alguma coisa, e, assim, sucessivamente, até o infinito; porém,
se essa alguma coisa fosse o vazio absoluto, ainda seria espaço.
36 O vazio absoluto existe em alguma
parte no espaço universal? – Não, nada é vazio. O que imaginais como
vazio é ocupado por uma matéria que escapa aos vossos sentidos e aos
vossos instrumentos.
CAPÍTULO 3
CRIAÇÃO
Formação dos mundos
– Formação dos seres vivos
– Povoamento da Terra. Adão
– Diversidade das raças humanas
– Pluralidade dos mundos
– Considerações e concordâncias bíblicas a respeito da Criação
FORMAÇÃO DOS MUNDOS
? O universo abrange a infinidade dos
mundos que vemos e aqueles que não vemos, todos os seres animados e
inanimados, todos os astros que se movem no espaço e os fluidos que o
preenchem.
37 O universo foi criado ou existe desde
toda a eternidade, como Deus? – Sem dúvida, ele não se fez a si mesmo.
Se existisse de toda a eternidade, como Deus, não poderia ser obra de
Deus. ? A razão nos diz que o universo não se fez por si só e que, não
podendo ser obra do acaso, deve ser obra de Deus.
38 Como Deus criou o universo? – Para me
servir de uma expressão usual: pela Sua vontade. Nada revela melhor essa
vontade Todo-poderosa do que estas belas palavras da Gênese: “E Deus
disse: ‘Que se faça a luz’. E a luz se fez.”
39 Poderemos conhecer o modo da formação
dos mundos? – Tudo o que se pode dizer e o que podeis compreender é que
os mundos se formam pela condensação da matéria espalhada no espaço.
40 Os cometas seriam, como se pensa
atualmente, um começo da condensação da matéria, mundos em processo de
formação? – Isso é exato, mas o absurdo é acreditar na influência deles.
Quero dizer, na influência que lhes é atribuída vulgarmente, porque
todos os corpos celestes influem em certos fenômenos físicos.
41 Um mundo completamente formado pode
desaparecer e a maté- ria que o compõe ser espalhada de novo no espaço? –
Sim, Deus renova os mundos como renova os seres vivos.
42 Podemos saber o tempo de duração da
formação dos mundos, da Terra, por exemplo? – Não posso te dizer,
somente o Criador sabe, e bem louco seria quem pretendesse saber ou
conhecer o número dos séculos dessa formação.
FORMAÇÃO DOS SERES VIVOS
43 Quando a Terra começou a ser povoada? –
No início tudo era o caos, os elementos estavam desordenados. Pouco a
pouco, cada coisa tomou seu lugar. Então apareceram os seres vivos
apropriados ao estado do globo.
44 De onde vieram os seres vivos da
Terra? – A Terra continha os germes que aguardavam o momento favorável
para se desenvolverem. Os princípios orgânicos se agregaram desde que
cessou a força que os mantinha separados, e eles formaram os germes de
todos os seres vivos. Aqueles germes ficaram em estado latente1 , de
inércia, como a crisálida e as sementes das plantas, até chegar o
momento propício para o aparecimento de cada espécie. Então os seres de
cada espécie se reuniram e se multiplicaram.
45 Onde estavam os elementos orgânicos
antes da formação da Terra? – Eles se encontravam, por assim dizer, no
estado de fluido no espaço, no meio dos Espíritos, ou em outros
planetas, à espera da criação da Terra para começar uma nova existência
em um novo globo2 . A química nos mostra as moléculas dos corpos
inorgânicos se unindo para formar cristais de uma regularidade
constante, segundo cada espécie, desde que se encontrem nas condições
adequadas. A menor alteração dessas condições basta para impedir a
reunião dos elementos ou, pelo menos, mudar a disposição regular que
constitui o cristal. Por que não ocorreria o mesmo com os elementos
orgânicos? Conservamos durante anos sementes de plantas e de animais que
somente se desenvolvem a uma temperatura certa e em ambiente propício;
vimos grãos de trigo germinar depois de muitos séculos3 . Há, portanto,
nessas sementes, um princípio latente da vitalidade que apenas espera
uma circunstância favorável para se desenvolver. O que se passa
diariamente sob nossos olhos não pode também ter existido desde a origem
do globo? Essa formação dos seres vivos partindo do caos pela força da
própria natureza diminui em alguma coisa a grandeza de Deus? Longe
disso: responde melhor à ideia que fazemos de Seu poder se exercendo
sobre mundos infinitos pela ação de leis eternas. Esta teoria não
resolve, é verdade, a questão da origem dos elementos vitais; mas Deus
tem seus mistérios e colocou limites às nossas investigações.
46 Ainda há seres que nascem
espontaneamente? – Sim. Mas o germe primitivo já existia em estado
latente. Todos os dias vós mesmos sois testemunhas desse fenômeno. Não
dormitam, em estado latente, tanto no homem quanto no animal, bilhões de
germes de uma multidão de vermes aguardando o momento de despertar para
iniciarem a putrefação que vai provocar a decomposição cadavérica
indispensável à sua existência? Este é um pequeno mundo que dorme e se
cria.
47 A espécie humana se encontrava entre
os elementos orgânicos contidos no globo terrestre? – Sim, e veio a seu
tempo. Foi o que levou a dizer que o homem foi formado do limo da Terra.
48 Podemos conhecer a época do
aparecimento do homem e de outros seres vivos sobre a Terra? – Não,
todos os vossos cálculos são hipotéticos, suposições.
49 Se o germe da espécie humana se
encontrava entre os elementos orgânicos do globo, por que não se formam
mais espontaneamente os homens, como na sua origem? – O princípio das
coisas está nos segredos de Deus. Entretanto, podese dizer que os
homens, uma vez espalhados pela Terra, absorveram os elementos
necessários para a própria formação da espécie, para transmiti-los de
acordo com as leis da reprodução. Ocorreu o mesmo com as diferentes
espécies de seres vivos.
POVOAMENTO DA TERRA. ADÃO
50 A espécie humana começou por um único
homem? – Não; aquele a quem chamais Adão não foi nem o primeiro, nem o
único que povoou a Terra.
51 Podemos saber em que época viveu Adão?
– Mais ou menos na que assinalais: por volta de 4000 anos antes de
Cristo. ? O homem cuja tradição se conservou sob o nome de Adão foi um
dos que sobreviveram, numa região, após alguns dos grandes cataclismos
que abalaram a superfície do globo em diversas épocas e veio a originar
uma das raças que o povoam hoje. As leis da natureza se opõem à opinião
de que os progressos da humanidade, observados muito antes de Cristo,
tenham se realizado em alguns séculos, caso o homem tivesse aparecido na
Terra somente a partir da época assinalada para a existência de Adão.
Para muitos, Adão é considerado, e com muita razão, mais um mito, uma
alegoria, personificando os primeiros tempos do mundo.
DIVERSIDADE DAS RAÇAS HUMANAS
52 De onde vêm as diferenças físicas e morais que distinguem as variedades de raças humanas na Terra?
– Do clima, da vida e dos costumes.
Aconteceria o mesmo com dois filhos de uma mesma mãe que, se educados
longe um do outro e de maneira diferente, não se pareceriam em nada
quanto ao moral.
53 O homem apareceu em muitos pontos do
globo? – Sim, e em diversas épocas. Esta é uma das causas da diversidade
das raças. Depois, os homens, ao se dispersarem sob diferentes climas e
ao se misturarem os de raças diferentes, formaram novos tipos. 53 a
Essas diferenças constituem espécies distintas? – Certamente que não,
todas são da mesma família. Por acaso, diferentes variedades de um mesmo
fruto deixam de pertencer à mesma espécie?
54 Se a espécie humana não procede de um
só indivíduo, os homens devem deixar por isso de se considerarem irmãos?
– Todos os homens são irmãos perante Deus, porque são animados pelo
Espírito e tendem para o mesmo objetivo. Por que razão deveis sempre
tomar as palavras ao pé da letra?
PLURALIDADE DOS MUNDOS
55 Todos os globos que circulam no espaço
são habitados? – Sim, e o homem da Terra está longe de ser, como pensa,
o primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Entretanto, há homens
que se julgam superiores a tudo e imaginam que somente este pequeno
globo tem o privilégio de ter seres racionais. Orgulho e vaidade!
Acreditam que Deus criou o universo só para eles. ? Deus povoou os
mundos com seres vivos, todos convergindo para o objetivo final da
Providência. Acreditar que só existem seres vivos no planeta que
habitamos seria colocar em dúvida a sabedoria de Deus, que não faz nada
inútil. A cada um desses mundos Deus deve ter dado uma destinação mais
séria do que divertir as nossas vistas. Nada, aliás, nem pela posição,
nem pelo volume, nem pela constituição física da Terra, pode
razoavelmente fazer supor que seja a única a ter o privilégio de ser
habitada, com exclusão de tantos milhares de mundos semelhantes.
56 A constituição física dos diferentes globos é a mesma? – Não. Não se assemelham em nada.
57 Como a constituição física dos mundos
não é a mesma, podemos concluir que os seres que os habitam têm corpos e
uma organização diferente? – Sem dúvida, como entre vós os peixes são
feitos para viver na água e os pássaros, no ar.
58 Os mundos mais afastados do Sol são
privados da luz e do calor, já que o Sol apenas se mostra para eles com a
aparência de uma estrela?
– Acreditais então que não há outras
fontes de luz e de calor além do Sol, e não considerais o valor e a
importância da eletricidade que, em alguns mundos, desempenha um papel
que vos é desconhecido e muito mais importante do que na Terra? Aliás,
já dissemos que os seres desses mundos não são nem da mesma matéria nem
têm os órgãos dispostos como os vossos. ? As condições de existência dos
seres que habitam os diferentes mundos devem ser apropriadas ao meio em
que vivem. Se nunca tivéssemos visto peixes, não compreenderíamos que
seres pudessem viver na água. É assim em outros mundos, que contêm, sem
dúvida, elementos que nos são desconhecidos. Não vemos, na Terra, longas
noites polares iluminadas pela eletricidade das auroras boreais4 ? O
que há de impossível em que, em certos mundos, a eletricidade seja mais
abundante do que na Terra e tenha aplicações e funções, cujos efeitos
não podemos compreender? Esses mundos podem, portanto, conter em si
mesmos as fontes de calor e de luz necessárias aos seus habitantes.
CONSIDERAÇÕES E CONCORDÂNCIAS BÍBLICAS A RESPEITO DA CRIAÇÃO
59 Os povos formaram ideias muito
divergentes a respeito da Criação, conforme o grau de seus
conhecimentos. A razão, apoiada na ciência, reconheceu a impossibilidade
e a contradição de algumas teorias. O ensinamento dos Espíritos a esse
respeito confirma a opinião desde há muito tempo admitida pelos homens
mais esclarecidos. A objeção que se pode fazer a essa teoria é que está
em contradição com o texto dos livros bíblicos, mas um exame sério fará
reconhecer que essa contradição é mais aparente do que real e resulta da
interpretação dada a certas passagens dos textos que em geral têm um
sentido alegórico, figurado. A questão do primeiro homem, Adão, ter sido
a única fonte que originou a humanidade não é o único ponto sobre o
qual as crenças religiosas tiveram que se modificar. O movimento da
Terra pareceu, em certa época, de tal modo oposto ao texto bíblico que
não houve forma de perseguição da qual essa teoria não tenha sido o
pretexto e, entretanto, a Terra gira, apesar dos anátemas5 , e ninguém
hoje poderia contestá-lo sem depreciar a sua própria razão e submeter-se
ao ridículo. A Bíblia diz igualmente que o mundo foi criado em seis
dias e fixa a época da criação por volta de 40006 anos antes da Era
Cristã. Antes disso, a Terra não existia, ela foi tirada do nada; o
texto é formal, é claro.
Mas, eis que a ciência positiva, a
ciência inabalável, vem provar o contrá- rio. A formação do globo está
gravada em caracteres nítidos e indiscutíveis no mundo fóssil 7 , e está
provado que os seis dias da criação representam períodos que podem
constituir-se, cada um, de centenas de milhares de anos. Isso não é um
sistema, doutrina, ou opinião isolada; é um fato tão constatado quanto o
movimento da Terra, que a teologia8 não pode recusar-se a admitir,
prova evidente do erro em que se está sujeito a cair por tomar ao pé da
letra as expressões de uma linguagem frequentemente figurada. Devemos
por isso concluir que a Bíblia está errada? Não. Mas podemos concluir
que os homens, em muitos pontos, se enganaram ao interpretá-la. A
ciência, ao escavar os arquivos da Terra, descobriu a ordem em que os
diferentes seres vivos apareceram na sua superfície, e essa ordem está
de acordo com a que é indicada na Gênese9 , com a diferença de que toda a
Criação, em vez de ter saído miraculosamente das mãos de Deus em
algumas horas, conforme está escrito no Gênese, se realizou sempre pela
Sua vontade, mas de acordo com a lei das forças da natureza, em alguns
milhões de anos. Deus é por isso menor e menos poderoso? Sua obra é
menos sublime por não ter o prestígio da instantaneidade? Evidente que
não. Seria preciso fazer da Divindade uma ideia bem mesquinha para não
reconhecer Seu grande poder nas leis eternas que estabeleceu para reger
os mundos. A ciência, longe de diminuir a obra divina, mostra-a sob um
aspecto mais grandioso e mais em conformidade com as noções que temos do
poder e da majestade de Deus, em razão de ter se realizado sem anular
as leis da natureza. A ciência, neste ponto concordante com Moisés,
coloca o homem em último lugar na ordem da criação dos seres vivos; mas,
enquanto Moisés, no Gênese, põe o dilúvio universal no ano de 1654 após
a Criação, a Geologia nos mostra o grande cataclismo10 anterior ao
aparecimento do homem na Terra. Até hoje não se encontrou nas camadas
primitivas do globo nenhum indício nem da presença do homem nem de
animais da mesma categoria do ponto de vista físico. Mas nada prova que
isso seja impossível. Muitas descobertas já lançaram dúvidas a esse
respeito. Pode-se, portanto, de um momento para outro, adquirir a
certeza material dessa anterioridade da raça humana, e então se
reconhecerá que, sobre esse ponto, como em outros, o texto bíblico é um
símbolo, uma representação. A questão é saber se o cataclismo geológico é
o mesmo que atingiu Noé. O certo é que a duração necessária à formação
das camadas fósseis não permite confundi-los, e a partir do momento que
se tiverem encontrado traços da existência do homem antes da grande
catástrofe, ficará provado ou que Adão não foi o primeiro homem, ou que
sua criação se perde na noite dos tempos. Contra fatos não há argumentos
possíveis e será preciso aceitar esses fatos, como se aceitou o do
movimento da Terra e os seis períodos da Criação. A existência do
homem11 antes do dilúvio geológico, na verdade, ainda é hipotética12,
mas eis aqui um detalhe que revela que não é assim. Ao admitir que o
homem tenha aparecido pela primeira vez sobre a Terra 4000 anos antes de
Cristo, e que, 1650 anos mais tarde, toda a raça humana tenha sido
destruída, com exceção de uma única família, resulta que o povoamento da
Terra ocorreu somente a partir de Noé, ou seja, 2350 anos antes de
nossa era. Porém, quando os hebreus emigraram para o Egito no décimo
oitavo século, encontraram esse país muito povoado e já muito avançado
em civilização. A História prova que nessa época também a Índia e outros
países estavam igualmente florescentes, sem mesmo se levar em conta a
cronologia de alguns outros povos que remonta a uma época ainda bem mais
antiga. Teria sido preciso, portanto, que do vigésimo quarto ao décimo
oitavo século, ou seja, no espaço de 600 anos, não somente os
descendentes de um único homem pudessem povoar todos os imensos países
então conhecidos, supondo que os outros não o fossem, mas também que,
nesse curto espaço de tempo, a espécie humana pudesse se elevar da
ignorância absoluta do estado primitivo ao mais alto grau do
desenvolvimento intelectual, o que é contrário a todas as leis
antropológicas13. A diversidade das raças vem, ainda, em apoio a essa
opinião. O clima e os costumes, sem dúvida, produzem modificações no
caráter físico, mas sabe-se até onde pode chegar a influência dessas
causas, e o exame fisiológico14 prova que há entre algumas raças
diferenças mais profundas do que o clima pode produzir na constituição
física do homem. O cruzamento das raças origina os tipos intermediários.
Ele tende a apagar os caracteres extremos, primitivos, mas não os
produz; apenas cria variedades. Portanto, em vista disso, para que
houvesse cruzamento de raças, seria preciso que houvesse raças
distintas. Como explicar a existência de raças tão distintas se lhes
dermos uma origem comum e sobretudo tão próxima? Como admitir que, em
poucos séculos, alguns descendentes de Noé fossem transformados a ponto
de produzir, por exemplo, a raça etíope? Uma transformação desse porte é
tão pouco admissível quanto a hipótese de terem uma mesma origem o lobo
e o cordeiro, o elefante e o pulgão, o pássaro e o peixe. Mais uma vez:
nada pode prevalecer contra a evidência dos fatos. Tudo se explica, ao
contrário, se admitirmos que a existência do homem é anterior à época
que lhe é vulgarmente assinalada; a diversidade das origens; que Adão,
que viveu há seis mil anos, tenha povoado uma região ainda desabitada;
que o dilúvio de Noé foi uma catástrofe parcial e que foi considerada
como um cataclismo geológico e, finalmente, atentando para o fato da
forma de linguagem alegórica própria do estilo oriental e que se
encontra nos livros sagrados de todos os povos. Por isso é prudente não
acusar apressadamente de falsas as doutrinas que podem cedo ou tarde,
como tantas outras, desmentir aqueles que as combatem. As idéias
religiosas, em vez de perder, se engrandecem ao marchar com a ciência.
Esse é o único meio de não mostrar ao ceticismo um lado vulnerável.
CAPÍTULO 4
PRINCÍPIO VITAL
Seres orgânicos e inorgânicos
– A vida e a morte
– Inteligência e instinto
SERES ORGÂNICOS E INORGÂNICOS
Os seres orgânicos são os que têm em si
uma fonte de atividade íntima que lhes dá a vida. Eles nascem, crescem,
se reproduzem por si mesmos e morrem. São providos de órgãos especiais
para a realização dos diferentes atos da vida, apropriados às suas
necessidades de conservação. Os homens, os animais e as plantas são
seres orgânicos. Seres inorgânicos são todos os que não têm nem
vitalidade, nem movimentos próprios e são formados apenas pela agregação
da matéria; são os minerais, a água, o ar, etc. 60 É a mesma força que
une os elementos da matéria nos corpos orgânicos e inorgânicos? – Sim, a
lei de atração é a mesma para tudo.
61 Há uma diferença entre a matéria dos
corpos orgânicos e a dos inorgânicos? – A matéria é sempre a mesma, mas
nos corpos orgânicos está animalizada.
62 Qual é a causa da animalização da matéria? – Sua união com o princípio vital.
63 O princípio vital é um agente
particular ou é apenas uma propriedade da matéria organizada? Numa
palavra, é um efeito ou uma causa? – Uma e outra. A vida é um efeito
produzido pela ação de um agente sobre a matéria. Esse agente, sem a
matéria, não é vida, do mesmo modo que a matéria não pode viver sem esse
agente. O princípio vital dá a vida a todos os seres que o absorvem e
assimilam.
64 Vimos que o Espírito e a matéria são
dois elementos constituintes do universo. O princípio vital forma um
terceiro? – É, sem dúvida, um dos elementos necessários à constituição
do universo, mas ele mesmo tem sua fonte na matéria universal
modificada. É um elemento, como para vós o oxigênio e o hidrogênio que,
entretanto, não são elementos primitivos, embora tudo isso proceda de um
mesmo princípio.
64 a Disso parece resultar que a
vitalidade não tem seu princípio num agente primitivo distinto, mas numa
propriedade especial da matéria universal, em razão de algumas
modificações? – É a consequência do que dissemos.
65 O princípio vital reside em algum dos
corpos que conhecemos? – Tem sua fonte no fluido universal. É o que
chamais fluido magnético ou fluido elétrico animalizado. Ele é o
intermediário, o elo entre o Espírito e a matéria.
66 O princípio vital é o mesmo para todos
os seres orgânicos? – Sim, modificado conforme as espécies. É o que
lhes dá movimento e atividade e os distingue da matéria inerte, uma vez
que o movimento da matéria não é a vida. A matéria recebe esse
movimento, não o dá.
67 A vitalidade é um atributo permanente
do agente vital ou apenas se desenvolve pelo funcionamento dos órgãos? –
Apenas se desenvolve com o corpo. Não dissemos que esse agente sem a
matéria não é a vida? É preciso a união das duas coisas para produzir a
vida.
67 a Pode-se dizer que a vitalidade está
em estado latente, quando o agente vital não está unido ao corpo? – Sim,
é isso. ? O conjunto dos órgãos constitui uma espécie de mecanismo que
recebe um estímulo de atividade íntima ou princípio vital que existe
neles. O princípio vital é a força motriz dos corpos orgânicos. Ao mesmo
tempo que o agente vital estimula os órgãos, a ação deles mantém e
desenvolve a atividade do agente vital, quase do mesmo modo como o
atrito produz o calor.
68 Qual é a causa da morte entre os seres
orgânicos? – O esgotamento dos órgãos. Podemos comparar a morte com o
cessar do movimento numa máquina desarranjada? – Sim; se a máquina está
mal montada, o movimento cessa; se o corpo está doente, a vida se
extingue.
69 Por que uma lesão do coração causa a
morte mais do que em qualquer outro órgão? – O coração é a máquina da
vida, mas não é o único órgão cuja lesão ocasiona a morte. É somente uma
das peças essenciais.
70 O que acontece com a matéria e o
princípio vital dos seres orgânicos quando eles morrem? – A matéria sem
atividade se decompõe e vai formar novos organismos. O princípio vital
retorna à sua origem, à sua fonte. ? Quando o ser orgânico morre, os
elementos que o constituíam passam a fazer parte de novas combinações e
participam na formação de novos seres, que por sua vez passam a tirar da
fonte universal o princí- pio da vida e da atividade, o absorvem e
assimilam para novamente devolvê-lo a essa fonte quando deixarem de
existir.
Os órgãos estão, por assim dizer,
impregnados de fluido vital que dá a todas as partes do organismo uma
atividade geradora da união entre elas, e, no caso de lesões,
restabelece as funções que estavam momentaneamente danificadas. Mas
quando os elementos essenciais ao funcionamento dos órgãos são
destruídos, ou muito profundamente desarranjados, o fluido vital é
incapaz de transmitir o movimento da vida, e o ser morre. Mais ou menos
por uma ação inevitável e forçosa os órgãos reagem uns sobre os outros. É
da harmonia de seu conjunto que resulta sua ação mútua. Quando, por
qualquer causa, essa harmonia é destruída, suas funções param como o
movimento de uma máquina cujas peças principais se desarranjaram. Como
um relógio que se desgasta com o tempo ou quebra por acidente, e ao qual
a força motriz é incapaz de pôr em movimento. Temos uma imagem mais
exata da vida e da morte num aparelho elétrico. Esse aparelho, como
todos os corpos da natureza, possui eletricidade em estado latente. Os
fenômenos elétricos somente se manifestam quando o fluido é colocado em
atividade por uma causa especial. Então, poderíamos dizer que o aparelho
está vivo. Parando a causa da atividade, o fenômeno cessa: o aparelho
volta ao estado de inércia. Os corpos orgânicos seriam, assim, uma
espécie de pilhas ou aparelhos elétricos nos quais a atividade do fluido
produz o fenômeno da vida. A paralisação dessa atividade produz a
morte. A quantidade de fluido vital não é precisamente a mesma para
todos os seres orgânicos. Ela varia de acordo com as espécies e não é
constante, seja no mesmo indivíduo ou em indivíduos da mesma espécie. Há
os que são, por assim dizer, saturados desse fluido, enquanto outros
possuem apenas uma quantidade suficiente; daí, para alguns a vida mais
ativa, mais tenaz e, de certo modo, superabundante. A quantidade de
fluido vital se esgota. Pode tornar-se insuficiente para a manutenção da
vida se não for renovada pela absorção e assimilação das substâncias
que o contêm. O fluido vital se transmite de um indivíduo para outro.
Aquele que tem mais pode dar para quem tem menos e, em alguns casos,
restabelecer a vida prestes a se extinguir.
INTELIGÊNCIA E INSTINTO
71 A inteligência é um atributo do
princípio vital? – Não, uma vez que as plantas vivem e não pensam:
apenas têm a vida orgânica. A inteligência e a matéria são
independentes, uma vez que um corpo pode viver sem inteligência. Porém, a
inteligência só pode manifestar-se por meio dos órgãos materiais. É
preciso a união com o Espírito para prover de inteligência a matéria
animalizada. ? A inteligência é um dom especial, próprio de algumas
classes de seres orgânicos e que lhes dá, com o pensamento, a vontade de
agir, a consciência de sua existência e de sua individualidade, assim
como os meios de estabelecer relações com o mundo exterior e de proverem
as suas necessidades. Podem distinguir-se assim: 1º) os seres
inanimados, formados apenas de matéria, sem vitalidade nem inteligência:
são os corpos brutos; 2º) os seres animados que não pensam, formados de
matéria e dotados de vitalidade, mas desprovidos de inteligência; 3º)
os seres animados pensantes, formados de matéria, dotados de vitalidade e
tendo a mais um princípio inteligente que lhes dá a faculdade de
pensar.
72 Qual é a fonte da inteligência? – Já o dissemos: a inteligência universal.
72 a Podemos, então, dizer que cada ser
tira uma porção de inteligência da fonte universal e a assimila, como
tira e assimila o princí- pio da vida material? – Isso é apenas uma
comparação, mas não é exata. A inteligência é um dom próprio de cada ser
e constitui sua individualidade moral. Por fim, há coisas que não são
dadas ao homem penetrar, e essa por enquanto é uma delas.
73 O instinto é independente da
inteligência? – Não, precisamente, mas ele é uma espécie de
inteligência. O instinto é uma inteligência não-racional. É por meio
dele que todos os seres provêm as suas necessidades.
74 Pode-se assinalar um limite entre o
instinto e a inteligência, ou seja, perceber onde um acaba e a outra
começa? – Não, porque frequentemente se confundem. Mas pode-se muito bem
distinguir os atos do instinto dos da inteligência.
75 É exato dizer que os dons instintivos
diminuem à medida que aumentam os intelectuais? – Não; o instinto sempre
existe, mas o homem o despreza. O instinto também pode conduzir ao bem.
Ele nos guia, quase sempre, mais seguramente do que a razão. Nunca se
engana.
75 a Por que a razão não é sempre um guia
infalível? – Ela seria infalível se não fosse falseada pela má
educação, pelo orgulho e pelo egoísmo. O instinto não raciocina; a razão
permite a escolha e dá ao homem o livre-arbítrio. O instinto é uma
inteligência rudimentar em que as manifestações são quase sempre
espontâneas, e difere da inteligência propriamente dita, cujas
manifestações expressam uma avaliação de um ato deliberado que sofreu
exame interior. O instinto varia em suas manifestações quanto às
espécies e às suas necessidades. Entre os seres que têm a consciência e a
percepção das coisas exteriores, ele se alia à inteligência, quer
dizer, à vontade e à liberdade.
PARTE SEGUNDA
MUNDO ESPÍRITA OU DOS ESPÍRITOS
CAPÍTULO 1
DOS ESPÍRITOS
Origem e natureza dos Espíritos – Mundo
normal primitivo – Forma e ubiquidade dos Espíritos – Períspirito –
Diferentes ordens de Espíritos – Escala espírita – Terceira ordem -
Espíritos imperfeitos – Segunda ordem - Bons Espíritos – Primeira ordem -
Espíritos puros – Progressão dos Espíritos – Anjos e demônios.
ORIGEM E NATUREZA DOS ESPÍRITOS
76 Que definição se pode dar dos
Espíritos? – Pode-se dizer que os Espíritos são os seres inteligentes da
Criação. Eles povoam o universo, fora do mundo material. ? Nota: A
palavra Espírito é empregada aqui para designar a individualidade e não
mais o elemento inteligente universal.
77 Os Espíritos são seres distintos da
Divindade ou seriam somente emanações ou porções da Divindade e
chamados, por essa razão, filhos de Deus? – Meu Deus! São obras de Deus.
Exatamente como um homem que faz uma máquina, essa máquina é a obra do
homem, mas não é ele próprio. Quando o homem faz uma coisa bela, útil, a
chama sua filha, sua criação. Pois bem! Ocorre o mesmo com Deus: somos
seus filhos, porque somos sua obra.
78 Os Espíritos tiveram um princípio, ou
são como Deus, de toda a eternidade? – Se os Espíritos não tivessem tido
um princípio, seriam iguais a Deus. São sua criação e submissos à Sua
vontade. Deus existe de toda a eternidade, isso é incontestável. Mas
saber quando e como nos criou, não sabemos nada. Podeis dizer que não
tivemos princípio, se entenderdes com isso que Deus, sendo eterno, tem
criado sem descanso. Mas quando e como cada um de nós foi criado,
repito, ninguém o sabe: esse é o mistério.
79 Uma vez que há dois elementos gerais
no universo: o inteligente e o material, pode-se dizer que os Espíritos
são formados do elemento inteligente, como os corpos inertes são
formados do elemento material?
– É evidente. Os Espíritos são a
individualização do princípio inteligente, como os corpos são a
individualização do princípio material. A época e o modo dessa formação é
que são desconhecidos.
80 A criação dos Espíritos é permanente, ou só ocorreu no início dos tempos? – É permanente, Deus nunca parou de criar.
81 Os Espíritos se formam
espontaneamente, ou procedem uns dos outros? – Deus os cria, como a
todas as outras criaturas, por sua vontade. Mas, repito mais uma vez,
sua origem é um mistério.
82 É exato dizer que os Espíritos são
imateriais? – Como podemos definir uma coisa quando não temos termos de
comparação e com uma linguagem insuficiente? Pode um cego de nascença
definir a luz? Imaterial não é bem a palavra, incorpóreo seria mais
exato, porque deveis compreender bem que o Espírito, sendo uma criação,
deve ser alguma coisa. É uma matéria puríssima, mas sem comparação ou
semelhança para vós, e tão etérea que não pode ser percebida pelos
vossos sentidos. ? Dizemos que os Espíritos são imateriais, porque sua
essência difere de tudo o que conhecemos como matéria. Uma comunidade de
cegos não teria termos para exprimir a luz e seus efeitos. O cego de
nascença acredita ter todas as percepções pela audição, pelo olfato,
pelo paladar e pelo tato. Ele não compreende as ideias que lhe dariam o
sentido que lhe falta. Do mesmo modo, em relação à essência dos seres
sobre-humanos, somos como verdadeiros cegos. Podemos defini-los somente
por comparações sempre imperfeitas, ou por um esforço de nossa
imaginação.
83 Compreende-se que o princípio de onde
emanam os Espíritos seja eterno, mas o que perguntamos é se sua
individualidade tem um fim e se, num dado momento, mais ou menos longo, o
elemento do qual são formados se dispersa e retorna à massa de onde
saiu, como acontece com os corpos materiais. É difícil compreender que
uma coisa que começou não possa acabar. Os Espíritos têm um fim? – Há
coisas que não compreendeis, porque a vossa inteligência é limitada. Mas
isso não é razão para serem rejeitadas. A criança não compreende tudo o
que seu pai compreende, nem o ignorante tudo o que compreende o sábio.
Nós vos dizemos que a existência dos Espíritos não acaba; é tudo o que,
por agora, podemos dizer.
MUNDO NORMAL PRIMITIVO
84 Os Espíritos constituem um mundo à
parte, fora daquele que vemos? – Sim, o mundo dos Espíritos ou das
inteligências incorpóreas.
85 Qual dos dois é o principal na ordem
das coisas: o mundo espiritual ou o mundo corporal? – O mundo
espiritual, que preexiste e sobrevive a tudo.
86 O mundo corporal poderia deixar de
existir, ou nunca ter existido, sem alterar a essência do mundo
espiritual? – Sim, eles são independentes e, entretanto, sua correlação é
incessante, porque reagem incessantemente um sobre o outro.
87 Os Espíritos ocupam uma região
determinada e circunscrita no espaço? – Os Espíritos estão em todos os
lugares, povoam infinitamente os espaços. Estão sempre ao vosso lado,
vos observam e agem entre vós sem os perceberdes, porque os Espíritos
são uma das forças da natureza e os instrumentos dos quais Deus se serve
para a realização de Seus desígnios providenciais. Mas nem todos vão a
todos os lugares, porque há regiões interditadas aos menos avançados.
FORMA E UBIQUIDADE DOS ESPÍRITOS
88 Os Espíritos têm uma forma
determinada, limitada e constante? – A vossos olhos, não; aos nossos,
sim. O Espírito é, se quiserdes, uma chama, um clarão ou uma centelha
etérea.
88 a Essa chama ou centelha tem uma cor
qualquer? – Para vós, ela varia do escuro ao brilho do rubi, conforme
seja o Espírito mais ou menos puro. ? É costume representarem-se os
gênios com uma chama ou uma estrela sobre a fronte. É uma alegoria que
lembra a natureza essencial dos Espíritos. Coloca-se no alto da cabeça,
porque é aí a sede da inteligência. 89 Os Espíritos gastam algum tempo
para percorrer o espaço? – Sim; porém, rápido como o pensamento.
89 a O pensamento não é a própria alma
que se transporta? – Quando o pensamento está em algum lugar, a alma
está também, uma vez que é a alma que pensa. O pensamento é um atributo
da alma.
90 O Espírito que se transporta de um
lugar a outro tem consciência da distância que percorre e dos espaços
que atravessa, ou é subitamente transportado para o lugar aonde quer ir?
– Ocorrem ambas as coisas. O Espírito pode muito bem, se o quiser, se
dar conta da distância que percorre, mas essa distância pode também não
ser sentida e até completamente despercebida. Isso depende de sua
vontade e de sua natureza mais ou menos depurada.
91 A matéria oferece algum obstáculo aos
Espíritos? – Não, eles penetram em tudo: o ar, a terra, as águas e até
mesmo o fogo lhes são igualmente acessíveis.
92 Os Espíritos têm o dom da ubiqüidade,
ou, em outras palavras, o mesmo Espírito pode se dividir ou estar em
vários pontos ao mesmo tempo? – Não pode haver divisão do mesmo
Espírito. Mas cada um é um centro que se irradia para diferentes lados e
é por isso que parece estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Vedes o
Sol, é apenas um e, entretanto, irradia-se em todos os sentidos e leva
seus raios para muito longe. Apesar disso, não se divide.
92 a Todos os Espíritos se irradiam com o
mesmo poder? – Longe disso. Isso depende do grau de pureza de cada um. ?
Cada Espírito é uma unidade indivisível, mas cada um deles pode
estender seu pensamento para muitos lugares sem com isso se dividir. É
apenas nesse sentido que se deve entender o dom da ubiquidade atribuído
aos Espíritos; como uma centelha que projeta ao longe sua claridade e
pode ser percebida de todos os pontos do horizonte; ou, ainda, como um
homem que, no mesmo lugar e sem se dividir, pode transmitir ordens,
sinais e movimento para diferentes pontos.
PERISPÍRITO
93 O Espírito, propriamente dito, não tem
nenhuma cobertura, ou como pretendem alguns, é envolvido por alguma
substância? – O Espírito é envolvido por uma substância vaporosa para
vós, mas ainda bem grosseira para nós; é suficientemente vaporosa para
poder se elevar na atmosfera e se transportar para onde quiser. ? Assim
como nas sementes o germe do fruto é envolvido pelo perisperma2 , do
mesmo modo o Espírito, propriamente dito, é revestido de um envoltório
que, por comparação, pode-se chamar períspirito.
94 De onde o Espírito tira seu envoltório
semi-material? – Do fluido universal de cada globo. É por isso que não é
igual em todos os mundos. Ao passar de um mundo a outro, o Espírito
muda de envoltório, como trocais de roupa.
94 a Assim, quando os Espíritos que
habitam os mundos superiores vêm até nós, revestem-se de um períspirito
mais grosseiro? – É preciso que se revistam de vossa matéria, como já
dissemos.
95 O envoltório semi-material do Espírito
tem formas determinadas e pode ser perceptível? – Sim, tem a forma que
lhe convém. É assim que se apresenta, algumas vezes, nos sonhos, ou
quando estais acordados, podendo tomar uma forma visível e até mesmo
palpável.
DIFERENTES ORDENS DE ESPÍRITOS
96 Os Espíritos são iguais ou há entre
eles alguma hierarquia? – Eles são de diferentes ordens, de acordo com o
grau de perfeição a que chegaram.
97 Há um número determinado de ordens ou
de graus de perfeição entre os Espíritos? – O número é ilimitado. Não há
entre essas ordens uma linha de demarcação como limite, e, assim, as
divisões podem ser multiplicadas ou restringidas à vontade. No entanto,
considerando-se as características gerais, podem reduzir-se a três
principais. Em primeiro lugar, os que chegaram à perfeição: os Espíritos
puros. Os da segunda ordem são os que atingiram o meio da escala: o
desejo do bem é sua preocupação. Os do último grau, ainda no início da
escala, são os Espíritos imperfeitos, caracterizados pela ignorância,
pelo desejo do mal e por todas as más paixões que retardam seu
adiantamento.
98 Os Espíritos da segunda ordem têm
apenas o desejo do bem, ou terão também o poder de praticá-lo? – Têm
esse poder segundo o grau de sua perfeição: uns têm a ciência, outros a
sabedoria e a bondade, mas todos ainda têm provas a cumprir.
99 Os Espíritos da terceira ordem são
todos essencialmente maus? – Não; uns não fazem o bem nem o mal; outros,
ao contrário, se satisfazem no mal e sentem prazer quando encontram a
ocasião de o fazer. E há ainda os Espíritos levianos ou zombadores, mais
brincalhões do que maus, que se satisfazem antes na malícia do que na
maldade e que encontram prazer em mistificar e causar pequenas
contrariedades das quais se riem.
ESCALA ESPÍRITA
100 Observações preliminares: A
classificação dos Espíritos é baseada no grau de seu adiantamento, nas
qualidades que adquiriram e nas imperfeições de que ainda devam se
livrar. Essa classificação não tem nada de absoluto. Cada categoria
apenas apresenta um caráter nítido em seu conjunto, mas de um grau a
outro a transição é insensível e nos extremos as diferenças se apagam
como nos reinos da natureza, nas cores do arco- íris, ou, ainda, como
nos diferentes períodos da vida do homem. Pode-se formar um número de
classes mais ou menos grande, segundo o ponto de vista de que se
considere a questão. Ocorre o mesmo com todos os sistemas de
classificações científicas: esses sistemas podem ser mais ou menos
completos, mais ou menos racionais, mais ou menos cômodos para a
inteligência, mas, quaisquer que sejam, não mudam em nada as bases da
ciência. Assim, os Espíritos interrogados sobre esse ponto puderam
variar no número de categorias sem que isso tenha consequências.
Armaram-se alguns contestadores da Doutrina com essa contradição
aparente, sem refletir que os Espíritos não dão nenhuma importância ao
que é puramente convencional. Para eles, o pensamento é tudo. Deixam
para nós a forma, a escolha dos termos, as classificações, numa palavra,
os sistemas. Acrescentamos ainda esta consideração, que jamais se deve
perder de vista: é que entre os Espíritos, assim como entre os homens,
há os muito ignorantes, e nunca será demais se prevenir contra a
tendência de acreditar que todos devem saber tudo só porque são
Espíritos. Qualquer classificação exige método, análise e conhecimento
profundo do assunto. Portanto, no mundo dos Espíritos, aqueles que têm
conhecimentos limitados são, como na Terra, os ignorantes, incapazes de
abranger um conjunto para formular um sistema. Só imperfeitamente
conhecem ou compreendem uma classificação qualquer. Para eles, todos os
Espíritos que lhes são superiores são de primeira ordem, sem que possam
apreciar as diferenças de saber, capacidade e moralidade que os
distinguem entre si, como faria entre nós um homem rude em relação aos
homens civilizados. Mesmo os que têm capacidade de o fazer podem variar
nos detalhes, de acordo com seus pontos de vista, principalmente quando
uma divisão como esta não tem limites fixados, nada de absoluto. Lineu,
Jussiel e Tournefort proclamaram, cada um, seu método, e a botânica não
se alterou em nada por causa disso. É que o método deles não inventou as
plantas, nem seus caracteres. Eles apenas observaram as semelhanças e
funções com as quais depois formaram grupos ou classes. Da mesma maneira
procedemos nós. Não inventamos os Espíritos, nem seus caracteres. Vimos
e observamos. Nós os julgamos por suas palavras e seus atos, depois os
classificamos por semelhanças, baseando-nos em dados que eles próprios
nos forneceram. Os Espíritos admitem geralmente três categorias
principais ou três grandes divisões. Na última, a que está no início da
escala, estão os Espíritos imperfeitos, caracterizados pela
predominância da matéria sobre o Espírito e pela propensão ao mal. Os da
segunda são caracterizados pela predominância do Espírito sobre a
matéria e pelo desejo do bem: esses são os bons Espíritos. Os da
primeira categoria atingiram o grau supremo da perfeição: são os
Espíritos puros. Essa divisão nos parece perfeitamente racional e
apresenta características bem definidas. Só nos faltava ressaltar,
mediante um número suficiente de subdivisões, as diferenças principais
do conjunto. Foi o que fizemos com o auxílio dos Espíritos, cujas
instruções benevolentes nunca nos faltaram. Com o auxílio desse quadro
será fácil determinar a categoria e o grau de superioridade ou
inferioridade dos Espíritos com os quais podemos entrar em contato e,
por conseguinte, o grau de confiança e de estima que merecem. É de certo
modo a chave da ciência espírita, visto que apenas ele pode nos
explicar as anomalias, as diferenças que apresentam as comunicações, ao
nos esclarecer sobre as desigualdades intelectuais e morais dos
Espíritos. Observaremos, todavia, que nem sempre os Espíritos pertencem
exclusivamente a esta ou aquela classe. Seu progresso apenas se realiza
gradualmente e, muitas vezes, mais num sentido do que em outro, e podem
reunir as características de mais de uma categoria, o que se pode notar
por sua linguagem e seus atos.
TERCEIRA ORDEM ESPÍRITOS IMPERFEITOS
101 Características gerais –
Predominância da matéria sobre o Espírito. Propensão ao mal. Ignorância,
orgulho, egoísmo e todas as más paixões que são suas consequências.
Eles têm a intuição de Deus, mas não o compreendem. Nem todos são
essencialmente maus. Entre alguns há mais leviandade, inconsequência e
malícia do que verdadeira maldade. Alguns não fazem o bem nem o mal;
mas, apenas pelo fato de não fazerem o bem, já demonstram sua
inferioridade. Outros, ao contrário, se comprazem no mal e ficam
satisfeitos quando encontram a ocasião de o fazer. Podem aliar a
inteligência à maldade ou à malícia; mas qualquer que seja seu
desenvolvimento intelectual, suas ideias são pouco elevadas e seus
sentimentos mais ou menos inferiores. Seus conhecimentos sobre as coisas
do mundo espírita são limitados e o pouco que sabem se confunde com as
ideias e os preconceitos da vida corporal. Eles podem nos dar apenas
noções falsas e incompletas, mas o observador atento encontra, muitas
vezes, em suas comunicações imperfeitas, a confirmação das grandes
verdades ensinadas pelos Espíritos Superiores. Seu caráter se revela
pela sua linguagem. Todo Espírito que em suas comunicações revela um mau
pensamento pode ser classificado na terceira ordem. Por consequência,
todo mau pensamento que nos é sugerido vem de um Espírito dessa ordem.
Eles vêem a felicidade dos bons e isso é, para eles, um tormento
incessante, porque sentem todas as agonias que originam a inveja e o
ciúme. Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida
corporal e essa impressão é, muitas vezes, mais dolorosa do que a
realidade. Sofrem, verdadeiramente, pelos males que suportaram em vida e
pelos que fizeram os outros sofrer. E como sofrem por longo tempo,
acreditam que irão sofrer para sempre. A Providência, para puni-los,
permite que assim pensem3 . Pode-se dividi-los em cinco classes
principais:
102 Décima classe. Espíritos Impuros –
São inclinados ao mal e fazem dele o objeto de suas preocupações. Como
Espíritos, dão conselhos falsos, provocam a discórdia e a desconfiança e
se mascaram de todas as formas para melhor enganar. Eles se ligam às
pessoas de caráter mais fraco, que cedem às suas sugestões, a fim de
prejudicá-los, satisfeitos em poder retardar o seu adiantamento e
fazê-las fracassar nas provas por que passam. Nas manifestações, esses
espíritos são reconhecidos pela linguagem. A trivialidade e a grosseria
das expressões, entre os Espíritos como entre os homens, é sempre um
indício de inferioridade moral ou intelectual. Suas comunicações revelam
a baixeza de suas inclinações e, se tentam enganar ao falar de uma
maneira sensata, não podem sustentar esse papel por muito tempo, e
acabam sempre por denunciar a sua origem. Alguns povos fizeram desses
Espíritos divindades malfazejas; outros os designaram sob o nome de
demônios, maus gênios, espíritos do mal. Quando estão encarnados, são
inclinados a todos os vícios que geram as paixões vergonhosas e
degradantes: a sensualidade, a crueldade, a mentira, a hipocrisia, a
cobiça e a avareza sórdida. Fazem o mal pelo prazer de fazê-lo e, muitas
vezes, sem motivos e por ódio ao bem, escolhem quase sempre suas
vítimas entre as pessoas honestas. São flagelos para a humanidade, seja
qual for a posição da sociedade a que pertençam, e o verniz da
civilização não os livra da baixeza e da desonra.
103 Nona classe. Espíritos Levianos – São
ignorantes, maliciosos, inconsequentes e zombeteiros. Envolvem-se em
tudo, respondem a tudo, sem se preocupar com a verdade. Comprazem-se em
causar pequenos desgostos e pequenas alegrias, atormentar e induzir
maliciosamente ao erro por meio de mistificações e espertezas. A esta
classe pertencem os Espíritos vulgarmente designados sob os nomes de
duendes, trasgos4 , gnomos, diabretes. Estão sob a dependência dos
Espíritos Superiores, que se utilizam deles, muitas vezes, como fazemos
com os nossos servidores. Nas suas comunicações com os homens, a
linguagem é algumas vezes espirituosa e engraçada, mas quase sempre sem
profundidade. Compreendem os defeitos e o ridículo humanos,
exprimindo-os em tiradas mordazes e satíricas. Se usam nomes supostos, é
mais para se divertir conosco do que por maldade.
104 Oitava classe. Espíritos
Pseudo-Sábios – Seus conhecimentos são bastante amplos, mas acreditam
saber mais do que sabem na realidade. Tendo realizado alguns progressos
sob diversos pontos de vista, sua linguagem tem uma característica séria
que pode induzir ao erro e ocasionar enganos sobre suas capacidades e
seus conhecimentos. Mas isso é apenas um reflexo dos preconceitos e das
ideias sistemáticas que conservam da vida terrena. É uma mistura de
algumas verdades ao lado dos erros mais absurdos, no meio dos quais
sobressai a presunção, o orgulho, a inveja e a obstinação das quais não
puderam se libertar.
105 Sétima classe. Espíritos Neutros –
Não são bastante bons para fazer o bem, nem suficientemente maus para
fazer o mal. Inclinam-se tanto para um quanto para o outro e não se
elevam acima da condição comum da humanidade, tanto pela moral quanto
pela inteligência. Eles se prendem às coisas deste mundo e lamentam a
perda das alegrias grosseiras que nele deixaram.
106 Sexta classe. Espíritos Batedores e
Perturbadores – Estes Espíritos não formam, propriamente falando, uma
classe distinta quanto às qualidades pessoais, podendo pertencer a todas
as classes da terceira ordem. Manifestam, frequentemente, sua presença
por efeitos sensíveis e físicos, como pancadas, o movimento e o
deslocamento anormal dos corpos sólidos, a agitação do ar, etc. Parecem
estar ainda, mais do que outros, ligados à matéria e ser os agentes
principais das variações e transformações das forças e elementos da
natureza no globo, seja ao atuarem sobre o ar, a água, o fogo, os corpos
duros ou nas entranhas da terra. Reconhece-se que esses fenômenos não
se originam de uma causa imprevista e física, quando têm um caráter
intencional e inteligente. Todos os Espíritos podem produzir esses
fenômenos, mas os de ordem elevada os deixam, geralmente, como
atribuições dos subalternos, mais aptos às coisas materiais do que às da
inteligência. Quando julgam que essas manifestações são úteis,
servem-se dos Espíritos dessa classe como seus auxiliares.
SEGUNDA ORDEM BONS ESPÍRITOS
107 Características gerais– Predominância
do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e poder
para fazer o bem estão em conformidade com o grau que alcançaram. Uns
têm a ciência; outros, a sabedoria e a bondade. Os mais adiantados
reúnem o saber às qualidades morais. Não estando ainda completamente
desmaterializados, conservam mais ou menos, de acordo com sua categoria,
os traços da existência corporal, tanto na forma da linguagem quanto
nos costumes, entre os quais se identificam algumas de suas manias. Não
fosse por isso, seriam Espíritos perfeitos. Compreendem Deus e o
infinito e já gozam da felicidade dos bons; são felizes pelo bem que
fazem e pelo mal que impedem. O amor que os une é uma fonte de
felicidade indescritível que não é alterada pela inveja, pelo remorso,
nem por nenhuma das más paixões que fazem o tormento dos Espíritos
imperfeitos. Mas todos ainda têm que passar por provas até que atinjam a
perfeição absoluta.
Como Espíritos, sugerem bons pensamentos,
desviam os homens do caminho do mal, protegem a vida daqueles que se
tornam dignos e neutralizam a influência dos Espíritos imperfeitos sobre
os que não têm por que passar por ela. Quando encarnados são bons e
benevolentes com os seus semelhantes. Não são movidos pelo orgulho,
egoísmo, nem ambição. Não sentem ódio, rancor, inveja ou ciúme e fazem o
bem pelo bem. A esta ordem pertencem os Espíritos designados nas
crenças populares pelos nomes de gênios bons, gênios protetores,
Espíritos do bem. Nos tempos de superstições e ignorância, foram tidos
como divindades benfazejas. Pode-se dividi-los em quatro grupos
principais:
108 Quinta classe. Espíritos Benevolentes
– Sua qualidade dominante é a bondade; satisfazem-se em prestar
serviços aos homens e em protegê-los, mas seu saber é limitado. Seu
progresso é maior no sentido moral do que no intelectual.
109 Quarta classe. Espíritos Prudentes ou
Sábios – O que os distingue especialmente é a abrangência de seus
conhecimentos. Preocupam-se menos com as questões morais do que com as
científicas, para as quais têm mais aptidão. Mas consideram a ciência
somente do ponto de vista da utilidade, livre das paixões que são
próprias dos Espíritos imperfeitos.
110 Terceira classe. Espíritos de
Sabedoria – As qualidades morais do mais elevado grau formam seu
caráter. Sem ter conhecimentos ilimitados, são dotados de uma capacidade
intelectual que lhes dá um julgamento preciso e sábio sobre os homens e
as coisas.
111 Segunda classe. Espíritos Superiores –
Reúnem a ciência, a sabedoria e a bondade. Sua linguagem revela sempre a
benevolência e é constantemente digna, elevada, muitas vezes sublime.
Sua superioridade os torna mais aptos que os outros para nos dar noções
mais justas sobre as coisas do mundo incorpóreo, dentro dos limites do
que é permitido ao homem conhecer. Comunicam-se benevolentemente com os
que procuram de boa-fé a verdade e que têm a alma já liberta dos laços
terrestres para compreendê-la. Mas se afastam dos que são movidos apenas
pela curiosidade ou dos que a influência da matéria desvia da prática
do bem. Quando, por exceção, encarnam na Terra, é para realizar uma
missão de progresso e nos oferecem, então, o modelo de perfeição a que a
humanidade pode aspirar neste mundo.
PRIMEIRA ORDEM ESPÍRITOS PUROS
112 Características gerais – Não sofrem
nenhuma influência da matéria. Superioridade intelectual e moral
absoluta em relação aos Espíritos das outras ordens.
113 Primeira classe. Classe Única –
Passaram por todos os graus da escala e se libertaram de todas as
impurezas da matéria. Tendo atingido o mais elevado grau de perfeição de
que é capaz a criatura, não têm mais que sofrer provas nem expiações.
Não estando mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, a vida é
para eles eterna e a desfrutam no seio de Deus. Gozam de uma felicidade
inalterável por não estarem sujeitos nem às necessidades, nem às
variações e transformações da vida material. Mas essa felicidade não é
de uma ociosidade monótona passada numa contemplação perpétua. São os
mensageiros e ministros de Deus, cujas ordens executam para a manutenção
da harmonia universal. Comandam todos os Espíritos que lhes são
inferiores, ajudando-os a se aperfeiçoarem e lhes designam missões.
Assistir os homens em suas aflições, incitá-los ao bem ou à expiação das
faltas que os afastam da felicidade suprema é para eles uma
agradabilíssima ocupação. São chamados, às vezes, de anjos, arcanjos ou
serafins. Os homens podem entrar em comunicação com eles, mas presunçoso
seria aquele que pretendesse tê-los constantemente às suas ordens.
PROGRESSÃO DOS ESPÍRITOS
114 Os Espíritos são bons ou maus por
natureza ou são eles mesmos que se melhoram? – São os próprios Espíritos
que se melhoram, passando de uma ordem inferior para uma ordem
superior.
115 Dentre os Espíritos, alguns foram
criados bons e outros maus? – Deus criou todos os Espíritos simples e
ignorantes, ou seja, sem conhecimento. Deu a cada um uma missão com o
objetivo de esclarece-los e de fazê-los chegar, progressivamente, à
perfeição pelo conhecimento da verdade e para aproximá-los de Si. A
felicidade eterna e pura é para os que alcançam essa perfeição. Os
Espíritos adquirem esses conhecimentos ao passar pelas provas que a Lei
Divina lhes impõe. Uns aceitam essas provas com submissão e chegam mais
depressa ao objetivo que lhes é destinado. Outros somente as suportam
com lamentação e por causa dessa falta permanecem mais tempo afastados
da perfeição e da felicidade prometida.
115 a Assim sendo, os Espíritos seriam em
sua origem semelhantes às crianças, ignorantes e sem experiência, só
adquirindo pouco a pouco os conhecimentos que lhes faltam ao percorrer
as diferentes fases da vida? – Sim, a comparação é boa. A criança
rebelde permanece ignorante e imperfeita, tem maior ou menor
aproveitamento segundo sua docilidade. Porém, a vida do homem tem um
limite, um fim, enquanto a dos Espíritos se estende ao infinito.
116 Há Espíritos que permanecerão
perpetuamente nas classes inferiores? – Não, todos se tornarão
perfeitos. Eles progridem, mas demoradamente. Como já dissemos, um pai
justo e misericordioso não pode banir eternamente seus filhos.
Pretenderíeis que Deus, tão grande, tão bom, tão justo, fosse pior do
que vós mesmos?
117 Depende dos Espíritos apressar seu
progresso para a perfeição? – Certamente. Chegam mais ou menos
rapidamente conforme seu desejo e submissão à vontade de Deus. Uma
criança dócil não se instrui mais rapidamente do que uma criança
rebelde?
118 Os Espíritos podem se degenerar? –
Não; à medida que avançam, compreendem o que os afasta da perfeição.
Quando o Espírito acaba uma prova, fica com o conhecimento que adquiriu e
não o esquece mais. Pode ficar estacionário, mas retroceder, não
retrocede.
119 Deus não poderia isentar os Espíritos
das provas que devem sofrer para atingir a primeira ordem? – Se
tivessem sido criados perfeitos, não teriam nenhum mérito para desfrutar
dos benefícios dessa perfeição. Onde estaria o mérito sem a luta? Além
do mais, a desigualdade entre eles é necessária para desenvolver a
personalidade, e a missão que realizam nessas diferentes ordens está nos
desígnios da Providência para a harmonia do universo. ? Tendo em vista
que na vida social todos os homens podem chegar às primeiras funções,
igualmente poderíamos perguntar por que o soberano de um país não
promove cada um de seus soldados a general; por que todos os empregados
subalternos não são empregados superiores; por que todos os estudantes
não são mestres. Portanto, há essa diferença entre a vida social e a
vida espiritual: a primeira é limitada e nem sempre permite alcançar
todos os graus, enquanto a segunda é indefinida e deixa a cada um a
possibilidade de se elevar ao grau supremo.
120 Todos os Espíritos passam pelo mal para chegar ao bem? – Pelo mal, não, mas sim pela fieira5 da ignorância.
121 Por que alguns Espíritos seguiram o
caminho do bem e outros o do mal? – Não têm eles o livre-arbítrio? Deus
não criou Espíritos maus; criou-os simples e ignorantes, ou seja, com as
mesmas aptidões tanto para o bem quanto para o mal. Os que são maus o
são por vontade própria.
122 Como é que os Espíritos, em sua
origem, quando ainda não têm consciência de si mesmos, podem ter a
liberdade de escolha entre o bem e o mal? Há neles algum princípio,
alguma tendência que os leve para um ou outro caminho? – O
livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a
consciência de si mesmo. Não haveria mais liberdade se a escolha fosse
determinada ou imposta por uma causa independente da vontade do
Espírito. A causa não está nele, e sim fora, nas influências a que cede
em virtude de sua livre vontade. É essa a grande figura da queda do
homem e do pecado original: uns cederam, outros resistiram à tentação.
122 a De onde parte a influência sobre
ele? – Dos Espíritos imperfeitos que procuram apossar-se dele para
dominá-lo e ficam satisfeitos de o fazer fracassar. Foi isso que se quis
simbolizar na figura de Satanás.
122 b Essa influência se exerce sobre o
Espírito somente em sua origem? – Essa influência o segue na sua vida de
Espírito até que alcance um domínio tão completo sobre si mesmo que os
maus desistam de obsediá-lo6.
123 Por que Deus permitiu que os
Espíritos pudessem seguir o caminho do mal? – Como ousais pedir a Deus
conta de seus atos? Pensais poder penetrar seus desígnios? Entretanto,
podeis pensar assim: a sabedoria de Deus está na liberdade de escolha
que dá a cada um, porque, assim, cada um tem o mérito de suas obras.
124 Uma vez que há Espíritos que, desde o
princípio, seguem o caminho do bem absoluto e outros o do mal absoluto,
deve haver, sem dúvida, degraus entre esses dois extremos? – Sim,
certamente, e é aí que se encontra a grande maioria.
125 Os Espíritos que seguiram o caminho
do mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros? –
Sim, mas as eternidades serão para eles mais longas. ? Por esta
expressão – as eternidades – deve-se entender a ideia que os Espíritos
inferiores têm da perpetuidade de seus sofrimentos, porque, como não
lhes é dado ver o fim do seu sofrimento, essa ideia revive em todas as
provas em que fracassam7 .
126 Os Espíritos que alcançaram o
grau supremo de perfeição, após terem passado pelo mal, têm menos mérito
do que os outros, aos olhos de Deus?
– Deus contempla a todos do mesmo modo e
os ama com o mesmo coração. Eles foram chamados maus por fracassarem;
mas no início eram só simples Espíritos.
127 Os Espíritos são criados iguais
quanto às aptidões intelectuais? – Eles são criados iguais, mas, não
sabendo de onde vêm, é preciso que o livre-arbítrio prossiga seu curso.
Progridem mais ou menos rapidamente em inteligência como em moralidade. ?
Os Espíritos que seguem desde o princípio o caminho do bem nem por isso
são Espíritos perfeitos. Se não têm tendências más ainda precisam
adquirir a experiência e os conhecimentos necessários para atingir a
perfeição. Podemos compará-los a crianças que, qualquer que seja a
bondade de seus instintos naturais, têm necessidade de se desenvolver,
se esclarecer e não passam, sem transição, da infância à idade adulta.
Assim como há homens bons e outros maus desde sua infância, há também
Espíritos bons ou maus desde sua origem, com a diferença fundamental de
que a criança tem os instintos todos formados, enquanto o Espírito, na
sua formação, não é mau, nem bom; tem todas as tendências e toma uma ou
outra direção por efeito de seu livre-arbítrio.
ANJOS E DEMÔNIOS
128 Os seres a que chamamos
anjos, arcanjos, serafins formam uma categoria especial de natureza
diferente dos outros Espíritos? – Não. São os Espíritos puros. Estão no
mais alto grau da escala e reúnem todas as perfeições. ? A palavra anjo
desperta, geralmente, a idéia de perfeição moral. Entretanto, aplica-se,
muitas vezes, a todos os seres bons e maus que estão fora da
humanidade. Diz-se: o bom e o mau anjo, o anjo de luz e o anjo das
trevas. Nesse caso, é sinônimo de Espírito ou de gênio. Nós a tomamos
aqui na sua significação de bom.
129 Os anjos percorreram todos os graus
da escala evolutiva? – Eles percorreram todos os graus, mas, como já
dissemos: uns aceitaram sua missão sem murmurar e chegaram mais rápido;
outros levaram um tempo mais ou menos longo para chegar à perfeição.
130 Se a opinião de que há seres criados
perfeitos e superiores a todas as outras criaturas é errônea, como se
explica o fato de que esteja na tradição de quase todos os povos? –
Pensai e considerai que o vosso mundo não existe de toda a eternidade e
que, muito tempo antes que ele existisse, havia Espíritos que já tinham
alcançado o grau supremo da evolução. Eis por que os homens acreditaram
que eles foram sempre assim (perfeitos).
131 Há demônios, no sentido que se dá a
essa palavra? – Se houvesse demônios, seriam obra de Deus. Deus seria
justo e bom por ter feito seres eternamente devotados ao mal e
eternamente infelizes? Se há demônios, é no vosso mundo inferior e em
outros semelhantes ao vosso. Demônios são esses homens hipócritas que
fazem de um Deus justo um Deus mau e vingativo e acreditam que Lhe
agradam pelas abominações que cometem em Seu nome. A palavra demônio nos
dias atuais significa e nos dá idéia de mau Espírito, porém a palavra
grega Diamond, de onde se origina, significa gênio, inteligência, e se
emprega para designar seres incorpóreos, bons ou maus, sem distinção. Os
demônios, conforme o significado comum da palavra, supõem seres
malvados por natureza, na sua essência. Seriam, como todas as coisas,
criação de Deus. Assim sendo, Deus, soberanamente justo e bom, não pode
ter criado seres predispostos, por sua natureza, ao mal e condenados por
toda a eternidade. Se não fossem obra de Deus, seriam, forçosamente,
como ele, de toda a eternidade, ou então haveria muitos poderes
soberanos. A primeira condição de toda doutrina é a de ser lógica. A
doutrina dos demônios, cuidadosa e severamente analisada, peca por essa
base essencial. Pode-se compreendê-la na crença dos povos atrasados que,
por não conhecerem os atributos de Deus, creem em divindades maldosas e
em demônios. Mas, para todo aquele que faz da bondade de Deus um
atributo por excelência, é ilógico e contraditório supor que Deus
pudesse criar seres voltados ao mal e destinados a praticá-lo
perpetuamente, porque isso é negar Sua bondade. Os partidários do
demônio se apoiam nas palavras do Cristo. E com toda certeza não
contestaremos aqui a autoridade de Seu ensinamento, que gostaríamos de
ver mais no coração do que na boca dos homens. Mas os partidários dessa
idéia estarão certos do significado que o Cristo dava à palavra demônio?
Já não sabemos que a forma alegórica é a maneira usual de Sua
linguagem? Tudo que é dito no Evangelho deve ser tomado ao pé da letra?
Não precisamos de outra prova mais evidente além desta passagem: “Logo
após esses dias de aflição, o Sol se escurecerá e a Lua não mais
iluminará, as estrelas cairão do céu e as forças do céu serão abaladas.
Eu vos digo em verdade que esta geração não passará sem que todas essas
coisas sejam cumpridas.” Não vimos à forma de o texto bíblico ser
contestada pela ciência no que se refere à Criação e ao movimento da
Terra? Não se dará o mesmo com certas figuras empregadas pelo Cristo,
tendo que falar em conformidade com os tempos e os lugares? O Cristo não
poderia dizer, conscientemente, uma falsidade; se, então, em suas
palavras há coisas que parecem chocar a razão, é porque não as
compreendemos ou as interpretamos mal. Os homens fizeram com os demônios
o que fizeram com os anjos. Da mesma forma que acreditaram na
existência de seres perfeitos desde toda a eternidade, tomaram também
por comparação os Espíritos inferiores como seres perpetuamente maus.
Pela palavra demônio devem-se entender Espíritos impuros que, muitas
vezes, não são nada melhores do que o nome já diz, mas com a diferença
de que seu estado é apenas transitório. Esses são os Espíritos
imperfeitos que se revoltam contra as provas que sofrem e, por isso, as
sofrem por um tempo mais longo; porém, chegarão a se libertar e sair
dessa situação quando tiverem vontade. Podemos, portanto, compreender a
palavra demônio com essa restrição. Mas, como se entende agora, com um
sentido peculiar e muito próprio, ela induziria ao erro, fazendo
acreditar na existência de seres especialmente criados para o mal. Com
relação a Satanás, é evidentemente a personificação do mal sob uma forma
alegórica, porque não se poderia admitir um ser mau lutando em
igualdade de poder com a Divindade e cuja única preocupação seria a de
contrariar seus desígnios. Como o homem precisa de figuras e imagens
para impressionar sua imaginação, o próprio homem pintou seres
incorpóreos sob uma forma material, com os atributos que lembram as
qualidades e os defeitos humanos. É assim que os antigos, querendo
personificar o Tempo, pintaram-no na figura de um velho com uma foice e
uma ampulheta. A figura de um jovem para essa alegoria seria um
contrassenso. Ocorre o mesmo com as alegorias da fortuna, da verdade,
etc. Modernamente os anjos ou Espíritos puros são representados numa
figura radiosa, com asas brancas, símbolo da pureza; Satanás com
chifres, garras e os atributos da animalidade, emblema das paixões
inferiores. O povo, que toma as coisas ao pé da letra, viu nesses
emblemas individualidades reais, como antigamente viu Saturno na
alegoria do Tempo.
CAPÍTULO 2
ENCARNAÇÃO DOS ESPÍRITOS
Objetivo da encarnação
– A alma
– Materialismo
OBJETIVO DA ENCARNAÇÃO
132 Qual é o objetivo da encarnação dos
Espíritos? – A Lei de Deus lhes impõe a encarnação com o objetivo de
fazê-los chegar à perfeição. Para uns é uma expiação; para outros é uma
missão. Mas, para chegar a essa perfeição, devem sofrer todas as
tribulações da existência corporal: é a expiação. A encarnação tem
também um outro objetivo: dar ao Espírito condições de cumprir sua parte
na obra da criação. Para realizá-la é que, em cada mundo, toma um corpo
em harmonia com a matéria essencial desse mundo para executar aí, sob
esse ponto de vista, as determinações de Deus, de modo que, concorrendo
para a obra geral, ele próprio se adianta. ? A ação dos seres corpóreos é
necessária à marcha do universo. Deus, em sua sabedoria, quis que, numa
mesma ação, encontrassem um meio de progredir e de se aproximar Dele. É
assim que, por uma lei admirável da Providência, tudo se encadeia, tudo
é solidário na natureza.
133 Os Espíritos que, desde o princípio,
seguiram o caminho do bem, têm necessidade da encarnação? – Todos são
criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da
vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer só alguns felizes, sem
dificuldades e sem trabalho e, por conseguinte, sem mérito.
133 a Mas, então, de que serve aos
Espíritos seguirem o caminho do bem, se isso não os livra das
dificuldades da vida corporal? – Eles chegam mais rápido à finalidade a
que se destinam; e, depois, as dificuldades da vida são muitas vezes a
consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições,
menos tormentos. Aquele que não é invejoso, ciumento, avarento ou
ambicioso não sofrerá com os tormentos que procedem desses defeitos.
A ALMA
134 O que é a alma? – Um Espírito encarnado.
134 a O que era a alma antes de se unir ao corpo? – Um Espírito.
134 b As almas e os Espíritos são,
portanto, uma e a mesma coisa? – Sim, as almas são os Espíritos. Antes
de se unir ao corpo, a alma é um dos seres inteligentes que povoam o
mundo invisível e se revestem temporariamente de um corpo carnal para se
purificar e se esclarecer.
135 Há no homem outra coisa mais que a
alma e o corpo? – Há o laço que une a alma ao corpo. 135 a Qual é a
natureza desse laço? – Semi-material, ou seja, de natureza intermediária
entre o Espírito e o corpo. É preciso que assim seja para que possam se
comunicar um com o outro. É por esse princípio que o Espírito age sobre
a matéria e vice-versa. ? Desse modo, o homem é formado de três partes
essenciais: 1ª) O corpo ou ser material, semelhante ao dos animais e
animado pelo mesmo princípio vital; 2ª) A alma, Espírito encarnado que
tem no corpo a sua habitação; 3ª ) O princípio intermediário ou
períspirito, substância semi-material que serve de primeiro envoltório
ao Espírito e une a alma ao corpo físico. São como num fruto: a semente,
o perisperma e a casca. 136 A alma é independente do princípio vital? –
O corpo é apenas o envoltório, repetimos isso constantemente.
136 a O corpo pode existir sem a alma? –
Sim, pode; porém, desde que cesse a vida no corpo, a alma o abandona.
Antes do nascimento, não há união definitiva entre a alma e o corpo; ao
passo que, depois que essa união está estabelecida, só a morte do corpo
rompe os laços que o unem à alma, que o deixa. A vida orgânica pode
animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo em que
não há vida orgânica.
136 b O que seria nosso corpo se
não houvesse alma? – Uma massa de carne sem inteligência, tudo o que
quiserdes, exceto um ser humano.
137 Um mesmo Espírito pode encarnar em
dois corpos diferentes ao mesmo tempo? – Não; o Espírito é indivisível e
não pode animar simultaneamente dois seres diferentes. (Veja O Livro
dos Médiuns, Segunda Parte, cap. 7 – Da Bicorporeidade e da
Transfiguração.)
138 Que pensar daqueles que consideram a
alma como o princípio da vida material? – É uma questão de palavras que
não nos diz respeito. Começai por vos entenderdes a vós mesmos.
139 Alguns Espíritos e, antes deles,
alguns filósofos definiram assim a alma: “Uma centelha anímica emanada
do grande Todo”. Por que essa contradição?
– Não há contradição; depende da
significação das palavras. Por que não tendes uma palavra para cada
coisa? ? A palavra alma é empregada para exprimir coisas muito
diferentes. Uns chamam alma o princípio da vida, e com esse entendimento
é exato dizer, em sentido figurado, que a alma é “uma centelha anímica
emanada do grande Todo”. Essas últimas palavras indicam a fonte
universal do princípio vital do qual cada ser absorve uma porção que,
depois da morte, retorna à massa. Essa idéia não exclui a de um ser
moral distinto, independente da matéria e que conserva sua
individualidade. É esse ser que se chama, igualmente, alma, e é nesse
sentido que se pode dizer que a alma é um Espírito encarnado. Ao dar à
alma definições diferentes, os Espíritos falaram conforme a idéia que
faziam da palavra e de acordo com as ideias terrestres de que ainda
estavam mais ou menos imbuí- dos. Isso decorre da insuficiência da
linguagem humana, que não tem uma palavra para cada idéia, gerando uma
infinidade de enganos e discussões. Eis por que os Espíritos superiores
nos dizem que nos entendamos primeiro acerca das palavras (Ver na
Introdução explicação mais detalhada de alma).
140 O que pensar da teoria da alma
subdividida em tantas partes quanto os músculos e sendo responsável,
assim, por cada uma das funções do corpo? – Isso depende ainda do
sentido que se dá à palavra alma. Se a entendermos como o fluido vital,
tem razão; mas se queremos entendê-la como Espírito encarnado, é errada.
Como já dissemos, o Espírito é indivisível. Ele transmite o movimento
aos órgãos pelo fluido intermediário, sem sedividir.
140 a Entretanto, há Espíritos que deram
essa definição. – Espíritos ignorantes podem tomar o efeito pela causa. A
alma atua por intermédio dos órgãos e os órgãos são animados pelo
fluido vital, que se reparte entre eles e se concentra mais fortemente
nos órgãos que são os centros ou focos do movimento. Consequentemente,
não procede a idéia de igualar a alma ao fluido vital, se por alma
queremos dizer o Espírito que habita o corpo durante a vida e o abandona
na morte.
141 Há alguma verdade na opinião dos que
pensam que a alma é exterior e envolve o corpo? – A alma não está
aprisionada no corpo como um pássaro numa gaiola. Irradiante, ela brilha
e se manifesta ao redor dele como a luz através de um globo de vidro ou
como o som ao redor de um centro sonoro. É desse modo que se pode dizer
que é exterior, mas não é o envoltório do corpo. A alma tem dois
envoltórios ou corpos: um sutil e leve, que é o primeiro, chamado
períspirito; o outro, grosseiro, material e pesado, que é o corpo
carnal. A alma é o centro de todos esses envoltórios, como o germe o é
numa semente, como já dissemos.
142 O que dizer desta outra teoria
segundo a qual a alma, numa criança, se completa a cada período de vida?
– O Espírito é um só, está completo na criança como no adulto. Os
órgãos ou instrumentos das manifestações da alma é que se desenvolvem e
se completam. Nesse caso é ainda tomar o efeito pela causa.
143 Por que todos os Espíritos não
definem a alma da mesma maneira? – Os Espíritos não são todos igualmente
esclarecidos sobre estas questões. Há Espíritos cujos conhecimentos são
ainda limitados e não compreendem as coisas abstratas, como ocorre
entre vós com as crianças. Há também Espíritos pseudosábios, que fazem
rodeio de palavras para se impor; aliás, como acontece entre vós. Mas,
além disso, os próprios Espíritos esclarecidos podem se exprimir em
termos diferentes que, no fundo, têm o mesmo significado, especialmente
quando se trata de coisas para as quais a vossa linguagem é inadequada
para exprimir claramente, precisando de figuras e comparações que tomais
como realidade.
144 O que se deve entender por alma do
mundo? – O princípio universal da vida e da inteligência de onde nascem
as individualidades. Mas aqueles que se servem dessas palavras
frequentemente não se compreendem uns aos outros. A palavra alma tem uma
aplicação tão elástica que cada um a interpreta de acordo com a sua
imaginação. Já se atribuiu, também, uma alma à Terra, o que é preciso
entender como sendo o conjunto de Espíritos devotados que dirigem as
vossas ações no bom caminho quando os escutais, e que são, de algum
modo, os representantes de Deus em relação ao vosso globo.
145 Como tantos filósofos antigos e
modernos têm discutido por tanto tempo sobre a ciência psicológica sem
ter chegado à verdade? – Esses homens eram os precursores da Doutrina
Espírita eterna. Eles prepararam os caminhos. Eram homens e se
enganaram, tomaram suas próprias ideias pela luz. Mas os próprios erros
servem para deduzir a verdade ao mostrar os prós e os contras. Aliás,
entre esses erros se encontram grandes verdades, que um estudo
comparativo tornará compreensíveis1.
146 A alma tem uma sede determinada e
circunscrita no corpo? – Não, mas está mais particularmente na cabeça
entre os grandes gênios, os que pensam muito, e no coração nos que têm
sentimentos elevados e cujas ações beneficiam toda a humanidade.
146 a Que pensar da opinião daqueles que
colocam a alma num centro vital? – Isso quer dizer que o Espírito se
localiza, de preferência, nessa parte do vosso organismo, uma vez que é
para aí que convergem todas as sensações. Aqueles que a colocam no que
consideram como centro da vitalidade a confundem com o fluido ou
princípio vital. Contudo, pode-se dizer que a sede da alma está mais
particularmente nos órgãos que servem às manifestações intelectuais e
morais.
MATERIALISMO
147 Por que os anatomistas2 , os
fisiologistas3 e em geral os que se aprofundam nas ciências naturais
são, muitas vezes, levados ao materialismo? – O fisiologista vê tudo à
sua maneira. Orgulho dos homens, que acreditam saber tudo e não admitem
que alguma coisa possa ultrapassar seu conhecimento. Sua própria ciência
lhes dá presunção. Pensam que a natureza não pode lhes ocultar nada.
148 Não é de lamentar que o materialismo
seja uma consequência de estudos que deveriam, ao contrário, mostrar ao
homem a superioridade da inteligência que governa o mundo? Por isso,
pode-se concluir que são perigosos? – Não é exato dizer que o
materialismo seja uma consequência desses estudos. É o homem que tira
deles uma falsa consequência, porque tem a liberdade de abusar de tudo,
mesmo das melhores coisas. O nada, aliás, os amedronta mais do que eles
demonstram, e os Espíritos fortes são, muitas vezes, mais fanfarrões do
que bravos. A maioria dos materialistas só o são porque não têm nada
para encher o vazio do abismo que se abre diante deles. Mostre-lhes uma
âncora de salvação e se agarrarão a ela apressadamente. ? Por uma
aberração4 da inteligência, há pessoas que veem nos seres orgânicos
apenas a ação da matéria e a esta atribuem todos os nossos atos. Veem no
corpo humano apenas a máquina elétrica; estudaram o mecanismo da vida
apenas pelo funcionamento dos órgãos que muitas vezes viram se extinguir
pela ruptura de um fio, e não viram nada mais que esse fio. Procuraram
ver se restava alguma coisa e, como encontraram apenas a matéria, que se
tornara inerte, e não viram a alma escapar nem a puderam apanhar,
concluíram que tudo estava nas propriedades da matéria e que, depois da
morte, o pensamento se aniquilava. Triste consequência se fosse assim,
porque então o bem e o mal não teriam significação alguma; o homem seria
levado apenas a pensar em si mesmo e a colocar acima de tudo a
satisfação de seus prazeres materiais, os laços sociais seriam rompidos e
as afeições mais santas destruídas para odo o sempre. Felizmente, essas
idéias estão longe de ser gerais, pode-se até mesmo dizer que são muito
limitadas e constituíram apenas opiniões individuais, porque em nenhuma
parte constituíram doutrina. Uma sociedade fundada sobre essas bases
teria em si o germe de sua dissolução, e seus membros se entredevorariam
como animais ferozes. O homem tem o pensamento instintivo de que nem
tudo se acaba quando cessa a vida. Tem horror ao nada. Ainda que teime e
resista inutilmente contra a idéia da vida futura, quando chega o
momento supremo são poucos os que não se perguntam o que vai ser deles; a
idéia de deixar a vida e não mais retornar é dolorosa. Quem poderia, de
fato, encarar com indiferença uma separação absoluta, eterna, de tudo o
que amou? Quem poderia, sem medo, ver abrir-se diante de si o imenso
abismo do nada onde se dissiparão para sempre todas as nossas
capacidades, todas as nossas esperanças, e dizer a si mesmo: “Qual o
quê! Depois de mim, nada, nada mais além do vazio; tudo acabou; daqui a
alguns dias minhas lembranças serão apagadas da memória dos que me
sobreviverem; daqui a pouco não restará nenhum traço de minha passagem
pela Terra; o próprio bem que fiz será esquecido pelos ingratos a quem
servi; e nada pode compensar tudo isso, nenhuma outra perspectiva além
do meu corpo roído pelos vermes!” Esse quadro não tem alguma coisa de
apavorante, glacial? A religião nos ensina que não pode ser assim, e a
razão o confirma. Mas essa existência futura, vaga e indefinida não nos
dá nenhuma esperança, sendo para muitos a origem da dúvida. Temos uma
alma, sim, mas o que é nossa alma? Ela tem uma forma, uma aparência
qualquer? É um ser limitado ou indefinido? Uns dizem que é um sopro de
Deus; outros, uma centelha; outros, uma parte do grande Todo, o
princípio da vida e da inteligência, mas o que tudo isso nos oferece? O
que nos importa ter uma alma se depois da morte ela se confunde na
imensidade como as gotas d’água no oceano? A perda de nossa
individualidade não é para nós o mesmo que o nada? Diz-se, ainda, que é
imaterial; mas uma coisa imaterial não poderá ter proporções definidas e
para nós equivale ao nada. A religião ainda nos ensina que seremos
felizes ou infelizes, conforme o bem ou o mal que tivermos feito. Mas em
que consiste essa felicidade que nos espera no seio de Deus? É uma
beatitude, uma contemplação eterna, sem outra ocupação a não ser a de
cantar louvores ao Criador? As chamas do inferno são uma realidade ou um
símbolo? A própria Igreja as entende nesta última significação, mas
quais são aqueles sofrimentos? Onde está esse lugar de suplício? Numa
palavra, o que se faz, o que se vê, nesse mundo que nos espera a todos?
Diz-se que ninguém voltou de lá para nos prestar contas.
É um erro dizer isso. A missão do
Espiritismo é precisamente a de nos esclarecer sobre esse futuro, de nos
fazer, até certo ponto, tocá-lo e vê-lo, não mais só pelo raciocínio,
mas apresentando fatos. Graças às comunicações espíritas, isso não é uma
presunção, uma probabilidade que cada um entende à sua maneira, que os
poetas embelezam com suas ficções ou pintam de imagens alegóricas que
nos enganam. É a realidade que nos aparece, pois são os próprios
Espíritos que vêm nos descrever sua situação, nos dizer o que foram, o
que nos permite assistir, por assim dizer, a todas as peripécias de sua
nova vida e, por esse meio, nos mostram a sorte inevitável que nos está
reservada, de acordo com nossos méritos e deméritos. Há nisso algo de
antirreligioso? Bem ao contrário, uma vez que os incrédulos aí encontram
a fé e os indecisos a renovação de fervor e de confiança. O Espiritismo
é o mais poderoso auxiliar da religião. E se é assim, é porque Deus o
permite e o permite para reanimar nossas esperanças vacilantes e nos
reconduzir ao caminho do bem mediante a perspectiva do futuro.
CAPÍTULO 3
RETORNO DA VIDA CORPORAL À VIDA ESPIRITUAL
A alma após a morte; sua individualidade.
- Vida eterna
- Separação da alma e do corpo
- Perturbação espiritual
A ALMA APÓS A MORTE
149 Em que se torna a alma logo após a
morte? – Volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos,
que havia deixado temporariamente.
150 A alma, após a morte, conserva sua individualidade? – Sim, nunca a perde. O que seria ela se não a conservasse?
150 a Como a alma continua a ter a sua
individualidade, uma vez que não possui mais seu corpo material? – Ela
ainda tem um fluido que lhe é próprio, tomado da atmosfera de seu
planeta e que representa a aparência de sua última encarnação: seu
períspirito.
150 b A alma nada leva consigo
deste mundo? – Nada mais que a lembrança e o desejo de ir para um mundo
melhor. Essa lembrança é cheia de doçura ou amargura, de acordo com o
emprego que fez da vida. Quanto mais pura, mais compreende a futilidade
do que deixa na Terra.
151 O que pensar da opinião de que, após a
morte, a alma retorna ao todo universal? – O conjunto dos Espíritos não
forma um todo? Não constitui um mundo completo? Quando estais em uma
assembleia, sois parte integrante dessa assembleia e, entretanto, sempre
conservais a individualidade.
152 Que prova podemos ter da
individualidade da alma após a morte? – Não tendes essa prova por meio
das comunicações que obtendes? Se não fôsseis cegos, veríeis; e, se não
fôsseis surdos, ouviríeis, pois muito frequentemente uma voz vos fala e
revela a existência de um ser fora de vós. Aqueles que pensam que na
morte a alma retorna ao todo universal estão errados, se por isso
entenderem que, semelhante a uma gota d’água que cai no oceano, perde
sua individualidade. Porém, estarão certos se entenderem por todo
universal o conjunto de seres incorpóreos, do qual cada alma ou Espírito
é um elemento.
Se as almas não se diferenciassem no
todo, teriam apenas as qualidades do conjunto e nada poderia
distingui-las umas das outras; não teriam nem inteligência, nem
qualidades próprias. Porém, muito ao contrário disso, em todas as
comunicações demonstram ter consciência do seu eu e uma vontade própria.
A diversidade que apresentam em todas as comunicações é consequência da
sua individualidade. Se após a morte houvesse somente o que se chama de
o grande Todo que absorve todas as individualidades, esse Todo seria
uniforme e, então, todas as comunicações do mundo invisível seriam
idênticas. Uma vez que lá se encontram seres bons e maus, sábios e
ignorantes, felizes e infelizes, e de todas as espécies: alegres e
tristes, levianos e sérios, etc., é evidente que são seres distintos. A
individualidade torna-se ainda mais evidente quando esses seres provam
sua identidade por manifestações incontestáveis, por detalhes pessoais
relativos à sua vida terrestre que se podem comprovar. Também não pode
ser posta em dúvida quando se tornam visíveis em suas aparições. A
individualidade da alma nos foi ensinada em teoria, como um artigo de
fé. O Espiritismo a torna evidente e, de certo modo, material.
153 Em que sentido se deve entender a
vida eterna? – É a vida do Espírito que é eterna; porém, a do corpo é
transitória e passageira. Quando o corpo morre, a alma retorna à vida
eterna.
153 a Não seria mais exato chamar vida
eterna à vida dos Espíritos puros, aqueles que, tendo atingido o grau de
perfeição, não têm mais provas para suportar? – Isso é, antes, a
felicidade eterna. Porém, mais uma vez, é uma questão de palavras:
chamai as coisas como quiserdes, contanto que vos entendais.
SEPARAÇÃO DA ALMA E DO CORPO
154 O corpo ou a alma sente alguma dor no
momento da morte? – Não; o corpo sofre muitas vezes mais durante a vida
do que no momento da morte: a alma não toma nenhuma parte nisso. Os
sofrimentos que às vezes ocorrem no momento da morte são uma alegria
para o Espírito, que vê chegar o fim de seu exílio. ? Na morte natural, a
que acontece pelo esgotamento dos órgãos em consequência da idade, o
homem deixa a vida sem se dar conta disso: é como um foco de luz que se
apaga por falta de suprimento.
155 Como se opera a separação da alma e do corpo? – Quando os laços que a retinham se rompem, ela se desprende.
155 à separação se opera instantaneamente
e por uma transição brusca? Há uma linha de demarcação nitidamente
traçada entre a vida e a morte?
– Não; a alma se desprende gradualmente e
não escapa como um pássaro cativo subitamente libertado. Esses dois
estados se tocam e se confundem de maneira que o Espírito se desprende
pouco a pouco dos laços que o retinham no corpo físico: eles se desatam,
não se quebram. Durante a vida, o Espírito se encontra preso ao corpo
por seu envoltório semi-material ou períspirito. A morte é apenas a
destruição do corpo e não do períspirito, que se separa do corpo quando
nele cessa a vida orgânica. A observação demonstra que, no instante da
morte, o desprendimento do períspirito não se completa subitamente;
opera-se gradualmente e com uma lentidão muito variável, conforme os
indivíduos. Para uns é bastante rápido e pode-se dizer que o momento da
morte é ao mesmo instante o da libertação, quase imediata. Mas, para
outros, aqueles cuja vida foi extremamente material e sensual, o
desprendimento é mais demorado e dura algumas vezes dias, semanas e até
mesmo meses. Isso sem que haja no corpo a menor vitalidade nem a
possibilidade de um retorno à vida, mas uma simples afinidade entre
corpo e Espírito, afinidade que sempre se dá em razão da importância
que, durante a vida, o Espírito deu à matéria. É racional conceber, de
fato, que quanto mais o Espírito se identifica com a matéria, mais sofre
ao se separar dela. Por outro lado, a atividade intelectual e moral, a
elevação de pensamentos, operam um início do desprendimento mesmo
durante a vida do corpo, de tal forma que, quando a morte chega, o
desprendimento é quase instantâneo. Esse é o resultado de estudos feitos
em todos os indivíduos observados no momento da morte. Essas
observações ainda provaram que a afinidade que em alguns indivíduos
persiste entre a alma e o corpo é, algumas vezes, muito dolorosa, visto
que o Espírito pode sentir o horror da decomposição. Esse caso é
excepcional e particular para certos gêneros de vida e certos gêneros de
morte; verifica-se entre alguns suicidas.
156 A separação definitiva da alma do
corpo pode ocorrer antes da completa cessação da vida orgânica? – Na
agonia, a alma, algumas vezes, já deixou o corpo. Nada mais resta nele
do que a vida orgânica. O homem não tem mais consciência de si mesmo e,
entretanto, ainda há nele um sopro de vida orgânica. O corpo é uma
máquina que o coração faz mover. Existe, enquanto o coração faz circular
o sangue em suas veias, e não tem necessidade da alma para isso.
157 No momento da morte, a alma tem, às
vezes, um desejo ou um êxtase que lhe faz entrever o mundo em que vai
entrar? – Muitas vezes a alma sente desfazerem-se os laços que a prendem
ao corpo, então, faz todos os seus esforços para rompê-los
completamente. Já em parte desprendida da matéria, vê o futuro
desdobrar-se à sua frente e desfruta, por antecipação, do estado de
Espírito.
158 O exemplo da lagarta, que
inicialmente rasteja na terra, depois se fecha na sua crisálida1 numa
morte aparente para renascer em uma existência brilhante, pode nos dar
uma idéia da vida terrestre, da vida espiritual e, enfim, de nossa nova
existência? – Uma idéia imperfeita, mas a imagem é boa. Não deverá,
entretanto, ser tomada ao pé da letra, como muitas vezes fazeis.
159 Que sensação experimenta a alma no
momento em que reconhece estar no mundo dos Espíritos? – Isso depende.
Se fizestes o mal com o desejo de fazê-lo, vos envergonhareis de tê-lo
feito, num primeiro momento. Para o justo, é bem diferente: é como o
alívio de um grande peso, porque não teme nenhum olhar indagador.
160 O Espírito encontra imediatamente
aqueles que conheceu na Terra e que desencarnaram antes dele? – Sim, de
acordo com a afeição que havia entre eles, muitas vezes vêm recebê-lo na
volta ao mundo dos Espíritos e o ajudam a se desprender das faixas da
matéria. Assim como reencontra também muitos que havia perdido de vista
durante sua permanência na Terra. Vê os que estão na erraticidade2 ,
como também vai visitar os que estão encarnados.
161 Na morte violenta e acidental, quando
os órgãos ainda não estão enfraquecidos pela idade ou por doenças, a
separação da alma e o término da vida ocorrem simultaneamente? –
Geralmente é simultâneo, mas, em todos os casos, o momento dessa
separação é muito curto.
162 No caso de decapitação, por exemplo, o
homem conserva por alguns instantes a consciência de si mesmo? – Muitas
vezes a conserva durante alguns minutos, até que a vida orgânica
tenha-se extinguido completamente. Mas às vezes ocorre que a apreensão
da morte pode fazer com que perca a consciência mesmo antes do instante
do suplício. Trata-se aqui da consciência que o supliciado pode ter de
si mesmo, como homem e por intermédio dos órgãos, e não como Espírito.
Se não perdeu a consciência antes do suplício pode, ainda, conservá-la
por alguns instantes que são de uma duração muito curta e cessa
necessariamente com a vida orgânica do cérebro, o que não implica que o
períspirito esteja completamente desligado do corpo. Pelo contrário: em
todos os casos de morte violenta, quando não acontece pela extinção
natural das forças vitais, os laços que unem o corpo ao períspirito são
muito fortes, e o desprendimento completo demora mais.
PERTURBAÇÃO ESPIRITUAL
163 A alma, ao deixar o corpo, tem
imediatamente consciência de si mesma? – Consciência imediata não. Ela
passa algum tempo como num estado de perturbação.
164 Todos os Espíritos experimentam, no
mesmo grau e com a mesma duração, a perturbação que se segue à separação
da alma e do corpo? – Não, isso depende de sua elevação. Aquele que já
está depurado reconhece a sua nova situação quase imediatamente, porque
já se libertou da matéria durante a vida do corpo, enquanto o homem
carnal, aquele cuja consciência não é pura, conserva durante muito mais
tempo as sensações da matéria.
165 O conhecimento do Espiritismo tem
alguma influência sobre a duração, mais ou menos longa, dessa
perturbação? – Uma influência muito grande, uma vez que o Espírito já
compreendia antecipadamente sua situação. Mas a prática do bem e a
consciência pura exercem maior influência. No momento da morte, tudo é
inicialmente confuso; a alma necessita de algum tempo para se
reconhecer. Ela fica atordoada, semelhante à situação de uma pessoa que
desperta de um profundo sono e procura se dar conta da situação. A
lucidez das ideias e a memória do passado voltam à medida que se apaga a
influência da matéria da qual acaba de se libertar e à medida que se
vai dissipando uma espécie de névoa que obscurece seus pensamentos. O
tempo da perturbação que se segue à morte do corpo é bastante variável.
Pode ser de algumas horas, de muitos meses ou até mesmo de muitos anos. É
menos longa para aqueles que se identificaram já na vida terrena com
seu estado futuro, porque compreendem imediatamente sua posição. Essa
perturbação apresenta circunstâncias particulares de acordo com o
caráter dos indivíduos e, principalmente, com o gênero de morte. Nas
mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia3 ,
ferimentos, etc., o Espírito fica surpreso, espantado e não acredita
estar morto. Sustenta essa idéia com insistência e teimosia. Entretanto,
vê seu corpo, sabe que é o seu e não compreende que esteja separado
dele. Procura aproximar-se de pessoas que estima, fala com elas e não
compreende por que não o escutam. Essa ilusão dura até o completo
desprendimento do períspirito. Só então o Espírito reconhece o estado em
que se encontra e compreende que não faz mais parte do mundo dos vivos.
Esse fenômeno se explica facilmente. Surpreendido pela morte, o
Espírito fica atordoado com a brusca mudança que se operou nele. A morte
é, para ele, sinônimo de destruição, de aniquilamento. Mas, como ainda
pensa, vê, escuta, não se considera morto. O que aumenta ainda mais sua
ilusão é o fato de se ver num corpo semelhante ao anterior, cuja
natureza etérea não teve ainda tempo de estudar. Acredita que seja
sólido e compacto como o primeiro; e quando percebe esse detalhe, se
espanta por não poder apalpá-lo. Esse fenômeno é semelhante ao que
acontece com os sonâmbulos inexperientes que não acreditam dormir,
porque, para eles, o sono é sinônimo de suspensão das atividades, e,
como podem pensar livremente e ver, julgam não estar dormindo. Alguns
Espíritos apresentam essa particularidade, embora a morte não tenha
acontecido inesperadamente. Porém, é sempre mais generalizada naqueles
que, apesar de estar doentes, não pensavam em morrer. Vê-se, então, o
singular espetáculo de um Espírito assistir ao seu enterro como sendo o
de um estranho e falando sobre o assunto como se não lhe dissesse
respeito, até o momento em que compreende a verdade. A perturbação que
se segue à morte nada tem de pesaroso para o homem de bem! É calma e
muito semelhante à de um despertar tranquilo. Para aquele cuja
consciência não é pura, a perturbação é cheia de ansiedade e angústias
que aumentam à medida que reconhece a situação em que se encontra. Nos
casos de morte coletiva, tem-se observado que os que perecem ao mesmo
tempo nem sempre se reveem imediatamente. Na perturbação que se segue à
morte, cada um vai para seu lado, ou apenas se preocupa com aqueles que
lhe interessam.
CAPÍTULO 4
PLURALIDADE DAS EXISTÊNCIAS
A reencarnação – Justiça da reencarnação –
Encarnação nos diferentes mundos – Transmigração progressiva –
Destinação das crianças após a morte – Sexo nos Espíritos – Parentesco,
filiação – Semelhanças físicas e morais – Ideias inatas
A REENCARNAÇÃO
166 Como a alma, que não alcançou a
perfeição durante a vida corporal, pode acabar de se depurar? –
Submetendo-se à prova de uma nova existência.
166 a Como a alma realiza essa nova
existência? É pela sua transformação como Espírito? – A alma, ao se
depurar, sofre sem dúvida uma transformação, mas para isso é preciso que
passe pela prova da vida corporal.
166 b A alma tem, portanto, que passar
por muitas existências corporais? – Sim, todos nós temos muitas
existências. Os que dizem o contrário querem vos manter na ignorância em
que eles próprios se encontram. Esse é o desejo deles.
166 c Desse princípio parece resultar que
a alma, após ter deixado um corpo, toma outro, ou seja, reencarna em um
novo corpo. É assim que se deve entender? – Evidentemente.
167 Qual é o objetivo da reencarnação? – Expiação, melhoramento progressivo da humanidade. Sem isso, onde estaria a justiça?
168 O número de existências corporais é
limitado ou o Espírito reencarna perpetuamente? – A cada nova
existência, o Espírito dá um passo no caminho do progresso. Quando se
libertar de todas as suas impurezas, não tem mais necessidade das
provações da vida corporal.
169 O número de encarnações é o mesmo
para todos os Espíritos? – Não; aquele que caminha rápido se poupa das
provas. Todavia, essas encarnações sucessivas são sempre muito
numerosas, porque o progresso é quase infinito.
170 Em que se torna o Espírito após sua última encarnação? – Espírito bem-aventurado; é um Espírito puro.
JUSTIÇA DA REENCARNAÇÃO
171 Em que se baseia o dogma1 da
reencarnação? – Na justiça de Deus e na revelação, e repetimos
incessantemente: um bom pai deixa sempre para seus filhos uma porta
aberta ao arrependimento. A razão não vos diz que seria injusto privar,
para sempre, da felicidade eterna todos aqueles cujo aprimoramento não
dependeu deles mesmos? Não são todos os homens filhos de Deus? Só homens
egoístas podem pregar a injustiça, o ódio implacável e os castigos sem
perdão. ? Todos os Espíritos estão destinados à perfeição, e Deus lhes
fornece os meios de alcançá-la pelas provações da vida corporal. Mas, na
Sua justiça, lhes permite cumprir, em novas existências, o que não
puderam fazer, ou acabar, numa primeira prova. Não estaria de acordo nem
com a igualdade, a justiça, nem com a bondade de Deus condenar para
sempre os que encontraram, no próprio meio em que viveram, obstáculos ao
seu melhoramento, independentemente de sua vontade. Se a sorte do homem
estivesse irrevogavelmente fixada após a morte, Deus não teria pesado
as ações de todos numa única e mesma balança e não agiria com
imparcialidade. A doutrina da reencarnação, que consiste em admitir para
o homem diversas existências sucessivas, é a única que responde à idéia
que fazemos da justiça de Deus em relação aos homens que se acham numa
condição moral inferior; a única que pode nos explicar o futuro e firmar
nossas esperanças, porque nos oferece o meio de resgatar nossos erros
por novas provações. A razão nos demonstra essa doutrina e os Espíritos a
ensinam. O homem que tem consciência de sua inferioridade encontra na
doutrina da reencarnação uma esperança consoladora. Se acredita na
justiça de Deus, não pode esperar achar-se, perante a eternidade, em pé
de igualdade com aqueles que agiram melhor do que ele. Contudo, o
pensamento de que essa inferioridade não o exclui para sempre do bem
supremo que conquistará mediante novos esforços o sustenta e lhe reanima
a coragem. Quem é que, no término de sua caminhada, não lamenta ter
adquirido muito tarde uma experiência que não pode mais aproveitar?
Porém, essa experiência tardia não está perdida; tirará proveito dela
numa nova vida.
ENCARNAÇÃO NOS DIFERENTES MUNDOS
172 Nossas diferentes existências
corporais se passam todas na Terra? – Não, nem todas, mas em diferentes
mundos. As que passamos na Terra não são nem as primeiras nem as
últimas, embora sejam das mais materiais e mais distantes da perfeição.
173 A alma, a cada nova existência
corporal, passa de um mundo para outro ou pode ter várias existências
num mesmo globo? – Ela pode reviver diversas vezes num mesmo globo, se
não for suficientemente avançada para passar a um mundo superior.
173 a Desse modo, podemos reaparecer muitas vezes na Terra? – Certamente.
173 b Podemos voltar à Terra após ter vivido em outros mundos? – Seguramente. Já vivestes em outros mundos além da Terra.
174 Voltar a viver na Terra é uma
necessidade? – Não; mas se não avançardes, podereis ir para um outro
mundo que não seja melhor e que pode até ser pior.
175 Existe alguma vantagem em voltar a
habitar a Terra? – Nenhuma vantagem em particular, a menos que se esteja
em missão. Nesse caso se progride aí como em qualquer outro mundo.
175 a Não seria melhor permanecer como Espírito? – Não, não. Seria permanecer estacionário, e o que se quer é avançar para Deus.
176 Os Espíritos, após terem encarnado em
outros mundos, podem encarnar neste, sem nunca terem passado por aqui? –
Sim, como vós em outros mundos. Todos os mundos são solidários: o que
não se cumpre em um se cumpre em outro. 176 a Desse modo, há homens que
estão na Terra pela primeira vez? – Há muitos e em diversos graus.
176 b Pode-se reconhecer por um sinal
qualquer quando um Espírito está pela primeira vez na Terra? – Isso não
teria nenhuma utilidade.
177 Para chegar à perfeição e à
felicidade suprema, que são o objetivo final de todos os homens, o
Espírito deve passar por todos os mundos que existem no universo? – Não.
Há muitos mundos que estão num mesmo grau da escala evolutiva e onde o
Espírito não aprenderia nada de novo.
177 a Como então explicar a pluralidade
dessas existências num mesmo globo? – O Espírito pode aí se encontrar a
cada vez em posições bem diferentes, que são para ele outras ocasiões de
adquirir experiência.
178 Os Espíritos podem encarnar
corporalmente num mundo relativamente inferior àquele em que já viveram?
– Sim, se for para cumprir uma missão e ajudar no progresso. Aceitam
com alegria as dificuldades dessa existência, porque lhes oferecem um
meio de avançar.
178 a Isso não pode ocorrer por expiação?
Deus não pode enviar Espíritos rebeldes para mundos inferiores? – Os
Espíritos podem permanecer estacionários, mas não regridem. Quando
estacionam, sua punição é não avançar e ter de recomeçar as existências
mal-empregadas num meio conveniente à sua natureza.
178 b Quais são aqueles que devem recomeçar a mesma existência? – Os que falharam em sua missão ou em suas provações.
179 Os seres que habitam cada mundo
atingiram um mesmo grau de perfeição? – Não, é como na Terra: há seres
mais avançados e menos avançados.
180 Ao passar deste mundo para um outro, o
Espírito conserva a inteligência que tinha aqui? – Sem dúvida, a
inteligência não se perde, mas pode não ter os mesmos meios de
manifestá-la; isso depende de sua superioridade e das condições do corpo
que vai tomar. (Veja “Influência do organismo”, Parte Segunda, cap. 7).
181 Os seres que habitam os diferentes
mundos possuem corpo semelhante aos nosso? – Sem dúvida possuem corpo,
porque é preciso que o Espírito esteja revestido de matéria para agir
sobre a matéria. Porém, esse corpo é mais ou menos material, de acordo
com o grau de pureza a que chegaram os Espíritos. E é isso que
diferencia os mundos que devem percorrer; porque há muitas moradas na
casa de nosso Pai e, portanto, muitos graus. Alguns o sabem e têm
consciência disso na Terra; outros não sabem nada.
182 Podemos conhecer exatamente o estado
físico e moral dos diferentes mundos? – Nós, Espíritos, só podemos
responder de acordo com o grau de adiantamento em que vos encontrais.
Portanto, não devemos revelar essas coisas a todos, visto que nem todos
terão alcance de compreendê-las, e isso os perturbaria. À medida que o
Espírito se purifica, o corpo que o reveste se aproxima igualmente da
natureza espírita. A matéria torna-se menos densa, ele não mais se
arrasta em sofrimento pela superfície do solo, as necessidades físicas
são menos grosseiras e os seres vivos não têm mais necessidade de se
destruírem mutuamente para se alimentar. O Espírito é mais livre e, para
atingir coisas distantes, tem percepções que nos são desconhecidas. Ele
vê pelos olhos do corpo o que apenas pelo pensamento podemos imaginar.
A purificação dos Espíritos reflete-se na
perfeição moral dos seres em que estão encarnados. As paixões brutais
se enfraquecem e o egoísmo dá lugar a um sentimento fraternal. É desse
modo que, nos mundos superiores à Terra, as guerras são desconhecidas,
os ódios e as discórdias não têm motivo, porque ninguém pensa em fazer o
mal a seu semelhante. A intuição que têm do futuro, a segurança que uma
consciência livre de remorsos lhes dá, fazem com que a morte não lhes
cause nenhuma apreensão, por isso a encaram sem temor e a compreendem
como uma simples transformação. A duração da vida nos diferentes mundos
parece ser proporcional ao grau de superioridade física e moral desses
mundos, e isso é perfeitamente racional. Quanto menos material é o
corpo, menos está sujeito às alternâncias e instabilidades que o
desorganizam. Quanto mais puro é o Espírito, mais livre das paixões que o
destroem. Esse é ainda um benefício da Providência que, desse modo,
abrevia os sofrimentos.
183 Ao ir de um mundo para outro, o
Espírito passa por uma nova infância? – A infância é em todos os lugares
uma transição necessária, mas não é tão frágil em todos os lugares como
entre vós, na Terra.
184 O Espírito pode escolher o novo mundo
que vai habitar? – Nem sempre, mas pode pedir e conseguir isso se o
merecer; porque os mundos são acessíveis aos Espíritos de acordo com seu
grau de elevação.
184 a Se o Espírito não pede nada, o que determina o mundo em que deve reencarnar? – O grau de sua elevação.
185 O estado físico e moral, dos seres
vivos é perpetuamente o mesmo em cada globo? – Não; os mundos estão
também submetidos à lei do progresso2. Todos começaram como o vosso, por
um estado inferior, e a própria Terra passará por uma transformação
semelhante. Ela será um paraíso quando os homens se tornarem bons. É
assim que as raças que hoje povoam a Terra desaparecerão um dia e serão
substituídas por seres cada vez mais perfeitos. Essas raças
transformadas sucederão às atuais, como as atuais sucederam a outras
ainda mais atrasadas.
186 Há mundos em que o Espírito, deixando
de habitar um corpo material, tem apenas como envoltório o períspirito?
– Sim, há. Nesses mundos até mesmo esse envoltório, o períspirito,
torna-se tão etéreo que para vós é como se não existisse. É o estado dos
Espíritos puros.
186 a Disso parece resultar que não há
uma demarcação definida entre o estado das últimas encarnações e o de
Espírito puro? – Essa demarcação não existe. A diferença nesse caso se
desfaz pouco a pouco, torna-se imperceptível, assim como a noite se
desfaz diante dos primeiros clarões da alvorada.
187 A substância do períspirito é a mesma
em todos os globos? – Não; é mais ou menos etérea. Ao passar de um
mundo para outro, o Espírito se reveste instantaneamente da matéria
própria de cada um deles, com a rapidez de um relâmpago.
188 Os Espíritos puros habitam mundos
especiais, ou estão no espaço universal, sem estar ligados mais a um
mundo do que a outro? – Os Espíritos puros habitam determinados mundos,
mas não estão restritos a eles como os homens estão à Terra; eles podem,
melhor do que os outros, estar em todos os lugares*.
TRANSMIGRAÇÃO3 PROGRESSIVA
189 Desde o princípio de sua formação, o
Espírito desfruta da plenitude de suas faculdades? – Não, o Espírito,
assim como o homem, tem também sua infância. Na origem, os Espíritos têm
somente uma existência instintiva e mal têm consciência de si mesmos e
de seus atos. É pouco a pouco que a inteligência se desenvolve.
190 Qual é o estado da alma em sua
primeira encarnação? – É o estado de infância na vida corporal. Sua
inteligência apenas desabrocha: a alma ensaia para a vida.
191 As almas de nossos selvagens são
almas em estado de infância? – De infância relativa; são almas já
desenvolvidas, pois já sentem paixões.
191 a As paixões são, então, um sinal de
desenvolvimento? – De desenvolvimento sim, mas não de perfeição. As
paixões são um sinal da atividade e da consciência do eu, visto que, na
alma primitiva, a inteligência e a vida estão em estado de germe. A
vida do Espírito, em seu conjunto, passa pelas mesmas fases que vemos
na vida corporal. Gradualmente, passa do estado de embrião ao de
infância para atingir, no decurso de uma sucessão de períodos, o de
adulto, que é o da perfeição, com a diferença de que não conhece o
declínio e a decrepitude, isto é, a velhice extrema como na vida
corporal. Essa vida, que teve começo, não terá fim; precisa de um tempo
imenso, do nosso ponto de vista, para passar da infância espírita a um
desenvolvimento completo, e seu progresso se realiza não somente num
único mundo, mas passando por diversos mundos. A vida do Espírito se
compõe, assim, de uma série de existências corporais, e cada uma delas é
uma ocasião para o seu progresso, como cada existência corporal se
compõe de uma série de dias em cada um dos quais o homem adquire um
acréscimo de experiência e instrução. Mas, da mesma forma que, na vida
do homem, há dias que não trazem nenhum proveito, também na do Espírito
há existências corporais sem resultado, por não as ter sabido
aproveitar.
192 Pode-se, na vida atual, por efeito de
uma conduta perfeita, superar todos os graus e tornar-se um Espírito
puro sem passar por graus intermediários? – Não, porque o que para o
homem parece perfeito está longe da perfeição. Existem qualidades que
lhe são desconhecidas e que não pode compreender. Ele pode ser tão
perfeito quanto comporte a perfeição de sua natureza terrestre, mas não é
a perfeição absoluta. Da mesma forma que uma criança, por mais precoce
que seja, tem que passar pela juventude antes de alcançar a idade
madura; e um doente tem que passar pelo estado de convalescença antes de
recuperar a saúde. Aliás, o Espírito deve avançar em ciência e
moralidade; se progrediu apenas num deles, é preciso que progrida no
outro, para atingir o alto da escala. Porém, quanto mais o homem avança
em sua vida presente, menos longas e difíceis serão as provas futuras.
192 a O homem pode, pelo menos, assegurar
nesta vida uma existência futura menos cheia de amarguras? – Sim, sem
dúvida, pode abreviar a extensão e reduzir as dificuldades do caminho.
Só o negligente se encontra sempre na mesma situação.
193 Um homem, numa futura existência, pode descer mais baixo do que na atual? – Como posição social, sim; como Espírito, não.
194 A alma de um homem de bem pode, numa nova encarnação, animar o corpo de um perverso? – Não. Ela não pode regredir.
194 À alma de um homem perverso pode
tornar-se a de um homem de bem? – Sim, se houver arrependimento, o que,
então, é uma recompensa. ? A marcha dos Espíritos é progressiva e não
retrógrada. Elevam-se gradualmente na hierarquia e não descem da
categoria que já alcançaram. Em suas diferentes existências corporais
podem descer como homens, mas não como Espíritos. Assim, a alma de um
poderoso da Terra pode mais tarde animar o mais humilde operário, e
vice-versa; essas posições entre os homens ocorrem muitas vezes na razão
inversa dos sentimentos morais. Herodes era rei e Jesus, carpinteiro.
195 A possibilidade de se melhorar numa
outra existência não pode levar certas pessoas a perseverar no mau
caminho, pelo pensamento de que poderão sempre se corrigir mais tarde? –
Aquele que pensa assim não acredita em nada, e nem a idéia de um
castigo eterno o amedrontaria mais do que qualquer outra, porque sua
razão a repele, e essa idéia leva-o à incredulidade a respeito de tudo.
Se unicamente se tivessem empregado meios racionais para orientar os
homens, não haveria tantos céticos. Um Espírito imperfeito pode, de
fato, durante sua vida corporal, pensar como dizeis; mas, uma vez
libertado da matéria, pensa de outra forma, porque logo se apercebe de
que fez um cálculo errado e, então, virá consciente de um sentimento
contrário a esse, na sua nova existência. É assim que se realiza o
progresso e é por essa razão que existem na Terra homens mais avançados
que outros; uns já possuem a experiência que outros ainda não têm, mas
que adquirirão pouco a pouco. Depende deles impulsionar o seu próprio
progresso ou retardá-lo indefinidamente.
O homem que se encontra numa posição má
deseja trocá-la o mais depressa possível. Aquele que está convencido de
que as dificuldades desta vida são a consequência de suas imperfeições
procurará garantir uma nova existência menos sofrida, e esse pensamento o
desviará mais depressa do caminho do mal do que a idéia do fogo eterno,
em que não acredita.
196 Se os Espíritos apenas podem
melhorar-se suportando as dificuldades da existência corporal, segue-se
que a vida material seria uma espécie de cadinho4 ou depurador por onde
devem passar para alcançar a perfeição? – Sim, é exatamente assim. Eles
se melhoram nessas provações evitando o mal e praticando o bem. Mas é só
depois de várias encarnações ou depurações sucessivas que atingem o
objetivo a que se destinam após um tempo mais ou menos longo e de acordo
com seus esforços.
196 a É o corpo que influi sobre o
Espírito para melhorá-lo, ou o Espírito que influi sobre o corpo? – Teu
Espírito é tudo; teu corpo é uma vestimenta que apodrece; eis tudo. No
suco da videira, nós encontramos uma comparação semelhante aos
diferentes graus da depuração da alma. Ele contém o licor chamado
espírito ou álcool, mas enfraquecido por uma série de matérias estranhas
que lhe alteram a essência. Essa essência só atinge a pureza absoluta
após diversas destilações, em cada uma das quais se depura das várias
impurezas. O corpo é o alambique no qual a alma deve entrar para se
depurar; as matérias estranhas são como o perispírito que se depura à
medida que o Espírito se aproxima da perfeição.
DESTINAÇÃO DAS CRIANÇAS APÓS A MORTE
197 O Espírito de uma criança que
desencarna em tenra idade poderá ser tão avançado quanto o de um adulto?
– Algumas vezes é mais, porque pode ter vivido muito mais e ter mais
experiência, principalmente se progrediu.
197 a O Espírito de uma criança pode,
então, ser mais avançado do que o de seu pai? – Isso é muito frequente.
Vós mesmos não vedes isso muitas vezes na Terra?
198 De uma criança que morre em tenra
idade, e, portanto, não tendo praticado o mal, podemos supor que seu
Espírito pertença aos graus superiores? – Se não fez o mal, não fez o
bem, e Deus não a isenta das provações que deve passar. Seu grau de
pureza não ocorre porque tenha animado o corpo de uma criança, mas pelo
progresso que já realizou.
199 Por que a vida é muitas vezes
interrompida na infância? – A duração da vida de uma criança pode ser,
para o Espírito que nela está encarnado, o complemento de uma existência
anterior interrompida antes do tempo. Sua morte é, muitas vezes, também
uma provação ou uma expiação para os pais.
199 a O que acontece com o Espírito de
uma criança que morre em tenra idade? – Ela recomeça uma nova
existência. ? Se o homem tivesse apenas uma existência e se, depois
dela, sua destinação futura fosse fixada perante a eternidade, qual
seria o mérito de metade da espécie humana que morre em tenra idade,
para desfrutar, sem esforços, da felicidade eterna? E com que direito
ficaria desobrigada e livre das condições, muitas vezes tão duras,
impostas à outra metade? Tal ordem de coisas não estaria de acordo com a
justiça de Deus. Pela reencarnação, a igualdade é para todos. O futuro
pertence a todos sem exceção e sem favorecer a ninguém. Os que se
retardam não podem culpar senão a si mesmos. O homem deve ter o mérito
de seus atos, como tem de sua responsabilidade. Além do mais, não é
racional considerar a infância como um estado normal de inocência. Não
se veem crianças dotadas dos piores instintos numa idade em que a
educação ainda não pôde exercer sua influência? Não há algumas que
parecem trazer do berço a astúcia, a falsidade, a malícia, até mesmo o
instinto de roubo e de homicídio, apesar dos bons exemplos que lhe são
dados de todos os lados? A lei civil as absolve de seus delitos, porque
considera que agem sem discernimento. E tem razão, porque, de fato, agem
mais instintivamente do que pela própria vontade. Porém, de onde podem
se originar esses instintos tão diferentes em crianças da mesma idade,
educadas nas mesmas condições e submetidas às mesmas influências? De
onde vem essa perversidade precoce, senão da inferioridade do Espírito,
uma vez que a educação em nada contribuiu para isso? As que são dadas a
vícios, é porque seu Espírito progrediu menos e, portanto, sofrem as
consequências, não por seus atos de infância, mas por aqueles de suas
existências anteriores. E é desse modo que a lei é igual para todos, e a
justiça de Deus a todos alcança.
SEXO NOS ESPÍRITOS
200 Os Espíritos têm sexo? – Não
como o entendeis, porque o sexo depende do organismo físico. Existe
entre eles amor e simpatia, mas fundados na identidade dos sentimentos.
201 O Espírito que animou o corpo de um
homem pode, em uma nova existência, animar o de uma mulher e vice-versa?
– Sim, são os mesmos Espíritos que animam os homens e as mulheres.
202 Quando está na erraticidade, o
Espírito prefere encarnar no corpo de um homem ou de uma mulher? – Isso
pouco importa ao Espírito. Depende das provas que deve suportar. ? Os
Espíritos encarnam como homens ou mulheres, porque não têm sexo. Como
devem progredir em tudo, cada sexo, assim como cada posição social, lhes
oferece provas, deveres especiais e a ocasião de adquirir experiência.
Aquele que encarnasse sempre como homem apenas saberia o que sabem os
homens.
PARENTESCO, FILIAÇÃO
203 Os pais transmitem aos filhos
uma porção de sua alma ou limitam-se a dar-lhes a vida animal a que uma
nova alma, mais tarde, vem acrescentar a vida moral? – Dão-lhe apenas a
vida animal, porque a alma é indivisível. Um pai estúpido pode ter
filhos inteligentes e vice-versa.
204 Uma vez que tivemos diversas
existências, o parentesco pode recuar além de nossa existência atual? –
Não pode ser de outra forma. A sucessão das existências corporais
estabelece entre os Espíritos laços que remontam às existências
anteriores. Daí muitas vezes decorrem as causas de simpatia entre vós e
alguns Espíritos que vos parecem estranhos.
205 Por que, aos olhos de certas pessoas,
a doutrina da reencarnação se apresenta como destruidora dos laços de
família por fazê-los recuar às existências anteriores? – Ela não os
destrói. Ela os amplia. O parentesco, estando fundado em afeições
anteriores, faz com que os laços que unem os membros de uma mesma
família sejam mais vigorosos. Essa doutrina amplia também os deveres da
fraternidade, uma vez que, entre os vossos vizinhos, ou entre os
servidores, pode-se encontrar um Espírito que esteve ligado a vós pelos
laços de sangue.
205 a Ela diminui, entretanto, a
importância que alguns atribuem à sua genealogia5 , uma vez que se pode
ter tido por pai um Espírito que pertenceu a outra raça, ou tendo vindo
de uma condição bem diversa? – É verdade, mas essa importância está
fundada no orgulho. O que essas pessoas honram em seus ancestrais são os
títulos, a posição, a fortuna. Alguém que coraria de vergonha por ter
tido como antepassado um honesto sapateiro se gabaria de descender de um
nobre corrupto e debochado. Mas o que quer que eles digam ou façam, não
impedirão as coisas de ser o que são, porque Deus não formulou as leis
da natureza de acordo com a vaidade deles.
206 Do fato de não haver ligações de
filiação entre os Espíritos de descendentes da mesma família, segue-se
que o culto aos ancestrais seja uma coisa ridícula? – Certamente que
não. Todo homem deve considerar-se feliz por pertencer a uma família em
que encarnam Espíritos elevados. Embora os Espíritos não procedam uns
dos outros, têm afeição aos que lhe estão ligados pelos laços de
família, porque esses Espíritos são frequentemente atraídos a esta ou
àquela família em razão de simpatias ou ligações anteriores. Mas, ficai
certos: os Espíritos de vossos ancestrais não se sentem honrados pelo
culto que vós lhes ofereceis por orgulho. O valor dos méritos que
tiveram só se refletirão sobre vós pelo esforço que fizerdes em
seguir-lhes os bons exemplos, e, só assim, então, vossa lembrança pode
lhes ser agradável e útil.
SEMELHANÇAS FÍSICAS E MORAIS
207 Os pais transmitem muitas vezes a
seus filhos a semelhança física. Eles também lhes transmitem alguma
semelhança moral? – Não, uma vez que têm almas ou Espíritos diferentes. O
corpo procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre
os descendentes das raças há apenas consanguinidade.
207 a De onde vêm as semelhanças morais
que existem algumas vezes entre os pais e filhos? – São Espíritos
simpáticos atraídos pela semelhança de suas tendências.
208 O Espírito dos pais tem influência
sobre o do filho após o nascimento? – Há uma influência muito grande.
Como já dissemos, os Espíritos devem contribuir para o progresso uns dos
outros. Pois bem, os Espíritos dos pais têm como missão desenvolver o
de seus filhos pela educação. É para eles uma tarefa: se falharem, serão
culpados.
209 Por que pais bons e virtuosos geram,
às vezes, filhos de natureza perversa? Melhor dizendo, por que as boas
qualidades dos pais nem sempre atraem, por simpatia, um bom Espírito
para animar seu filho? – Um Espírito mau pode pedir pais bons, na
esperança de que seus conselhos o orientem a um caminho melhor e, muitas
vezes, Deus lhe concede isso.
210 Os pais podem, por seus pensamentos e
preces, atrair para o corpo de um filho um Espírito bom em preferência a
um Espírito inferior? – Não, mas podem melhorar o Espírito do filho que
geraram e que lhes foi confiado: é seu dever. Filhos maus são uma
provação para os pais.
211 De onde vem a semelhança de caráter
que muitas vezes existe entre dois irmãos, especialmente entre gêmeos? –
Espíritos simpáticos que se aproximam por semelhança de sentimentos e
que se sentem felizes por estar juntos.
212 Nas crianças cujos corpos nascem
ligados e que possuem certos órgãos em comum há dois Espíritos, ou
melhor, duas almas? – Sim, há duas, são dois os corpos. Entretanto, a
semelhança entre eles é tanta que se afigura aos vossos olhos como se
fossem uma só6 .
213 Visto que os Espíritos encarnam como
gêmeos por simpatia, de onde vem a aversão que se vê algumas vezes entre
eles? – Não é uma regra que os gêmeos sejam Espíritos simpáticos.
Espíritos maus podem querer lutar juntos no teatro da vida.
214 O que pensar das histórias de
crianças gêmeas que brigam no ventre da mãe? – Lendas! Para dar idéia de
que seu ódio era muito antigo, fizeram-no presente antes de seu
nascimento. Geralmente vós não levais em conta as figuras poéticas.
215 De onde vem o caráter distintivo que
se nota em cada povo? – Os Espíritos também se agrupam em famílias
formadas pela semelhança de suas tendências mais ou menos depuradas, de
acordo com sua elevação. Pois bem! Um povo é uma grande família na qual
se reúnem Espíritos simpáticos. A tendência que têm os membros dessas
grandes famílias os leva a se unirem, daí se origina a semelhança que
existe no caráter distintivo de cada povo. Acreditais que Espíritos bons
e caridosos procurarão um povo duro e grosseiro? Não, os Espíritos
simpatizam com as coletividades, assim como simpatizam com os
indivíduos; aí estão em seu meio.
216 O homem conserva, em suas novas
existências, traços do caráter moral de existências anteriores? – Sim,
isso pode ocorrer; mas ao se melhorar, ele muda. Sua posição social pode
também não ser mais a mesma. Se de senhor torna-se escravo, seus gostos
serão completamente diferentes e teríeis dificuldade em reconhecê-lo.
Sendo o Espírito sempre o mesmo nas diversas encarnações, suas
manifestações podem ter uma ou outra semelhança, modificadas,
entretanto, pelos hábitos de sua nova posição, até que um
aperfeiçoamento notável venha mudar completamente seu caráter; por isso,
de orgulhoso e mau, pode tornar-se humilde e bondoso, desde que se
tenha arrependido.
217 O homem, pelo Espírito, conserva
traços físicos das existências anteriores em suas diferentes
encarnações? – O corpo que foi anteriormente destruído não tem nenhuma
relação com o novo. Entretanto, o Espírito se reflete no corpo.
Certamente, o corpo é apenas matéria, mas apesar disso é modelado de
acordo com a capacidade do Espírito que lhe imprime um certo caráter,
principalmente ao rosto, e é verdade quando se diz que os olhos são o
espelho da alma, ou seja, é o rosto que mais particularmente reflete a
alma. É assim que uma pessoa sem grande beleza tem, entretanto, algo que
agrada quando é animada por um Espírito bom, sábio, humanitário,
enquanto existem rostos muito belos que nada fazem sentir, podendo até
inspirar repulsa. Poderíeis pensar que apenas os corpos muito belos
servem de envoltório aos Espíritos mais perfeitos; entretanto,
encontrais todos os dias homens de bem sem nenhuma beleza exterior. Sem
haver uma semelhança pronunciada, a similitude dos gostos e das
inclinações pode dar o que se chama de um ‘ar de família’. Tendo em
vista que o corpo que reveste a alma na nova encarna- ção não tem
necessariamente nenhuma relação com o da encarnação anterior, uma vez
que em relação a ele pode ter uma procedência completamente diferente,
seria absurdo admitir que numa sucessão de existências ocorressem
semelhanças que não passam de casuais. Entretanto, as qualidades do
Espírito modificam frequentemente os órgãos que servem às suas
manifestações e imprimem ao semblante, e até mesmo ao conjunto das
maneiras, um cunho especial. É assim que, sob o envoltório mais humilde,
pode-se encontrar a expressão da grandeza e da dignidade, enquanto sob a
figura do grande senhor pode-se ver algumas vezes a expressão da
baixeza e da desonra. Algumas pessoas, saídas da mais ínfima posição,
adquirem, sem esforços, os hábitos e as maneiras da alta sociedade.
Parece que elas reencontram seu ambiente, enquanto outras, apesar de seu
nascimento e educação, estão nesse mesmo ambiente sempre deslocadas.
Como explicar esse fato senão como um reflexo do que o Espírito foi
antes?
IDEIAS INATAS
218 O Espírito encarnado conserva algum
traço das percepções que teve e dos conhecimentos que adquiriu em suas
existências anteriores? – Ele possui uma vaga lembrança, que lhe dá o
que se chama de ideias inatas.
218 A teoria das ideias inatas não é,
portanto, uma fantasia? – Não, os conhecimentos adquiridos em cada
existência não se perdem. O Espírito, liberto da matéria, sempre os
conserva. Durante a encarnação, pode esquecê-los em parte,
momentaneamente, mas a intuição que conserva deles o ajuda em seu
adiantamento. Sem isso, teria sempre que recomeçar. A cada nova
existência, o Espírito parte de onde estava na existência anterior.
218 b Pode, então, haver um grande
vínculo entre duas existências sucessivas? – Nem sempre tão grande
quanto podeis supor, porque as posições são frequentemente muito
diferentes e, no intervalo delas, o Espírito pode ter progredido. (Veja a
questão 216.)
219 Qual é a origem das faculdades, das
capacidades extraordinárias dos indivíduos que, sem estudo prévio,
parecem ter a intuição de certos conhecimentos, como a língua, o
cálculo, etc.? – Lembrança do passado; progresso anterior da alma, mas
do qual nem mesmo ela tem consciência. De onde quereis que esses
conhecimentos venham? O corpo muda, mas o Espírito não, embora troque de
vestimenta.
220 Ao mudar de corpo, podem-se perder
alguns talentos intelectuais, não mais ter, por exemplo, o gosto pelas
artes? – Sim, se desonrou esse talento ou se fez dele um mau uso. Uma
capacidade intelectual pode, além do mais, permanecer adormecida numa
existência, porque o Espírito veio para exercitar uma outra que não tem
relação com ela. Então, qualquer talento pode permanecer em estado
latente para ressurgir mais tarde.
221 É a uma lembrança retrospectiva que o
homem deve, mesmo no estado selvagem, o sentimento instintivo da
existência de Deus e o pressentimento da vida futura? – É uma lembrança
que conservou do que sabia como Espírito antes de encarnar; mas o
orgulho muitas vezes sufoca esse sentimento.
221 a É a essa lembrança que se devem
certas crenças relativas à Doutrina Espírita e que se encontram em todos
os povos? – Essa Doutrina é tão antiga quanto o mundo; eis por que pode
ser encontrada em toda parte, sendo uma prova de que é verdadeira. O
Espírito encarnado, conservando a intuição de seu estado como Espírito,
tem, instintivamente, a consciência do mundo invisível, frequentemente
falseada pelos preconceitos, acrescida da ignorância que a mistura com a
superstição.
CAPÍTULO 5
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PLURALIDADE DAS EXISTÊNCIAS
222 O dogma da reencarnação, dizem
algumas pessoas, não é novo; foi tomado de Pitágoras1 . Nós nunca
dissemos que a Doutrina Espírita é invenção moderna. Os fatos espíritas,
o Espiritismo, sendo uma lei da natureza, deve existir desde a origem
dos tempos, e sempre nos esforçamos para provar que se encontram traços
dele desde a mais alta Antiguidade. Pitágoras, como se sabe, não é o
autor da metempsicose2 ; ele a tomou dos filósofos indianos e egípcios,
que a conheciam desde tempos imemoriais. A idéia da transmigração das
almas era uma crença comum, admitida pelos homens mais eminentes. Por
qual meio chegou até eles? Foi por revelação ou por intuição? Não
sabemos. Mas, seja como for, uma idéia não atravessa os tempos e não é
aceita por inteligências de elite se não tiver algo de sério. A
antiguidade dessa doutrina seria mais uma prova a seu favor do que uma
objeção. Todavia, entre a metempsicose dos antigos e a doutrina moderna
da reencarnação há, como se sabe, uma grande diferença que os Espíritos
rejeitam de maneira mais absoluta. É a da transmigração da alma do homem
para os animais e vice-versa. Os Espíritos, ao ensinarem o dogma da
pluralidade das existências corporais, renovam, portanto, uma doutrina
proveniente das primeiras idades do mundo e que se conservou até nossos
dias no pensamento íntimo de muitas pessoas. Os Espíritos apenas a
apresentam sob um ponto de vista racional, mais de acordo com as leis
progressivas da natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador,
livre de todos os acessórios da superstição. Uma circunstância digna de
nota é que não foi apenas neste livro que os Espíritos a ensinaram nos
últimos tempos: já antes da sua publicação, numerosas comunicações
semelhantes haviam sido obtidas em diversos países e depois se
multiplicaram de forma extraordinária. Seria talvez o caso de
examinarmos aqui as razões por que todos os Espíritos não parecem estar
de acordo sobre esta questão. Mais à frente voltaremos a esse assunto.
Examinemos a questão sob outro ponto de vista e façamos uma separação,
deixando de lado toda intervenção dos Espíritos por enquanto. Suponhamos
que esta teoria não foi dada por eles, e que até mesmo nunca se abordou
esta questão com os Espíritos. Coloquemo-nos, momentaneamente, num
terreno neutro, admitindo o mesmo grau de probabilidade para uma e outra
hipótese, isto é, a pluralidade e a unicidade das existências
corporais. Vejamos para qual lado nos guiará o nosso interesse e a
razão. Certas pessoas rejeitam a idéia da reencarnação pelo único motivo
de que ela não lhes convém, dizendo ser-lhes suficiente uma só
existência e que não gostariam de recomeçar outra parecida. Reconhecemos
que o simples pensamento de reaparecer na Terra as faz pular de furor. É
compreensível que o simples pensamento de terem de reaparecer na Terra
as faça ficar furiosas. Mas a estes convém apenas lembrar se acaso Deus,
para reger o universo, tenha que pedir-lhes conselho ou consultar seus
gostos. Portanto, de duas coisas, uma: ou a reencarnação existe ou não
existe. Se existe, embora as contrarie, será preciso enfrentá-la sem que
Deus lhes peça permissão para isso. Essas pessoas parecem-se com um
doente que diz: “Sofri o bastante por hoje, não quero mais sofrer
amanhã”. Mas, apesar de seu mau humor, não terá, por isso, que sofrer
menos amanhã e nos dias seguintes, até que esteja curado. Portanto, se
tiverem de viver de novo, corporalmente, reviverão, reencarnarão.
Protestarão inutilmente, como a criança que não quer ir à escola ou o
condenado, para a prisão. Será preciso que passem por isso. Objeções
semelhantes são muito ingênuas para merecer um exame mais sério.
Diremos, entretanto, para tranquilizá-las, que o que a Doutrina Espírita
ensina sobre a reencarnação não é tão terrível quanto lhes parece; se a
estudassem a fundo, não ficariam tão assustadas, saberiam que a
condição dessa nova existência depende delas; serão felizes ou infelizes
de acordo com o que tiverem feito aqui na Terra e podem, a partir dessa
vida, se elevar tão alto que não temerão mais a queda no lodaçal.
Supomos falar a pessoas que acreditem num futuro qualquer depois da
morte e não àquelas que tomam o nada por perspectiva ou que querem fazer
desaparecer sua alma num todo universal, sem individualidade,
exatamente como as gotas de chuva somem no oceano. Se, portanto,
acreditais num futuro qualquer, não admitireis, sem dúvida, que seja o
mesmo para todos, porque, senão, onde estaria a utilidade do bem? Por
que se reprimir? Por que não satisfazer a todas as paixões, todos os
desejos, mesmo à custa dos outros, uma vez que por isso não se ficaria
nem melhor nem pior? Credes, ao contrário disso, que esse futuro será
mais ou menos feliz ou infeliz, de acordo com o que tivermos feito
durante a vida? Tendes a esperança de que seja tão feliz quanto
possível, uma vez que é pela eternidade? Teríeis, por acaso, a pretensão
de vos considerar um dentre os homens mais perfeitos que já existiram
sobre a Terra e de ter, assim, o direito de alcançar imediatamente a
felicidade suprema dos eleitos? Não. Admitis que existem homens com
valores maiores do que os vossos e que têm o direito a um lugar melhor,
sem que com isso estejais entre os condenados. Pois bem! Colocai-vos
mentalmente por um instante nessa situação intermediária que seria a
vossa, como acabastes de reconhecer, e imaginai que alguém venha vos
dizer: “Sofreis, não sois tão felizes quanto poderíeis ser, enquanto
tendes diante de vós seres que desfrutam de uma felicidade perfeita;
quereis mudar vossa posição com a deles?” Sem dúvida, direis: “Que é
preciso fazer?” “Muito pouco, muito simples. Recomeçar o que fizestes
mal e procurar fazê-lo melhor”. Hesitaríeis em aceitar esta proposta
mesmo a preço de muitas existências de provações? Façamos outra
comparação simples. Se viessem dizer a um homem que, embora não estando
entre os últimos dos miseráveis, sofresse privações pela escassez de
seus recursos: “Eis ali uma imensa fortuna, podeis dela desfrutar, sendo
preciso para isso trabalhar arduamente durante um minuto”. Mesmo o mais
preguiçoso da Terra diria sem hesitar: “Trabalharei um minuto, dois,
uma hora ou um dia se for preciso; que importa isso, se vou terminar
minha vida na abundância?” Portanto, o que é a duração da vida corpórea
perante a eternidade? Menos de um minuto, menos de um segundo. Temos
visto algumas pessoas raciocinarem deste modo: Deus, que é soberanamente
bom, não pode impor ao homem recomeçar uma série de misérias e
dificuldades. Por acaso, consideram essas pessoas que há em Deus mais
justiça e bondade quando condena o homem a um sofrimento perpétuo, por
alguns momentos de erro, do que quando lhe dá os meios de reparar suas
faltas? Dois industriais tinham, cada um, um operário que podia aspirar a
tornar-se sócio da empresa. Aconteceu que esses dois trabalhadores
empregaram certa vez muito mal o dia de trabalho e mereciam ambos ser
despedidos. Um dos patrões despediu o operário, apesar de suas súplicas,
e este, não tendo mais encontrado trabalho, morreu na miséria. O outro
disse ao seu empregado: “Perdeste um dia de serviço, tu me deves um
outro como recompensa. Fizeste mal o teu trabalho, me deves a reparação;
eu te permito recomeçar, trata de o fazer bem e eu te conservarei, e
poderás sempre aspirar à posição superior que te prometi”. É necessário
perguntar qual dos dois patrões foi o mais humano? Deus, que é a própria
clemência, seria mais impiedoso do que um homem? O pensamento de que
nosso destino está fixado para sempre em razão de alguns anos de
provação, até mesmo quando não tenha dependido de nós alcançar a
perfeição na Terra, tem algo de desanimador, enquanto a idéia oposta é
eminentemente consoladora, porque nos dá a esperança. Desse modo, sem
nos pronunciarmos a favor ou contra a pluralidade das existências, sem
dar preferência a uma hipótese ou outra, diremos que, se fosse dado ao
homem o direito de escolha, não haveria ninguém que preferisse um
julgamento sem apelação. Um filósofo disse que se Deus não existisse,
seria preciso inventá-lo para a felicidade dos seres humanos3 . O mesmo
se pode dizer da pluralidade das existências.
Mas, como já ficou dito, Deus não pede
nossa permissão; não consulta nossa vontade. Ou isto é, ou não é.
Vejamos de que lado estão as probabilidades e tomemos a questão sob um
outro ponto de vista, deixando outra vez de lado o ensinamento dos
Espíritos para analisá-la, unicamente, como estudo filosófico. Se não
existe reencarnação, não há senão uma existência corporal; isso é
evidente. Se nossa existência corporal atual é a única, a alma de cada
homem é criada no momento do seu nascimento, a menos que se admita a
anterioridade da alma e, nesse caso, se perguntará qual foi o estado da
alma antes de seu nascimento e se esse estado não constituía, por si só,
uma existência sob uma forma qualquer. Não há meio-termo possível: ou a
alma existia ou não existia antes do corpo. Se existia, qual era sua
situação? Ela tinha ou não consciência de si mesma? Se não tinha, é como
se não existisse. Se tinha individualidade, era progressiva ou
estacionária? Tanto num caso como no outro, em que grau se achava ao
tomar o corpo? Ao admitir, de acordo com a crença popular, que a alma
nasce com o corpo, ou, o que vem a dar no mesmo, que antes de sua
encarnação tinha apenas qualidades negativas, fazemos as seguintes
questões: 1. Por que a alma mostra aptidões tão diversas e independentes
das ideias adquiridas pela educação? 2. De onde vem a aptidão
extranormal de certas crianças de tenra idade para determinada arte ou
ciência, enquanto outras permanecem inferiores ou medíocres por toda a
vida? 3. De onde vêm, em uns, as ideias inatas ou intuitivas que não
existem em outros? 4. De onde vêm, em algumas crianças, esses instintos
precoces de vícios ou de virtudes, esses sentimentos inatos de dignidade
ou de baixeza, que contrastam com o meio em que nasceram? 5. Por que
certos homens, independentemente da educação, são mais avançados que
outros? 6. Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomardes uma
criança hotentote4 recém-nascida e a educardes nas escolas mais
renomadas, fareis dela algum dia um Laplace5 ou um Newton6 ?
Perguntamos: qual é a filosofia ou a teosofia7 que pode resolver esses
problemas? Ou as almas são iguais no seu nascimento, ou são desiguais,
não há a menor dúvida disso. Se são iguais, por que são tão diversas as
suas aptidões? Dirão que isso depende do organismo. Nesse caso, então
seria a mais monstruosa e mais imoral das doutrinas. O homem seria
apenas uma máquina, o joguete da matéria, e assim não teria mais as
responsabilidades por seus atos, pois poderia atribuir tudo às suas
imperfeições físicas. Se são desiguais as almas, é porque Deus as criou
assim; mas, então, por que essa superioridade inata concedida a alguns?
Estará essa parcialidade, esse favorecimento de acordo com a Sua justiça
e com o amor igual que dedica a todas as criaturas? Admitamos, ao
contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas para cada
alma e tudo estará claramente explicado. Os homens trazem ao nascer a
intuição do que adquiriram em vidas anteriores; são mais ou menos
avançados de acordo com o número de existências por que passaram,
conforme estejam mais ou menos distantes do ponto de partida, exatamente
como numa reunião de indivíduos de todas as idades, em que cada um terá
um desenvolvimento proporcional ao número de anos que tiver vivido. As
existências sucessivas serão, para a vida da alma, o que os anos são
para a vida do corpo. Reuni de uma vez mil indivíduos, de um a oitenta
anos. Imaginai que um véu seja lançado sobre todos os dias que ficaram
para trás, e que, em vossa ignorância, os acreditais nascidos todos no
mesmo dia: perguntareis naturalmente como uns podem ser grandes e outros
pequenos, uns velhos e outros jovens, uns instruídos e outros ainda
ignorantes. Mas se o véu que esconde o passado se dissipar, se chegardes
a saber que todos viveram um tempo mais ou menos longo, tudo se
explicará. Deus, em Sua justiça, não podia ter criado almas mais
perfeitas e outras menos perfeitas; mas, com a pluralidade das
existências, a desigualdade, as diferenças e divergências da vida não
tem nada contrário à mais rigorosa justiça: pois vemos apenas o
presente, não o passado. Este raciocínio se baseia em algum sistema ou é
uma suposição gratuita? Não. Partimos de um fato patente,
incontestável: a desigualdade das qualidades, das aptidões e do
desenvolvimento intelectual e moral, e verificamos que esse fato é
inexplicável por todas as teorias correntes; enquanto a explicação é
simples, natural e lógica por uma outra teoria. É racional preferir as
que não explicam àquela que explica? Em relação à sexta questão, sem
dúvida se dirá que o hotentote é de uma raça inferior. Então
perguntaremos se o hotentote é ou não é um homem. Se é um homem, por que
Deus o fez, e à sua raça, deserdados de privilégios concedidos à raça
caucásica8 ? Se não é um homem, por que procurar fazê-lo cristão? A
Doutrina Espírita é mais ampla que tudo isso; para ela não há diversas
espécies de homens, há apenas homens cujos Espíritos estão mais ou menos
atrasados, todos, porém, suscetíveis de progredir. Não está, este
princípio, mais de acordo com a justiça de Deus?
Acabamos de avaliar as condições da alma
quanto ao passado e ao presente. Se nós a considerarmos numa projeção
quanto ao seu futuro, encontraremos as mesmas dificuldades. 1. Se nossa
existência atual é única, deve decidir a nossa destina- ção vindoura.
Qual é, então, na vida futura, a posição respectiva do selvagem e do
homem civilizado? Estarão no mesmo plano ou estarão distanciados em
relação à felicidade eterna? 2. O homem que trabalhou durante toda a
vida para se aperfeiçoar estará na mesma posição daquele que permaneceu
inferior, não por sua culpa, mas porque não teve tempo nem oportunidade
de se aperfeiçoar? 3. O homem que praticou o mal, porque não pôde se
esclarecer, será culpado por um estado de coisas que não dependeram
dele? 4. Trabalha-se para esclarecer os homens, para moralizá-los,
civilizá-los; mas, para cada um que se esclareça, há milhões de outros
que morrem a cada dia antes que a luz chegue até eles. Qual será o fim
deles? Serão tratados como condenados? Se não forem, o que fizeram para
merecer estar na mesma posição que os outros? 5. Qual é o destino das
crianças que morrem em tenra idade e que não puderam, por isso, fazer o
bem nem o mal? Se ficarem entre os eleitos, por que esse favorecimento,
sem terem feito nada para merecê-lo? Por qual privilégio se livraram das
dificuldades da vida? Há alguma doutrina capaz de esclarecer essas
questões? Admiti as existências consecutivas e tudo estará explicado de
acordo com a justiça de Deus. O que não puder ser feito numa existência
se fará em outra. É assim que ninguém escapa à lei do progresso. Cada um
será recompensado de acordo com seu mérito real e ninguém é excluído da
felicidade suprema, a que pode pretender, sejam quais forem os
obstáculos que venha a encontrar no caminho. Essas questões poderiam ser
multiplicadas ao infinito, porque são inúmeros os problemas
psicológicos e morais que só encontram solução na pluralidade das
existências. Limitamo-nos apenas à observação dos mais comuns. Poderão
também dizer que a doutrina da reencarnação não é admitida pela Igreja,
porque ela seria a subversão da religião. Nosso objetivo não é tratar
dessa questão neste momento; basta-nos ter demonstrado que a
reencarnação é eminentemente moral e racional. Portanto, o que é moral e
racional não pode ser contrário a uma religião que proclama ser Deus a
bondade e a razão por excelência. Que teria sido da religião se, contra a
opinião universal e a comprovação da ciência, se houvesse posicionado
contra a evidência e tivesse expulsado de seu seio todos os que não
acreditassem no movimento do Sol ou nos seis dias da criação? Que
crédito mereceria e que autoridade teria, entre os povos mais
esclarecidos, uma religião fundada em erros notórios que fossem impostos
como artigos de fé? Quando a evidência foi comprovada, a Igreja se
colocou sabiamente ao lado do que era evidente. Se está provado que
existem coisas impossíveis sem a reencarnação e que certos pontos do
dogma somente podem ser explicados por ela, é preciso admitir e
reconhecer que a discordância entre essa doutrina e os dogmas é apenas
aparente. Mais adiante mostraremos que a religião está menos distanciada
do que se pensa da doutrina das vidas sucessivas e que se a aceitasse
não sofreria maiores danos do que já sofreu com a descoberta do
movimento da Terra e dos períodos geológicos que, à primeira vista,
pareceram desmentir os textos bíblicos. O princípio da reencarnação
ressalta, aliás, em muitas passagens das Escrituras, e se encontra
notavelmente formulado de maneira clara e inequívoca no Evangelho:
“Quando desciam do monte (após a transfiguração), Jesus lhes ordenou:
‘Não faleis a ninguém o que acabastes de ver, até que o filho do homem
seja ressuscitado dentre os mortos’. Seus discípulos o interrogaram,
então, dizendo: ‘Por que os escribas dizem que é preciso que Elias venha
primeiro?’ Mas Jesus lhes respondeu: ‘É verdade que Elias deve vir e
que restabelecerá todas as coisas. Mas eu vos declaro que Elias já veio,
e eles não o conheceram, mas o fizeram sofrer como quiseram. É assim
que farão morrer o filho do homem.’ Então seus discípulos entenderam que
era de João Batista que ele lhes falava” (Mateus, cap. 17). Uma vez que
João Batista era Elias, deve ter ocorrido a reencarnação do Espírito ou
da alma de Elias no corpo de João Batista. Qualquer que seja, enfim, a
opinião que se tenha da reencarnação, quer a aceitemos ou não, todos
teremos de passar por ela, caso ela exista, apesar de toda crença
contrária. O ponto essencial é que o ensinamento dos Espíritos é
eminentemente cristão. Apoia-se na imortalidade da alma, nas penas e
recompensas futuras, na justiça de Deus, no livrearbí- trio do homem, na
moral do Cristo e, portanto, não é antirreligioso. Até agora
argumentamos, como dissemos, pondo de lado todo ensinamento espírita
que, para algumas pessoas, não tem autoridade. Se nós, assim como muitos
outros, adotamos a opinião da pluralidade das existências, não é apenas
porque o ensinamento tenha vindo dos Espíritos. É porque esta Doutrina
nos pareceu a mais lógica e porque só ela resolve questões até então
insolúveis. Mesmo se fosse da autoria de um simples mortal, nós a
teríamos igualmente adotado e não hesitaríamos nem mais um segundo em
renunciar às nossas próprias idéias. No momento em que um erro é
demonstrado, o amor-próprio tem mais a perder do que a ganhar ao se
manter teimosamente numa idéia falsa. Da mesma forma, nós a teríamos
rejeitado, mesmo que tivesse vindo dos Espíritos, se nos parecesse
contrária à razão, assim como negamos muitas outras; porque sabemos, por
experiência, que não devemos aceitar cegamente tudo o que vem da parte
deles, da mesma maneira que não se deve aceitar tudo que vem da parte
dos homens. A maior distinção, o primeiro título, que para nós recomenda
a idéia da reencarnação, antes de tudo, é o de ser lógica. Mas existe
uma outra, que é o de ser confirmada pelos fatos: fatos positivos e, por
assim dizer, materiais, que um estudo atento e racional pode revelar a
qualquer um que se dê ao trabalho de observar com paciência e
perseverança, diante dos quais não pairam mais dúvidas. Quando esses
fatos se popularizarem, como os da formação e do movimento da Terra,
será preciso render-se à evidência e os opositores terão gasto em vão os
argumentos contrários. Reconheçamos, em resumo, que a doutrina da
pluralidade das existências é a única que explica o que, sem ela, é
inexplicável. Que é eminentemente consoladora e está em harmonia com a
mais rigorosa justiça e é, para o homem, a âncora de salvação que Deus
lhe deu na Sua misericórdia. Até mesmo as palavras de Jesus não podem
deixar dúvida sobre este assunto. Eis o que é dito no Evangelho de João,
cap. 3: 3. Jesus, respondendo a Nicodemos, disse: “Em verdade, em
verdade te digo que se um homem não nasce de novo, não pode ver o reino
de Deus”. 4. Nicodemos lhe disse: “Como um homem pode nascer sendo já
velho? Pode ele entrar no ventre de sua mãe e nascer uma segunda vez?”
5. Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade te digo que se um homem não
renascer da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que
nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é Espírito. Não te
espantes com o que te disse: Necessário vos é nascer de novo”. (Veja a
seguir a questão 1010, “Ressurreição da carne”).
CAPÍTULO 6
VIDA ESPÍRITA
Espíritos errantes – Mundos transitórios
- Percepções, sensações e sofrimentos dos Espíritos
– Ensaio teórico sobre a sensação nos Espíritos
– Escolha das provas
– Relações após a morte
– Relações de simpatia e antipatia dos Espíritos.
- Metades eternas
– Lembrança da existência corporal
– Comemoração dos mortos. Funerais
ESPÍRITOS ERRANTES
223 A alma reencarna imediatamente após a
separação do corpo? – Algumas vezes pode reencarnar imediatamente, mas
normalmente só após intervalos mais ou menos longos. Nos mundos
superiores, a reencarnação é quase sempre imediata. Nesses mundos em que
a matéria corporal é menos grosseira, o Espírito, quando encarnado,
desfruta de quase todos os seus atributos de Espírito. Seu estado normal
é semelhante ao dos vossos sonâmbulos lúcidos.
224 Em que se torna a alma no intervalo das encarnações? – Espírito errante que aguarda nova oportunidade e a espera.
224 a Qual a duração desses intervalos? –
De algumas horas a alguns milhares de séculos. Não há, propriamente
falando, limite extremo estabelecido para o estado de erraticidade, que
pode se prolongar por muito tempo, mas que nunca é perpétuo. O Espírito
sempre encontra, cedo ou tarde, a oportunidade de recomeçar uma
existência que sirva de purificação às suas existências anteriores.
224 b Essa duração está subordinada à
vontade do Espírito ou pode ser imposta como expiação? – É uma
consequência do livre-arbítrio. Os Espíritos têm perfeita consciência do
que fazem, mas para alguns é também uma punição que a Providência lhes
impõe1 . Outros pedem para que se prolongue, a fim de progredirem nos
estudos que só podem ser feitos com proveito na condição de Espírito.
225 A erraticidade é, por si mesma, um sinal de inferioridade dos Espíritos?
– Não, porque existem Espíritos errantes
de todos os graus. A encarnação é para o Espírito um estado transitório.
Como já dissemos, em seu estado normal, o Espírito está liberto da
matéria.
226 Todos os Espíritos que não estão
encarnados são errantes? – Daqueles que devem reencarnar, sim. Mas os
Espíritos puros que atingiram a perfeição não são errantes: seu estado é
definitivo. Os Espíritos, com relação às qualidades íntimas, são de
diferentes ordens ou graus que vão avançando sucessivamente à medida que
se depuram. Quanto ao estado em que se acham, podem ser: encarnados, ou
seja, unidos a um corpo; errantes, quer dizer, despojados do corpo
material à espera de uma nova encarnação para se aperfeiçoarem;
Espíritos puros, perfeitos, que não têm mais necessidade de encarnação.
227 De que maneira os Espíritos errantes
se instruem? É como nós? – Eles estudam seu passado e procuram os meios
de se elevar. Veem, observam o que se passa nos lugares que percorrem;
ouvem os ensinamentos dos homens esclarecidos e os conselhos dos
Espíritos mais elevados que eles e isso lhes inspira ideias que não
tinham antes.
228 Os Espíritos conservam algumas das
paixões humanas? – Os Espíritos elevados, ao se libertarem do corpo,
deixam as más paixões e apenas guardam as do bem. Mas os Espíritos
inferiores as conservam; de outra forma, seriam de primeira ordem.
229 Por que os Espíritos, ao deixar a
Terra, não deixam também todas as más paixões, uma vez que veem os seus
inconvenientes? – Tendes neste mundo pessoas que são excessivamente
invejosas; acreditais que, quando o deixam, perdem esse defeito? Após a
partida da Terra, principalmente para os que tiveram paixões muito
intensas, uma espécie de atmosfera os acompanha, os envolve e todas
essas coisas ruins se conservam, porque o Espírito ainda está impregnado
das vibrações da matéria. Entrevê a verdade apenas por alguns momentos,
como para ter noção do bom caminho.
230 O Espírito progride na erraticidade? –
Pode melhorar-se muito, sempre de acordo com sua vontade e seu desejo.
Mas é na existência corporal que põe em prática as novas ideias que
adquiriu.
231 Os Espíritos errantes são felizes ou
infelizes? – São felizes ou infelizes de acordo com seu mérito. São
infelizes e sofrem por causa das paixões das quais ainda conservaram a
essência ou são felizes segundo estejam mais ou menos desmaterializados.
No estado de erraticidade, o Espírito entrevê o que lhe falta para ser
mais feliz e procura os meios de alcançá-lo. Porém, nem sempre lhe é
permitido reencarnar conforme sua vontade, o que para ele é uma punição.
232 No estado de erraticidade, os
Espíritos podem ir a todos os mundos? – Depende. Quando o Espírito deixa
o corpo, não está, apesar disso, completamente desprendido da matéria e
ainda pertence ao mundo onde viveu ou a um do mesmo grau, a menos que,
durante sua vida, tenha se elevado; esse é, aliás, o objetivo a que deve
pretender, sem o que nunca se aperfeiçoará. Ele pode, entretanto, ir a
alguns mundos superiores, mas nesse caso é como um estranho. Consegue,
na verdade, apenas os entrever e isso é o que lhe dá o desejo de se
aperfeiçoar para ser digno da felicidade que lá se desfruta e poder
habitá-los mais tarde.
233 Os Espíritos já purificados vão aos
mundos inferiores? – Vão muitas vezes a fim de ajudá-los a progredir.
Senão esses mundos ficariam entregues a si mesmos, sem guias para
dirigi-los.
MUNDOS TRANSITÓRIOS
234 Existem, como já foi dito, mundos
que servem aos Espíritos errantes como estâncias transitórias ou locais
de repouso? – Sim, existem. São particularmente destinados aos seres
errantes, que podem neles habitar temporariamente. São como
acampamentos, campos para repousar de uma erraticidade bastante longa,
condição sempre um tanto angustiante. São posições intermediárias entre
os outros mundos, graduados de acordo com a natureza dos Espíritos que
podem alcançá-los e onde podem desfrutar de um bem-estar relativamente
maior ou menor, conforme o caso.
234 a Os Espíritos que habitam esses
mundos podem deixá-los quando querem? – Sim, os Espíritos podem
deixá-los para irem aonde devem ir. Imaginai-os como pássaros de
passagem pousando numa ilha, esperando refazer suas forças para alcançar
seu objetivo.
235 Os Espíritos progridem durante sua
estada nos mundos transitórios? – Certamente. Os que neles se reúnem é
com o objetivo de se instruir e poder mais facilmente obter a permissão
de alcançar lugares melhores e chegar à posição que os eleitos atingem.
236 Os mundos transitórios, por sua
natureza especial, são perpetuamente destinados aos Espíritos errantes? –
Não; a posição deles é apenas temporária.
236 a Esses mundos são, ao mesmo tempo,
habitados por seres corporais? – Não; a superfície é estéril. Aqueles
que os habitam não têm necessidade de nada.
236 b Essa esterilidade é permanente e
resulta de sua natureza especial? – Não, são estéreis transitoriamente.
236 c Esses mundos são, por isso, desprovidos de belezas naturais? – A
natureza se reflete nas belezas da imensidade, que são tão admiráveis
quanto o que chamais de belezas naturais. 236 d Visto que o estado
desses mundos é transitório, a Terra estará um dia nesse mesmo estado? –
Ela já esteve.
236 e Em que época? – Durante sua
formação. Nada é inútil na natureza; tudo tem seu objetivo, sua
finalidade. Nada está vazio, tudo está habitado, a vida está por todos
os lugares. Desse modo, durante a longa série de séculos que se escoaram
antes da aparição do homem sobre a Terra, durante esses lentos períodos
de transição atestados pelas camadas geológicas, antes mesmo da
formação dos primeiros seres orgânicos sobre essa massa informe, nesse
caos árido onde os elementos estavam desordenados, não havia ausência de
vida. Seres que não possuíam nem necessidades nem sensações físicas
como as nossas, nela encontravam refúgio. Deus quis que, até mesmo nesse
estado imperfeito, a Terra servisse para alguma coisa. Quem ousaria
dizer que entre esses milhares de mundos que circulam na imensidão
universal apenas um, um dos menores, perdido na vastidão, tivesse o
privilégio exclusivo de ser povoado? Qual seria a utilidade dos outros?
Deus os teria feito apenas para recreação dos nossos olhos? Suposição
absurda, incompatível com a sabedoria que emana de todas as Suas obras e
inadmissível quando se pensa na existência de todas as que não podemos
perceber. Ninguém contestará que nessa idéia da existência de mundos
ainda impróprios à vida material e, entretanto, povoados de seres com
vida apropriada ao seu meio, há algo de grandioso e sublime, em que se
encontra, talvez, a solução de mais de um problema.
PERCEPÇÕES, SENSAÇÕES E SOFRIMENTOS DOS ESPÍRITOS
237 A alma, quando está no mundo
dos Espíritos, ainda possui as percepções que possuía em sua vida
física? – Sim. Tem também outras que não possuía, porque o seu corpo era
como um véu que as dificultava e obscurecia. A inteligência é um dos
atributos do Espírito que se manifesta mais livremente quando não tem
entraves. 238 As percepções e os conhecimentos dos Espíritos são
ilimitados; numa palavra, eles sabem todas as coisas?
– Quanto mais se aproximam da perfeição,
mais sabem. Se são Espíritos Superiores, sabem muito. Os Espíritos
inferiores são mais ou menos ignorantes sobre todas as coisas.
239 Os Espíritos conhecem o princípio das
coisas? – Conhecem de acordo com sua elevação e pureza. Os Espíritos
inferiores não sabem mais que os homens.
240 Os Espíritos compreendem o tempo como
nós? – Não. É por isso que vós também não nos compreendeis quando se
trata de fixar datas ou épocas. A idéia e a ação do tempo para os
Espíritos não são como nós os compreendemos. O tempo, para eles, é nulo,
por assim dizer, e os séculos, tão longos para nós, são, a seus olhos,
apenas instantes que se perdem na eternidade, como o relevo do solo se
apaga e desaparece para quem o vê de longe quando se eleva no espaço.
241 Os Espíritos têm uma idéia do
presente mais precisa e exata do que nós? – Do mesmo modo que aquele que
vê claramente as coisas tem uma idéia mais exata do que um cego. Os
Espíritos veem o que não vedes; logo, julgam de modo diferente de vós.
Mas lembramos mais uma vez: isso depende da elevação de cada um.
242 Como é que os Espíritos têm
conhecimento do passado? Para eles, esse conhecimento é ilimitado? – O
passado, quando nos ocupamos dele, é o presente, torna-se vivo,
exatamente como lembrais do que vos impressionou fortemente durante um
período, ou numa viagem a um lugar longínquo e estranho. Como Espíritos,
já não temos mais o véu material a nos obscurecer a inteligência, eis
por que nos lembramos das coisas que estão apagadas para vós. Mas os
Espíritos não conhecem tudo, a começar pela sua própria criação.
243 Os Espíritos conhecem o futuro? –
Isso também depende da sua elevação. Muitas vezes apenas o entreveem,
mas nem sempre lhes é permitido revelá-lo. Quando o veem, parece-lhes
presente. O Espírito adquire a visão do futuro mais claramente à medida
que se aproxima de Deus. Após desencarnar, a alma vê e abrange num
piscar de olhos suas migrações passadas, mas não pode ver o que Deus lhe
reserva. Para isso é preciso que esteja integrada a Deus, após muitas e
muitas existências.
243 a Os Espíritos que atingem a
perfeição absoluta têm conhecimento completo do futuro? – Completo não é
bem a palavra. Só Deus é o Soberano Senhor e ninguém pode se igualar a
Ele.
244 Os Espíritos veem Deus? – Só os
Espíritos Superiores O veem e O compreendem. Os Espíritos inferiores O
sentem e O pressentem física, moral e espiritualmente.
244 a Quando um Espírito inferior diz que
Deus lhe proíbe ou lhe permite uma coisa, como sabe que isso vem de
Deus? – Ele não vê a Deus, mas sente Sua soberania e, quando uma coisa
não pode ser feita, ou uma palavra não pode ser dita, sente como
intuição, uma advertência invisível que o proíbe de fazê-lo. Vós mesmos
não tendes pressentimentos que são como advertências secretas, para
fazer ou não isso ou aquilo? O mesmo ocorre conosco, apenas num grau
superior. Deveis compreender que a essência dos Espíritos, sendo mais
sutil que a vossa, lhes dá a possibilidade de melhor receber as
advertências divinas.
244 b A ordem é transmitida por Deus ou
por intermédio de outros Espíritos? – Ela não vem diretamente de Deus.
Para se comunicar com Deus, preciso é ser digno disso. Deus transmite
Suas ordens por Espíritos que se encontram muito elevados em perfeição e
instrução.
245 O dom da visão, nos Espíritos, é limitado e localizado, como nos seres corporais? – Não; a visão está neles como um todo.
246 Os Espíritos têm necessidade da luz
para ver? – Veem por si mesmos e não têm necessidade da luz exterior.
Para eles, não há trevas, a não ser aquelas em que podem se encontrar
por expiação.
247 Os Espíritos têm necessidade de se
transportar para ver em dois lugares diferentes? Eles podem, por
exemplo, ver simultaneamente os dois hemisférios do globo? – Como o
Espírito se transporta com a rapidez do pensamento, pode-se dizer que vê
tudo de uma só vez, em todos os lugares. Seu pensamento pode irradiar e
se dirigir, ao mesmo tempo, a vários pontos diferentes, mas essa
qualidade depende de sua pureza. Quanto menos for depurado, mais sua
visão estará limitada. Só Espíritos Superiores podem ter uma visão do
conjunto. O dom de ver, nos Espíritos, é uma propriedade inerente à sua
natureza e irradia em todo o seu ser, como a luz se irradia de todas as
partes de um corpo luminoso. É uma espécie de lucidez universal que se
estende a tudo, envolve num só lance o espaço, os tempos e as coisas e
para a qual não há trevas ou obstáculos materiais. Compreende-se que
deva ser assim. No homem, a visão funciona por meio de um órgão
impressionado pela luz e, sem luz, fica na obscuridade. No Espírito,
como o dom da visão é um atributo próprio, sendo desnecessário qualquer
agente exterior, a visão não depende de luz. (Veja “Ubiquidade”, questão
92.)
248 O Espírito vê as coisas tão
distintamente quanto nós? – Mais distintamente, porque a sua visão
penetra no que não podeis penetrar. Nada a obscurece.
249 O Espírito percebe os sons? – Sim. Percebe até os que vossos rudes sentidos não podem perceber.
249 a O dom, a capacidade de ouvir, está
em todo o seu ser, assim como a de ver? – Todas as percepções são
atributos do Espírito e fazem parte do seu ser. Quando está revestido de
um corpo material, as percepções do exterior apenas lhe chegam pelo
canal dos órgãos correspondentes. Porém, no estado de liberdade, essas
percepções deixam de estar localizadas.
250 Sendo as percepções atributos
próprios do Espírito, pode deixar de usá-las? – O Espírito só vê e ouve o
que quer. Isso de uma maneira geral e, sobretudo, para os Espíritos
elevados. Já em relação aos que são imperfeitos, queiram ou não, ouvem e
veem frequentemente aquilo que pode ser útil a seu adiantamento.
251 Os Espíritos são sensíveis à música? –
Quereis falar de vossa música? O que é ela perante a música celeste
cuja harmonia nada na Terra vos pode dar uma idéia? Uma está para a
outra como o canto de um selvagem está para uma suave melodia.
Entretanto, Espíritos vulgares podem sentir um certo prazer ao ouvir
vossa música, porque ainda não são capazes de compreender uma mais
sublime. A mú- sica tem para os Espíritos encantos infinitos, em razão
de suas qualidades sensitivas bastante desenvolvidas. A música celeste é
tudo o que a imaginação espiritual pode conceber de mais belo e mais
suave.
252 Os Espíritos são sensíveis às belezas
da natureza? – As belezas naturais dos globos são tão diferentes que se
está longe de as conhecer; mas os Espíritos são sensíveis, sim, a essas
belezas, sensíveis conforme sua aptidão em apreciá-las e
compreendê-las. Para os Espíritos elevados há belezas de conjunto diante
das quais desaparecem, por assim dizer, as belezas de detalhes.
253 Os Espíritos sentem nossas
necessidades e sofrimentos físicos? – Eles os conhecem, porque os
sofreram, passaram por eles; mas não os sentem como vós, materialmente,
porque são Espíritos.
254 Os Espíritos sentem cansaço e a
necessidade do repouso? – Não podem sentir o cansaço como o entendeis;
consequentemente, não têm necessidade de repouso corporal como o vosso,
uma vez que não possuem órgãos cujas forças devam ser reparadas. Mas o
Espírito repousa, no sentido de que não tem uma atividade constante,
embora não atue de uma maneira material. Sua ação é toda intelectual e
seu repouso, inteiramente moral; ou seja, há momentos em que seu
pensamento deixa de ser tão ativo e não mais se fixa num objetivo
determinado. Esse instante é um verdadeiro repouso, mas não é comparável
ao do corpo. O cansaço que podem sentir os Espíritos está em razão de
sua inferioridade, visto que, quanto mais elevados, menos o repouso lhes
é necessário.
255 Quando um Espírito diz que sofre, que
sofrimento sente? – Angústias morais, que o torturam mais dolorosamente
do que os sofrimentos físicos.
256 Como é que alguns Espíritos se
queixam de sofrer de frio e de calor? – Lembrança do que tinham sofrido
durante a vida, muitas vezes mais aflitiva que a realidade. É
frequentemente uma comparação com que, na falta de coisa melhor,
exprimem sua situação. Quando se lembram do seu corpo, experimentam uma
espécie de impressão, como quando se tira um casaco e se tem a sensação,
por um tempo, que ainda se está vestido.
ENSAIO TEÓRICO SOBRE A SENSAÇÃO NOS ESPÍRITOS
257 O corpo é o instrumento da dor. Se
não é sua causa primária, é, pelo menos, a causa imediata. A alma tem a
percepção da dor: essa percepção é o efeito. A lembrança que a alma
conserva disso pode ser de muito sofrimento, mas não pode provocar ação
física. De fato, nem o frio, nem o calor podem desorganizar os tecidos
da alma. Ela não pode congelar-se, nem queimar-se. Não vemos todos os
dias a lembrança ou a preocupação com um mal físico produzir os efeitos
desse mal, até mesmo ocasionar a morte? Todo mundo sabe que as pessoas
que tiveram membros amputados sentem dor no membro que não existe mais.
Certamente, não é nesse membro que está a sede ou o ponto de partida da
dor, mas no cérebro, que conservou a impressão da dor. Podem-se admitir,
portanto, reações semelhantes nos sofrimentos do Espírito após a morte.
Um estudo mais aprofundado do perispírito, que desempenha um papel tão
importante em todos os fenômenos espíritas como nas aparições vaporosas
ou tangíveis, como na circunstância por que o Espírito passa no momento
da morte; na idéia tão frequente de que ainda está vivo, no quadro tão
comovente dos suicidas e dos que foram martirizados, nos que se deixaram
absorver pelos prazeres materiais e em tantos outros fatos, vieram
lançar luz sobre a questão e deram lugar a explicações que resumimos a
seguir. O perispírito é o laço que une o Espírito à matéria do corpo. O
Espírito é quem o forma, tirando elementos do meio ambiente e do fluido
universal. Ele é formado ao mesmo tempo de eletricidade, fluido
magnético e até de alguma quantidade de matéria inerte. Pode-se dizer
que é a matéria puríssima, o princípio da vida orgânica, mas não da vida
intelectual. A vida intelectual está no Espírito. É, além disso, o
agente das sensações exteriores. No corpo, essas sensações se localizam
nos órgãos próprios que servem de canais condutores. Destruído o corpo,
as sensações se tornam generalizadas. É por isso que o Espírito não diz
sofrer mais da cabeça do que dos pés. É preciso precaução para não
confundir as sensações do perispírito, que se tornou independente, com
as do corpo: podemos tomar essas sensações apenas como comparação, e não
como analogia. Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer. Mas esse
sofrimento não é corporal, embora não seja exclusivamente moral, como o
remorso, porque se queixa de frio e calor. Apesar disso, não sofre mais
no inverno que no verão: nós o temos visto atravessar as chamas sem
sofrer nada, nenhuma dor, o fogo não lhe causa nenhuma impressão. A dor
que sente não é física propriamente dita, é um vago sentimento íntimo
que o próprio Espírito nem sempre entende, precisamente porque a dor não
está localizada e não é produzida por agentes externos: é mais uma
lembrança do que uma realidade, mas é uma recordação também dolorosa.
Há, entretanto, algumas vezes, mais que uma lembrança, como iremos ver. A
experiência nos ensina que no momento da morte o perispírito se
desprende mais ou menos lentamente do corpo. Nos primeiros instantes
seguidos ao desencarne, o Espírito não entende a sua situação: não
acredita estar morto, sente-se vivo, vê seu corpo de um lado, sabe que é
seu e não entende por que está separado dele. Essa situação persiste
enquanto o laço entre o corpo e o perispírito não se romper por
completo. Um suicida nos disse: “Não, não estou morto”, e acrescentava:
“E, entretanto, sinto os vermes que me roem”. Porém, seguramente, os
vermes não roíam o seu perispírito, e muito menos o Espírito; roíam-lhe
apenas o corpo. Mas como a separação do corpo e do perispírito não
estava concluída, disso se originava uma espécie de repercussão moral
que lhe transmitia a sensação do que se passava no seu corpo.
Repercussão não é bem a palavra que dê a idéia exata do que ocorre,
porque pode fazer supor um efeito muito material. Era antes e de fato a
visão do que se passava no cadáver, que ainda estava ligado ao seu
perispírito, produzindo nele essa sensação que tomava como real, como
autêntica. Desse modo, não era uma lembrança, uma vez que durante sua
vida nunca tinha sido roído por vermes; era uma sensação nova e atual.
Vemos, assim, que deduções se podem tirar dos fatos, quando observados
atentamente. Durante a vida, o corpo recebe as impressões exteriores e
as transmite ao Espírito por intermédio do perispírito, que constitui,
provavelmente, o que se chama de fluido nervoso. Estando o corpo morto,
não sente mais nada, porque não possui mais Espírito, nem perispírito. O
perispírito, desprendido do corpo, experimenta a sensação, mas como ela
não lhe chega mais por um canal limitado, próprio, torna-se geral.
Portanto, como o perispírito é na realidade um agente de transmissão das
sensações que se produzem do corpo para o Espírito, porque é no
Espírito que está a consciência, disso se deduz que, se pudesse existir
perispírito sem Espírito, ele não sentiria mais do que sente um corpo
morto. Da mesma forma, se o Espírito não tivesse perispírito, seria
inacessível a qualquer sensação dolorosa, como ocorre com os Espíritos
completamente purificados. Sabemos que, quanto mais o Espírito se
purifica, mais a essência do perispírito se ais o Espírito se purifica,
mais a essência do perispírito se torna etérea, do que se conclui que a
influência material diminui à medida que o Espírito progride e, por
consequência, o próprio perispírito torna-se menos grosseiro. Mas,
dirão, as sensações agradáveis são transmitidas ao Espírito por meio do
perispírito, da mesma forma que as sensações desagradáveis; sendo o
Espírito puro inacessível a umas, deve ser igualmente inacessível a
outras. Sim, sem dúvida, assim é de fato para as sensações que provêm
unicamente da influência da matéria que conhecemos, por exemplo: o som
de nossos instrumentos e o perfume de nossas flores não lhes causam
nenhuma impressão. Porém, o Espírito têm sensações íntimas de um encanto
indefinível, das quais não podemos fazer nenhuma idéia, por sermos, a
esse respeito, como cegos de nascença perante a luz: sabemos que elas
existem, mas por que meio se produzem não o sabemos. Termina aí nossa
ciência. Sabemos que o Espírito têm percepção, sensação, audição, visão;
que essas faculdades são generalizadas por todo o ser, e não, como no
homem, só em uma parte do seu ser. Mas de que modo ele as tem? É o que
não sabemos. Os próprios Espíritos não podem nos dar idéia precisa,
porque a nossa linguagem não pode exprimir ideias que não conhecemos, da
mesma forma que para os selvagens não há termos para exprimir nossas
artes, ciências e doutrinas filosóficas. Ao dizer que os Espíritos são
inacessíveis às impressões de nossa matéria, estamos nos referindo aos
Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não tem nada de
semelhante ao que conhecemos aqui na Terra. O mesmo não ocorre com os de
perispírito mais denso: estes percebem nossos sons e odores, mas não
por uma parte limitada de sua individualidade, como quando encarnados.
Pode-se dizer que neles as vibrações moleculares se fazem sentir em todo
seu ser e chegam assim ao seu sensorium commune2 , que é o próprio
Espírito, embora de um modo diferente, o que produz uma modificação na
percepção. Eles ouvem o som de nossa voz e, no entanto, nos compreendem
sem necessidade da palavra, apenas pela transmissão do pensamento; isso
vem em apoio ao que dissemos: a percepção dessas vibrações é tão mais
fácil quanto mais desmaterializado está o Espírito. Quanto à visão, é
independente de nossa luz. O dom da visão é um atributo essencial da
alma, para ela não há obscuridade; mas é mais ampla e penetrante para os
que estão mais purificados. A alma ou o Espírito tem nela mesma todos
os dons e recursos de todas as percepções. Na vida corporal são
limitados pela grosseria dos órgãos físicos; na vida extra corporal são
cada vez menos limitados, à medida que menos denso se torna o envoltório
semi-material. Esse envoltório, o perispírito, tirado do meio ambiente,
varia de acordo com a natureza dos mundos. Ao passar de um mundo para
outro, os Espíritos mudam de envoltório, assim como mudamos de roupa
quando passamos do inverno para o verão, ou de um polo para o Equador.
Os Espíritos mais elevados, quando vêm nos visitar, se revestem do
perispírito terrestre e, assim, suas percepções são como as dos
Espíritos do lugar onde estão. Porém, todos, tanto inferiores quanto
superiores, apenas ouvem e sentem o que querem ouvir ou sentir. Tendo em
vista que não possuem os órgãos sensitivos, podem tornar, à vontade,
suas percepções ativas ou nulas; há apenas uma situação a que são
obrigados: a de ouvir os conselhos dos bons Espíritos. A visão é sempre
ativa, mas podem reciprocamente se tornar invisíveis uns aos outros. De
acordo com a posição que ocupam, podem se ocultar dos que lhes são
inferiores, mas não dos superiores. Nos primeiros momentos que se seguem
ao desencarne, a visão do Espírito é sempre perturbada e confusa;
porém, vai se aclarando à medida que se liberta do corpo físico e pode
adquirir nitidez igual à que tinha durante a vida terrena, além de
contar com a possibilidade de poder ver através dos corpos que são
opacos para nós. Quanto a poder alcançar a visão do espaço infinito, do
futuro e do passado, depende do grau de pureza e da elevação do
Espírito. Toda essa teoria, alegarão alguns, não é nada tranquilizadora.
Pensávamos que uma vez livres do corpo, instrumento de nossas dores,
não sofreríamos mais. Agora nos dizeis que ainda sofreremos, desta ou
daquela forma, mas que será sempre sofrimento. Ah, sim! Podemos ainda
sofrer, e muito, por um longo tempo, mas podemos também parar de sofrer,
já desde o instante em que deixarmos a vida corporal. Os sofrimentos
aqui da Terra, algumas vezes, independem de nós, mas muitos são as
consequências da nossa vontade, e se buscarmos as origens constataremos
que, em sua maior parte, resultam de causas que poderíamos evitar.
Quantos males, quantas enfermidades o homem não deve aos seus excessos, à
sua ambição, às suas paixões? O homem que sempre tivesse vivido
sobriamente, que não tivesse cometido abusos, que sempre tivesse sido
simples em seus gostos, modesto em seus desejos, se pouparia de muitos
sofrimentos. O mesmo acontece com o Espírito: as angústias que enfrenta
são a consequência da maneira como viveu na Terra. Sem dúvida, não terá
mais artrite nem reumatismo, mas terá outros sofrimentos que não são
menores. Temos visto que os sofrimentos que sente são causados pelos
laços que ainda existem entre ele e a matéria e, quanto mais se
desmaterializa, menos tem sensações dolorosas. Portanto, depende do
homem querer libertar-se dessa influência já em vida; tem seu
livre-arbítrio e, consequentemente, a escolha entre fazer e não fazer.
Que ele dome suas paixões brutais, não tenha ódio, inveja, ciúme, nem
orgulho; que purifique sua alma pelos bons sentimentos; que faça o bem;
que dê às coisas deste mundo a importância que merecem; então, ainda no
corpo físico, já estará purificado, desprendido da matéria, e quando o
deixar não sofrerá mais sua influência. Os sofrimentos físicos que
experimentou não deixarão nenhuma lembrança dolorosa; não restará
nenhuma impressão desagradável, porque afetou apenas o corpo e não o
espírito. Ficará feliz por estar livre delas, e a calma de sua
consciência o livrará de todo sofrimento moral. Interrogamos milhares de
Espíritos que haviam pertencido a todas as classes da sociedade e a
todas as posições sociais, quando na Terra. Nós os estudamos em todos os
períodos de sua vida espírita, desde o instante em que deixaram o
corpo; nós os seguimos passo a passo na vida após a morte para observar
as mudanças que se operavam neles, nas ideias, nas sensações. E sob esse
aspecto, os homens mais simples foram os que nos forneceram materiais
de estudo mais preciosos, porque notamos sempre que os sofrimentos estão
relacionados à conduta que tiveram na vida corpórea da qual sofrem as
consequências, e que essa nova existência é fonte de uma felicidade
indescritível para aqueles que seguiram o bom caminho. Deduz-se que
sofrem porque merecem e só podem queixar-se de si mesmos, tanto neste
quanto no outro mundo.
ESCOLHA DAS PROVAS
258 Na espiritualidade, antes de começar
uma nova existência corporal, o Espírito tem consciência e previsão das
coisas que acontecerão durante sua vida? – Ele mesmo escolhe o gênero de
provas que quer passar. Nisso consiste seu livre-arbítrio.
258 a Então não é Deus que impõe os
sofrimentos da vida como castigo? – Nada acontece sem a permissão de
Deus, que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Perguntareis,
então, por que Ele fez esta lei em vez daquela. Ao dar ao Espírito a
liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade de seus atos e
de suas consequências, nada impede seu futuro; o caminho do bem está à
frente dele, assim como o do mal. Mas, se fracassa, resta-lhe uma
consolação: nem tudo está acabado para ele. Deus, em sua bondade,
deixa-o livre para recomeçar, reparando o que fez de mal. É preciso,
aliás, distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é obra do
homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que o criastes, foi Deus;
mas tendes a liberdade de vos expor a ele, por terdes visto aí um meio
de adiantamento, e Deus o permitiu.
259 Se o Espírito tem a escolha do gênero
de prova que deve passar, todas as dificuldades que experimentamos na
vida foram previstas e escolhidas por nós? – Todas não é a palavra,
porque não se pode dizer que escolhestes e previstes tudo que vos
acontece neste mundo, até nas menores coisas. Vós escolhestes os gêneros
das provas; os detalhes são consequência da situação em que viveis e,
frequentemente, de vossas próprias ações. Se o Espírito quis nascer
entre criminosos, por exemplo, sabia dos riscos a que se exporia, mas
não tinha conhecimento dos atos que viria a praticar; esses atos são
efeito de sua vontade ou de seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, ao
escolher um caminho, terá uma luta a suportar; sabe a natureza e a
diversidade das coisas que enfrentará, mas não sabe quais os
acontecimentos que o aguardam. Os detalhes dos acontecimentos nascem das
circunstâncias e da força das coisas. Somente os grandes acontecimentos
que influem na vida estão previstos. Se seguis um caminho cheio de
sulcos profundos, sabeis que deveis tomar grandes precauções, porque
tendes a probabilidade de cair, mas não sabeis em qual deles caireis;
pode ser que a queda não aconteça, se fordes prudente o bastante. Se, ao
passar na rua, uma telha cai na vossa cabeça, não acrediteis que estava
escrito, como se diz vulgarmente. 260 Como o Espírito pode querer
nascer entre pessoas de má conduta? – É preciso que seja enviado para um
meio em que possa se defrontar com a prova que pediu. Pois bem! É
preciso que haja identidade de relações e semelhanças, que os
semelhantes se atraiam: para lutar contra o instinto do roubo, é preciso
que se encontre entre pessoas que roubam.
260 a Se não houvesse pessoas de má
conduta na Terra, o Espírito não encontraria nela o meio necessário para
passar por determinadas provas? – E seria o caso de lastimar se isso
acontecesse? É o que ocorre nos mundos superiores, onde o mal não tem
acesso porque há somente Espíritos bons. Fazei que o mesmo aconteça na
vossa Terra.
261 O Espírito, nas provas que deve
passar para atingir a perfeição, deve experimentar todas as tentações?
Deve passar por todas as circunstâncias que podem incitar o orgulho, a
inveja, a avareza, a sensualidade, etc.? – Certamente que não, uma vez
que sabeis que há Espíritos que, desde o começo, tomam um caminho que os
livra de muitas provas; mas, aquele que se deixa levar pelo mau caminho
corre todos os perigos desse caminho. Um Espírito, por exemplo, pode
pedir a riqueza e esta ser concedida; então, de acordo com seu caráter,
poderá tornar-se avarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou se
entregar a todos os prazeres da sensualidade; mas isso não quer dizer
que tenha que passar forçosamente por todas essas tendências.
262 Como pode o Espírito em sua
origem, simples, ignorante e sem experiência, escolher uma existência
com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha? – Deus
supre sua inexperiência ao traçar-lhe o caminho que deve seguir, como o
fazeis com uma criança desde o berço. Deixa-o, porém, livre para
escolher, à medida que seu livre-arbítrio se desenvolve. É então que
muitas vezes se extravia ao seguir o mau caminho, se não escuta os
conselhos dos bons Espíritos; é o que se pode chamar a queda do homem.
262 a Quando o Espírito usa seu
livre-arbítrio, a escolha da existência corporal depende sempre de sua
vontade, ou essa existência pode ser imposta pela vontade de Deus como
expiação? – Deus sabe esperar: não apressa a expiação. No entanto,
perante a Lei, um Espírito pode ter uma encarnação compulsória quando,
por sua inferioridade, ou má vontade, não está apto a compreender o que
lhe poderia ser mais útil e quando essa encarnação pode servir à sua
purificação e adiantamento, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.
263 O Espírito faz sua escolha
imediatamente após a morte? – Não, muitos acreditam na eternidade das
penas e, como já foi dito, pensar assim representa para eles um castigo.
(Veja a questão 101).
264 Como o Espírito escolhe as provas que
quer suportar? – Ele escolhe as que podem ser para ele uma expiação,
pela natureza de seus erros, e lhe permitam avançar mais rapidamente.
Uns podem, ao escolher, se impor uma vida de misérias e privações para
tentar suportá-la com coragem; outros querem se experimentar nas
tentações da riqueza e do poder, muito perigosas, pelo abuso e o mau uso
que delas se possa fazer e pelas paixões inferiores que desenvolvem;
outros, enfim, preferem se experimentar nas lutas que têm que sustentar
em contato com o vício.
265 Se alguns Espíritos escolhem o
contato com o vício como prova, há aqueles que o escolhem por simpatia e
desejo de viver num meio conforme seu gosto, ou para se entregar
completamente às tendência materiais? – Há, sem dúvida. Mas só fazem
essa escolha os que têm o senso moral ainda pouco desenvolvido; a
provação está em viver a escolha que fizeram e a sofrem por longo tempo.
Cedo ou tarde, compreenderão que a satisfação das paixões brutais traz
consequências deploráveis, e o sofrimento lhes parecerá eterno. Poderão
permanecer nesse estado até que se tornem conscientes da falta em que
incorreram, e então eles mesmos pedem a Deus para resgatá-las em provas
libertadoras.
266 Não parece natural escolher as provas
menos dolorosas? – Para vós, sim; para o Espírito, não. Quando se está
liberto da matéria, a ilusão cessa e a forma de pensar é outra. O homem
na Terra, sob a influência das ideias terrenas, vê nas suas provas
apenas o lado doloroso. Por isso lhe pareceria natural escolher as que,
em seu ponto de vista, pudessem se conciliar com os prazeres materiais.
Porém, na vida espiritual, compara esses prazeres ilusórios e grosseiros
com a felicidade inalterável que percebe, e, então, nenhuma importância
dá aos sofrimentos passageiros da Terra. O Espírito pode, em vista
disso, escolher a prova mais rude e, consequentemente, a mais angustiosa
existência, na esperança de atingir mais depressa um estado melhor,
como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável para se
curar mais depressa. Aquele que deseja ver seu nome ligado à descoberta
de um país desconhecido não escolhe um caminho florido; sabe dos perigos
que corre, mas também sabe da glória que o espera se for bem-sucedido. A
doutrina da liberdade na escolha de nossas existências e das provas que
devemos suportar deixa de causar espanto ou surpresa, se considerarmos
que os Espíritos livres da matéria apreciam as coisas de maneira
diferente da nossa. Percebem que há um objetivo, bem mais sério do que
os prazeres ilusórios do mundo e, após cada existência, veem o passo que
deram e compreendem o que ainda lhes falta de pureza para atingi-lo.
Eis por que se submetem voluntariamente a todas as alternâncias e às
dificuldades da vida corporal, pedindo, eles mesmos, aquelas que lhes
permitam alcançar mais prontamente o objetivo a que almejam. Não há,
portanto, motivo de estranheza no fato de o Espírito não escolher uma
existência mais suave. No estado de imperfeição em que se acha, o
Espírito não pode querer uma existência feliz, sem amargura; ele a
pressente e antevê, e é para atingi-la que procura melhorar-se. Não
temos, aliás, todos os dias, perante os olhos, exemplos de experiências
parecidas? O que faz o homem que trabalha uma parte de sua vida, sem
trégua nem descanso, para reunir posses que lhe garantam o bem-estar,
senão uma tarefa que se impôs tendo em vista um futuro melhor? O militar
que se arrisca numa missão perigosa, o viajante que enfrenta os maiores
perigos no interesse da ciência ou de sua fortuna; o que isso
representa, senão provas voluntárias que lhes devem proporcionar honra e
proveito, se forem bem-sucedidos? A que não se submete e não se expõe o
homem por seu interesse ou glória? Os concursos não são também provas
voluntárias às quais se submete, para se elevar na carreira que
escolheu? Não se chega a uma posição importante, qualquer que seja, nas
ciências, nas artes, na indústria, senão passando por posições
inferiores que são também provas. A vida humana é uma cópia da vida
espiritual, na qual encontramos, em escala pequena, todas as mesmas
peripécias. Se, na vida terrestre, escolhemos frequentemente as provas
mais rudes, visando a um objetivo mais elevado, por que o Espírito, que
vê mais longe e para quem a vida terrestre é apenas um incidente
passageiro, não escolheria uma existência laboriosa e de renúncia,
sabendo que ela deve conduzi-lo a uma felicidade eterna? Aqueles que
dizem que, se o homem tem o direito de escolha de sua existência,
pediriam para ser príncipes ou milionários são como míopes, que vêem
apenas o que tocam, ou como crianças gulosas, às quais, quando se
pergunta que profissão pretendem, respondem: pasteleiros ou
confeiteiros. Como um viajante que, no fundo do vale embaçado pelo
nevoeiro, não vê a distância, nem os pontos extremos de seu caminho;
mas, uma vez chegado ao cume da montanha, divisa o caminho que percorreu
e o que lhe resta percorrer; vê seu objetivo, os obstáculos que ainda
tem a transpor e pode, então, planejar com mais segurança os meios para
atingi-lo. O Espírito encarnado é semelhante ao viajante no fundo do
vale. Liberto dos laços terrestres, sua visão tem o completo domínio da
sua destinação, como aquele que está no cume da montanha. Para o
viajante, o objetivo é o repouso após o cansaço; para o Espírito, é a
felicidade suprema após as dificuldades e as provas. Todos os Espíritos
dizem que, na espiritualidade, pesquisam, estudam e observam para fazer
sua escolha. Não temos um exemplo desse fato na vida corporal? Não
procuramos frequentemente, durante anos, a carreira em que fixamos
livremente nossa escolha, por acreditarmos ser a mais apropriada para
fazermos nosso caminho? Se fracassamos numa, escolhemos outra. Cada
carreira que abraçamos é uma fase, um período da vida. Cada dia não é
empregado para planejar o que faremos no dia seguinte? Portanto, o que
são as diferentes existências corporais para o Espírito senão etapas,
períodos, dias de sua vida espírita, que é, como sabemos, sua vida
normal, uma vez que a corpórea é apenas transitória e passageira?
267 O Espírito pode escolher suas provas,
quando já encarnado? – Seu desejo pode ter influência, dependendo da
intenção com que as deseja; mas, como Espírito, vê frequentemente as
coisas muito diferentes. É apenas o Espírito que faz a escolha; mas,
afirmamos mais uma vez, é possível. Ele pode fazê-la na vida material,
porque para o Espírito há sempre momentos em que fica independente da
matéria que habita. 267 a Muitas pessoas desejam poder e riqueza; não é,
certamente, como expiação ou como prova? – Sem dúvida, é o instinto
material que as deseja para delas desfrutar; já o Espírito as deseja
para conhecer todas as alternativas que elas oferecem.
268 Até que atinja o estado de pureza
perfeita, o Espírito tem que passar constantemente por provas? – Sim,
mas não são como as entendeis, visto que chamais de provas às
adversidades materiais. Porém, o Espírito que atingiu um certo grau, sem
ser ainda perfeito, nada mais tem a suportar; embora sempre tenha
deveres que o ajudam a se aperfeiçoar, e que nada têm para ele de
constrangedor ou angustiante, ainda que seja para ajudar os outros a se
aperfeiçoar.
O Espírito pode se enganar sobre a
eficácia da prova que escolheu? – Ele pode escolher uma que esteja acima
de suas forças e, então, fracassar. Pode também escolher alguma que não
lhe dê nenhum proveito, que resulte numa vida ociosa e inútil; mas,
então, uma vez de volta ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou e
pede para reparar o tempo perdido, numa outra encarnação.
270 A que se devem as vocações de certas
pessoas e seu desejo de seguir uma carreira em vez de outra? – Parece-me
que vós mesmos podeis responder a essa questão. Não é a consequência de
tudo o que dissemos sobre a escolha das provas e o progresso realizado
nas existências anteriores?
271 Ainda na espiritualidade, o Espírito,
ao estudar as diversas condições em que poderá progredir, como pensa
poder fazê-lo ao nascer, por exemplo, entre os povos canibais? –
Espíritos já avançados não nascem entre canibais. Entre eles nascem
Espíritos com a natureza dos canibais, ou que lhe são até inferiores.
Sabemos que os antropófagos3 não estão no último grau da escala
evolutiva e que há mundos onde o embrutecimento e a ferocidade
ultrapassam em tudo o que conhecemos na Terra. Esses Espíritos que lá
habitam são ainda inferiores aos mais inferiores de nosso mundo, e
nascer entre os nossos selvagens é para eles um progresso, como seria um
progresso para os antropófagos do nosso globo exercer entre nós uma
profissão que os obrigasse a derramar sangue4. Se não alcançam o mais
alto é porque sua inferioridade moral não lhes permite compreender um
progresso mais completo. O Espírito não pode avançar senão gradualmente;
não pode transpor de um salto a distância que separa a barbárie da
civilização, e é aí que vemos uma das necessidades da reencarnação, que
está verdadeiramente de acordo com a justiça de Deus. De outro modo, em
que se tornariam esses milhões de seres que morrem a cada dia no último
estado de degradação, se não possuíssem os meios de atingir a
superioridade? Por que Deus os deserdaria dos favores concedidos aos
outros homens?
272 Espíritos vindos de um mundo inferior
à Terra ou de um povo muito atrasado, como os canibais, por exemplo,
poderiam nascer entre os povos civilizados? – Sim, há os que se
desencaminham ao querer subir muito alto. Ficam desajustados entre vós,
porque possuem costumes e instintos que não se afinam com os vossos.
Esses seres nos dão o triste espetáculo
da ferocidade em meio à civilização. Ao retornar renascendo entre os
canibais, não sofrem uma queda, uma degradação, apenas voltam aos seus
lugares e com isso talvez até ganhem.
273 Um homem que pertence a uma raça
civilizada poderia, por expiação, reencarnar em uma raça selvagem? –
Sim, mas isso depende do gênero da expiação. Um senhor que tenha sido
cruel com seus escravos poderá tornar-se escravo por sua vez e sofrer os
maus-tratos que fez os outros suportar. Aquele que um dia comandou
poderá, em uma nova existência, obedecer até mesmo àqueles que se
curvaram à sua vontade. É uma expiação que lhe pode ser imposta, se
abusou de seu poder. Um bom Espírito também pode escolher uma existência
em que exerça uma ação influente e encarnar dentre povos atrasados,
para fazer com que progridam, o que, neste caso, é para ele uma missão.
RELAÇÕES APÓS A MORTE
274 As diferentes ordens de
Espíritos estabelecem entre eles uma hierarquia de poderes? Existe entre
eles subordinação e autoridade? – Sim, muito grande. Os Espíritos têm
uns para com os outros uma autoridade relativa à sua superioridade, que
exercem por uma ascendência moral irresistível.
274 a Os Espíritos inferiores podem escapar da autoridade dos superiores? – Eu disse: irresistível.
275 O poder e a consideração que um homem
desfrutou na Terra lhe dão alguma supremacia no mundo dos Espíritos? –
Não. Os pequenos serão elevados e os grandes rebaixados. Lede os Salmos5
.
275 a Como devemos entender essa
elevação e esse rebaixamento? – Não sabeis que os Espíritos são de
diferentes ordens, de acordo com seu mérito? Pois bem! O maior da Terra
pode estar no último lugar entre os Espíritos, enquanto seu servidor
pode estar no primeiro. Compreendei isso? Jesus disse: “Todo aquele que
se humilhar será elevado e todo aquele que se elevar será humilhado”.
276 Àquele que foi grande na Terra e se
encontra entre os Espíritos de ordem inferior passa por humilhação? –
Frequentemente muito grande, principalmente se era orgulhoso e invejoso.
277 O soldado que, após a batalha,
encontra seu general no mundo dos Espíritos, o reconhece ainda como seu
superior? – O título não é nada; a superioridade real é tudo.
278 Os Espíritos de diferentes ordens se
misturam uns com os outros? – Sim e não, ou seja, eles se veem, mas se
distinguem uns dos outros e se afastam ou se aproximam, de acordo com os
seus sentimentos, como acontece entre vós. Constituem um mundo do qual o
vosso dá uma vaga idéia. Os da mesma categoria se reúnem por afinidade e
formam grupos ou famílias de Espíritos unidos pela simpatia e objetivo a
que se propuseram: os bons, pelo desejo de fazer o bem; os maus, pelo
desejo de fazer o mal, pela vergonha de suas faltas e pela necessidade
de se encontrar entre seres semelhantes. Exatamente como numa grande
cidade, onde os homens de todas as categorias e condições se veem e se
reencontram sem se confundirem; onde as sociedades se formam por
semelhanças de gostos; onde o vício e a virtude convivem cada um à sua
maneira.
279 Todos os Espíritos têm reciprocamente
acesso uns aos outros? – Os bons vão a toda parte e é preciso que seja
desse modo para que possam exercer sua influência sobre os maus. As
regiões habitadas pelos bons são interditadas aos Espíritos imperfeitos,
a fim de que não as perturbem com suas más paixões.
280 Qual é a natureza das relações entre
os bons e os maus Espíritos? – Os bons empenham-se em combater as más
tendências dos outros, a fim de ajudá-los a elevar-se; é sua missão.
281 Por que os Espíritos inferiores
gostam de nos induzir ao mal? – Por inveja de não ter merecimento para
estar entre os bons. Seu desejo é impedir, tanto quanto possam, os
Espíritos inexperientes de alcançar o bem supremo; querem que os outros
sintam o que eles mesmos sentem. Não acontece também o mesmo entre vós?
282 Como os Espíritos se comunicam entre
si? – Eles se veem e se compreendem; a palavra se materializa pelo
reflexo do Espírito. O fluido universal estabelece entre eles uma
comunicação constante; é o veículo da transmissão do pensamento, assim
como o ar é o veículo do som. É uma espécie de telégrafo universal que
liga todos os mundos e permite aos Espíritos comunicarem-se de um mundo a
outro.
283 Os Espíritos podem esconder seus
pensamentos? Podem se ocultar uns dos outros? – Não, para eles tudo está
a descoberto, principalmente entre os que são perfeitos. Podem se
afastar uns dos outros, mas sempre se veem. Isso não é, entretanto, uma
regra absoluta, porque certas categorias de Espíritos podem muito bem se
tornar invisíveis para outros, se julgarem útil faze-lo.
284 Como os Espíritos, que não têm mais
corpo, podem constatar a sua individualidade e se distinguir dos outros
que os rodeiam? – Eles constatam sua individualidade pelo perispírito,
que os distingue uns dos outros, assim como pelo corpo se podem
distinguir os homens.
285 Os Espíritos se reconhecem por terem
coabitado a Terra? O filho reconhece seu pai, o amigo reconhece seu
amigo? – Sim, e assim de geração em geração. 285 a Como os homens que se
conheceram na Terra se reconhecem no mundo dos Espíritos? – Nós vemos
nossa vida passada e a lemos como num livro; ao ver o passado de nosso
amigos e inimigos, vemos sua existência da vida à morte.
286 A alma, ao deixar o corpo logo após a
morte, vê imediatamente parentes e amigos que a precederam no mundo dos
Espíritos? – Imediatamente não é bem a palavra. Como já dissemos, ela
precisa de algum tempo para reconhecer seu estado e se desprender da
matéria.
287 Como a alma é acolhida em seu retorno
ao mundo dos Espíritos? – A do justo, como um irmão bem-amado que é
esperado há muito tempo. A do mau, como um ser que se equivocou.
288 Que sentimento têm os Espíritos
impuros quando veem um mau Espírito chegando até eles? – Os maus ficam
satisfeitos ao ver seres à sua imagem e privados, como eles, da
felicidade infinita, como, na Terra, um perverso entre seus iguais.
289 Nossos parentes e amigos vêm algumas
vezes ao nosso encontro quando deixamos a Terra? – Sim, eles vêm ao
encontro da alma que estimam. Felicitam-na como no retorno de uma
viagem, se ela escapou dos perigos do caminho, e a ajudam a se despojar
dos laços corporais. É a concessão de uma graça para os bons Espíritos
quando aqueles que amam vêm ao seu encontro, enquanto o infame, o mau,
sente-se isolado ou é apenas rodeado por Espíritos semelhantes a ele: é
uma punição.
290 Os parentes e amigos sempre se reúnem
depois da morte? – Isso depende de sua elevação e do caminho que seguem
para seu adiantamento. Se um deles é mais avançado e marcha mais rápido
do que o outro, não poderão permanecer juntos. Poderão se ver algumas
vezes, mas somente estarão para sempre reunidos quando marcharem lado a
lado, ou quando atingirem a igualdade na perfeição. Além disso, a
impossibilidade de ver seus parentes e seus amigos é, algumas vezes, uma
punição.
RELAÇÕES DE SIMPATIA E ANTIPATIA ENTRE OS ESPÍRITOS. METADES ETERNAS
291 Além da simpatia geral de afinidade,
os Espíritos têm entre si afeições particulares? – Sim, como entre os
homens. Mas o laço que une os Espíritos é mais forte quando estão livres
do corpo, por não estarem mais expostos às alterações e volubilidades
das paixões.
292 Há ódio entre os Espíritos? – Somente
há ódio entre os Espíritos impuros, e são eles que provocam entre vós
as inimizades e as desavenças.
293 Dois seres que foram inimigos na
Terra conservarão ressentimentos um contra o outro no mundo dos
Espíritos? – Não. Eles compreenderão que seu ódio era uma tolice e o
motivo, pueril. Apenas os Espíritos imperfeitos conservam um certo
rancor até que estejam depurados. Se foi unicamente por um interesse
material que se tornaram inimigos, não pensarão mais nisso, ainda que
estejam pouco desmaterializados. Se não há antipatia entre eles, o
motivo de discussão não mais existindo, podem se rever com prazer. ?
Como dois escolares que atingiram a idade da razão reconhecem a
infantilidade das brigas que tiveram na infância e deixam de se
malquerer.
294 A recordação das más ações que dois
homens praticaram um contra o outro é um obstáculo à simpatia? – Sim,
isso os leva a se distanciarem.
295 Que sentimento têm após a morte
aqueles a quem fizemos mal aqui na Terra? – Se são bons, perdoam de
acordo com o vosso arrependimento. Se são maus, é possível que conservem
ressentimento e algumas vezes até vos persigam numa outra existência.
Isso pode representar uma punição, uma provação.
296 As afeições individuais dos Espíritos
são passíveis de alteração? – Não, porque não podem se enganar. Eles
não têm mais a máscara sob a qual se escondem os hipócritas; eis por que
as suas afeições são inalteráveis quando são puros. O amor que os une é
para eles a fonte de uma felicidade suprema.
297 A afeição que dois seres tiveram na
Terra sempre continuará no mundo dos Espíritos? – Sim, sem dúvida, se é
fundada sobre uma simpatia verdadeira. Mas se as causas físicas foram
maiores que a simpatia, ela cessa com a causa. As afeições entre os
Espíritos são mais sólidas e mais duráveis do que as da Terra, porque
não estão sujeitas aos caprichos dos interesses materiais e do
amor-próprio.
298 As almas que devem unir-se estão
predestinadas a essa união desde a origem e cada um de nós tem, em
alguma parte do universo, sua metade à qual um dia fatalmente se unirá? –
Não. Não existe união particular e fatal entre duas almas. A união
existe entre todos os Espíritos, mas em diferentes graus, de acordo com a
categoria que ocupam, ou seja, de acordo com a perfeição que
adquiriram: quanto mais perfeitos, mais unidos. Da discórdia nascem
todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.
299 Em que sentido devemos entender a
palavra metade, de que certos Espíritos se servem para designar os
Espíritos simpáticos? – A expressão é inexata. Se um Espírito fosse a
metade de um outro, uma vez separados, ambos estariam incompletos.
300 Dois Espíritos perfeitamente
simpáticos, uma vez reunidos, o serão pela eternidade, ou podem se
separar e se unir a outros? – Todos os Espíritos são unidos entre si.
Falo daqueles que atingiram a perfeição. Nas esferas inferiores, quando
um Espírito se eleva, já não tem mais a mesma simpatia por aqueles que
deixou para trás.
301 Dois Espíritos simpáticos são o
complemento um do outro, ou essa simpatia é o resultado de uma
identidade perfeita? – A simpatia que atrai um Espírito ao outro é o
resultado da perfeita concordância de suas tendências, de seus
instintos; se um tivesse que completar o outro, perderia sua
individualidade.
302 A identidade necessária para a
simpatia perfeita consiste apenas na semelhança de pensamentos e
sentimentos, ou ainda na uniformidade dos conhecimentos adquiridos? – Na
igualdade dos graus de elevação.
303 Os Espíritos que não são simpáticos
hoje podem tornar-se mais tarde? – Sim, todos o serão. Assim, o Espírito
que está hoje numa esfera inferior, ao se aperfeiçoar, alcançará a
esfera onde está o outro. Seu reencontro acontecerá mais prontamente se o
que está num grau mais evoluído permanecer estacionário por não ter
conseguido superar as provas a que se submeteu.
303 a Dois Espíritos simpáticos podem
deixar de sê-lo? – Certamente, se um deles for preguiçoso. ? A teoria
das metades eternas é apenas uma figura que representa a união de dois
Espíritos simpáticos. É uma expressão usada até mesmo na linguagem comum
e não deve ser tomada ao pé da letra. Os Espíritos que dela se serviram
certamente não pertencem a uma ordem elevada. A esfera de suas ideias é
limitada e expressa seus pensamentos pelos termos de que se serviam
durante a vida corporal. É preciso rejeitar essa idéia de dois Espíritos
criados um para o outro, e que deverão, portanto, um dia, fatalmente,
se reunir na eternidade, após estarem separados durante um espaço de
tempo mais ou menos longo.
RECORDAÇÃO DA EXISTÊNCIA CORPÓREA
304. Lembra-se o Espírito da sua
existência corporal? “Lembra-se, isto é, tendo vivido muitas vezes na
Terra, recorda-se do que foi como homem e eu te afirmo que
frequentemente ri, penalizado de si mesmo.” Tal qual o homem, que chegou
à madureza e que ri das suas loucuras de moço, ou das suas puerilidades
na meninice.
305. A lembrança da existência corporal
se apresenta ao Espírito, completa e inopinadamente, após a morte? “Não;
vem-lhe pouco a pouco, qual imagem que surge gradualmente de uma névoa,
à medida que nela fixa ele a sua atenção.”
306. O Espírito se lembra,
pormenorizadamente, de todos os acontecimentos de sua vida? Apreende o
conjunto deles de um golpe de vista retrospectivo? “Lembra-se das
coisas, de conformidade com as consequências que delas resultaram para o
estado em que se encontra como Espírito errante. Bem compreendes,
portanto, que muitas circunstâncias haverá de sua vida a que não ligará
importância alguma e das quais nem sequer procurará recordar-se”. a) —
Mas, se o quisesse, poderia lembrar-se delas? “Pode lembrar-se dos mais
minuciosos pormenores e incidentes, assim relativos aos fatos, como até
aos seus pensamentos. Não o faz, porém, desde que não tenha utilidade”.
b) — Entrevê o Espírito o objetivo da vida terrestre com relação à vida
futura? “Certo que o vê e compreende muito melhor do que em vida do seu
corpo. Compreende a necessidade da sua purificação para chegar ao
infinito e percebe que em cada existência deixa algumas impurezas.”
307. Como é que ao Espírito se lhe
desenha na memória a sua vida passada? Será por esforço da própria
imaginação, ou como um quadro que se lhe apresenta à vista? “De uma e
outra formas. São-lhe como que presentes todos os atos de que tenha
interesse em lembrar-se. Os outros lhe permanecem mais ou menos vagos na
mente, ou esquecidos de todo. Quanto mais desmaterializado estiver,
tanto menos importância dará às coisas materiais. Essa a razão por que,
muitas vezes, evocas um Espírito que acabou de deixar a Terra e
verificas que não se lembra dos nomes das pessoas que lhe eram caras,
nem de uma porção de coisas que te parecem importantes. É que tudo isso,
pouco lhe importando, logo caiu em esquecimento. Ele só se recorda
perfeitamente bem dos fatos principais que concorrem para a sua
melhoria.”
308. O Espírito se recorda de todas as
existências que precederam a que acaba de ter? “Todo o seu passado se
lhe desdobra à vista, quais a um viajor os trechos do caminho que
percorreu. Mas, como já dissemos, não se recorda, de modo absoluto, de
todos os seus atos. Lembra-se destes conformemente à influência que
tiveram na criação do seu estado atual. Quanto às primeiras existências,
as que se podem considerar como a infância do Espírito, essas se perdem
no vago e desaparecem na noite do esquecimento.”
309. Como considera o Espírito o corpo de
que vem de separar-se? “Como veste imprestável, que o embaraçava,
sentindo-se feliz por estar livre dela.” a) — Que sensação lhe causa o
espetáculo do seu corpo em decomposição? “Quase sempre se conserva
indiferente a isso, como a uma coisa que em nada o interessa.”
310. Ao cabo de algum tempo, reconhecerá o
Espírito os ossos ou outros objetos que lhe tenham pertencido? “Algumas
vezes, dependendo do ponto de vista mais ou menos elevado, donde
considere as coisas terrenas.”
311. A veneração que se tenha pelos
objetos materiais que pertenceram ao Espírito lhe dá prazer e atrai a
sua atenção para esses objetos? “É sempre grato ao Espírito que se
lembrem dele, e os objetos que lhe pertenceram trazem-no à memória dos
que ele no mundo deixou. Mas, o que o atrai é o pensamento destas
pessoas e não aqueles objetos.”
312. E a lembrança dos sofrimentos por que passaram na última existência corporal, os Espíritos a conservam?
“Frequentemente assim acontece e essa
lembrança lhes faz compreender melhor o valor da felicidade de que podem
gozar como Espíritos.”
313. O homem, que neste mundo foi feliz,
deplora a felicidade que perdeu, deixando a Terra? “Só os Espíritos
inferiores podem sentir saudades de gozos condizentes com uma natureza
impura qual a deles, gozos que lhes acarretam a expiação pelo
sofrimento. Para os Espíritos elevados, a felicidade eterna é mil vezes
preferível aos prazeres efêmeros da Terra.” Exatamente como sucede ao
homem que, na idade da madureza, nenhuma importância liga ao que tanto o
deliciava na infância.
314. Aquele que deu começo a trabalhos de
vulto com um fim útil e, que os vê interrompidos pela morte, lamenta,
no outro mundo, tê-los deixado por acabar? “Não, porque vê que outros
estão destinados a concluí-los. Trata, ao contrário, de influenciar
outros Espíritos humanos, para que os ultimem. Seu objetivo, na Terra,
era o bem da Humanidade: o mesmo objetivo continua a ter no mundo dos
Espíritos.”
315. E o que deixou trabalhos de arte ou
de literatura, conserva pelas suas obras o amor que lhes tinha quando
vivo? “De acordo com a sua elevação, aprecia-as de outro ponto de vista e
não é raro condene o que maior admiração lhe causava.”
316. No além, o Espírito se interessa pelos trabalhos que se executam na Terra, pelo progresso das artes e das ciências?
“Conforme à sua elevação ou à missão que
possa ter que desempenhar. Muitas vezes, o que vos parece magnífico bem
pouco é para certos Espíritos, que, então, o admiram, como o sábio
admira a obra de um estudante. Atentam apenas no que prove a elevação
dos encarnados e seus progressos.”
317. Após a morte, conservam os Espíritos
o amor da pátria? “O princípio é sempre o mesmo. Para os Espíritos
elevados, a pátria é o Universo. Na Terra, a pátria, para eles, está
onde se ache o maior número das pessoas que lhes são simpáticas.” As
condições dos Espíritos e as maneiras por que veem as coisas variam ao
infinito, de conformidade com os graus de desenvolvimento moral e
intelectual em que se achem. Geralmente, os Espíritos de ordem elevada
só por breve tempo se aproximam da Terra. Tudo o que aí se faz é tão
mesquinho em comparação com as grandezas do infinito, tão pueris são,
aos olhos deles, as coisas a que os homens mais importância ligam, que
quase nenhum atrativo lhes oferece o nosso mundo, a menos que para aí os
leve o propósito de concorrerem para o progresso da Humanidade. Os
Espíritos de ordem intermédia são os que mais frequentemente baixam a
este planeta, se bem considerem as coisas de um ponto de vista mais alto
do que quando encarnados. Os Espíritos vulgares, esses são os que aí
mais se comprazem e constituem a massa da população invisível do globo
terráqueo. Conservam quase que as mesmas ideias, os mesmos gostos e as
mesmas inclinações que tinham quando revestidos do invólucro corpóreo.
Metem-se em nossas reuniões, negócios, divertimentos, nos quais tomam
parte mais ou menos ativa, segundo seus caracteres. Não podendo
satisfazer às suas paixões, gozam na companhia dos que a elas se
entregam e os excitam a cultivá-las. Entre eles, no entanto, muitos há,
sérios, que veem e observam para se instruí- rem e aperfeiçoarem.
318. As ideias dos Espíritos se
modificam quando na erraticidade? “Muito; sofrem grandes modificações, à
proporção que o Espírito se desmaterializa. Pode este, algumas vezes,
permanecer longo tempo imbuído das ideias que tinha na Terra; mas, pouco
a pouco, a influência da matéria diminui e ele vê as coisas com maior
clareza. É então que procura os meios de se tornar melhor.”
319. Já tendo o Espírito vivido a vida
espírita antes da sua encarnação, como se explica o seu espanto ao
reingressar no mundo dos Espíritos? “Isso só se dá no primeiro momento e
é efeito da perturbação que se segue ao despertar do Espírito. Mais
tarde, ele se vai inteirando da sua condição, à medida que lhe volta a
lembrança do passado e que a impressão da vida terrena se lhe apaga.”
(Nos 163 e seguintes.)
COMEMORAÇÃO DOS MORTOS. FUNERAIS
320. Sensibiliza os Espíritos o
lembrarem-se deles os que lhes foram caros na Terra? “Muito mais do que
podeis supor. Se são felizes, esse fato lhes aumenta a felicidade. Se
são desgraçados, serve-lhes de lenitivo.”
321. O dia da comemoração dos mortos é,
para os Espíritos, mais solene do que os outros dias? Apraz-lhes ir ao
encontro dos que vão orar nos cemitérios sobre seus túmulos?
“Os Espíritos acodem nesse dia ao chamado
dos que da Terra lhes dirigem seus pensamentos, como o fazem noutro dia
qualquer.” a) — Mas o de finados é, para eles, um dia especial de
reunião junto de suas sepulturas? “Nesse dia, em maior número se reúnem
nas necrópoles, porque então também é maior, em tais lugares, o das
pessoas que os chamam pelo pensamento. Porém, cada Espírito vai lá
somente pelos seus amigos e não pela multidão dos indiferentes.” b) —
Sob que forma aí comparecem e como os veríamos, se pudessem tornar-se
visíveis? “Sob a que tinham quando encarnados.”
322. E os esquecidos, cujos túmulos
ninguém vai visitar, também lá, não obstante, comparecem e sentem algum
pesar por verem que nenhum amigo se lembra deles? “Que lhes importa a
Terra? Só pelo coração nos achamos a ela presos. Desde que aí ninguém
mais lhe vota afeição, nada mais prende a esse planeta o Espírito, que
tem para si o Universo inteiro.”
323. A visita de uma pessoa a um túmulo
causa maior contentamento ao Espírito, cujos despojos corporais aí se
encontrem, do que a prece que por ele faça essa pessoa em sua casa?
“Aquele que visita um túmulo apenas manifesta, por essa forma, que pensa
no Espírito ausente. A visita é a representação exterior de um fato
íntimo. Já dissemos que a prece é que santifica o ato da rememoração.
Nada importa o lugar, desde que é feita com o coração.”
324. Os Espíritos das pessoas a quem se
erigem estátuas ou monumentos assistem à inauguração de umas e outros e
experimentam algum prazer nisso? “Muitos comparecem a tais solenidades,
quando podem; porém, menos os sensibiliza a homenagem que lhes prestam,
do que a lembrança que deles guardam os homens.”
325. Qual a origem do desejo que certas
pessoas exprimem de ser enterradas antes num lugar do que noutro? Será
que preferirão, depois de mortas, vir a tal lugar? E essa importância
dada a uma coisa tão material constitui indício de inferioridade do
Espírito? “Afeição particular do Espírito por determinados lugares;
inferioridade moral. Que importa este ou aquele canto da Terra a um
Espírito elevado? Não sabe ele que sua alma se reunirá às dos que lhe
são caros, embora fiquem separados os seus respectivos ossos”? a) —
Deve-se considerar futilidade a reunião dos despojos mortais de todos os
membros de uma família? “Não; é um costume piedoso e um testemunho de
simpatia que dão os que assim procedem aos que lhes foram entes
queridos. Conquanto destituída de importância para os Espíritos, essa
reunião é útil aos homens: mais concentradas se tornam suas
recordações.”
326. Comovem a alma que volta à vida
espiritual as honras que lhe prestem aos despojos mortais? “Quando já
ascendeu a certo grau de perfeição, o Espírito se acha escoimado de
vaidades terrenas e compreende a futilidade de todas essas coisas.
Porém, ficai sabendo, há Espíritos que, nos primeiros momentos que se
seguem à sua morte material, experimentam grande prazer com as honras
que lhes tributam, ou se aborrecem com o pouco caso que façam de seus
envoltórios corporais. É que ainda conservam alguns dos preconceitos
desse mundo.”
327. O Espírito assiste ao seu enterro?
“Frequentemente assiste, mas, algumas vezes, se ainda está perturbado,
não percebe o que se passa.” a) — Lisonjeia-o a concorrência de muitas
pessoas ao seu enterramento? “Mais ou menos, conforme o sentimento que
as anima.”
328. O Espírito daquele que acaba de
morrer assiste à reunião de seus herdeiros? “Quase sempre. Para seu
ensinamento e castigo dos culpados, Deus permite que assim aconteça.
Nessa ocasião, o Espírito julga do valor dos protestos que lhe faziam.
Todos os sentimentos se lhe patenteiam e a decepção que lhe causa a
rapacidade dos que entre si partilham os bens por ele deixados o
esclarece acerca daqueles sentimentos. Chegará, porém, a vez dos que lhe
motivam essa decepção.”
329. O instintivo respeito que, em todos
os tempos e entre todos os povos, o homem consagrou e consagra aos
mortos é efeito da intuição que tem da vida futura? “É a consequência
natural dessa intuição. Se assim não fosse, nenhuma razão de ser teria
esse respeito.”
CAPÍTULO VII
Da volta do Espírito à vida corporal
• Prelúdio da volta
• Faculdades morais e intelectuais do homem
• Influência do organismo
• Idiotismo, loucura
• A infância
• Simpatia e antipatia terrenas
• Esquecimento do passado
PRELÚDIO DA VOLTA
330. Sabem os Espíritos em que época
reencarnarão? “Pressentem-na, como sucede ao cego que se aproxima do
fogo. Sabem que têm de retomar um corpo, como sabeis que tendes de
morrer um dia, mas ignoram quando isso se dará.” (166) a)— Então, a
reencarnação é uma necessidade da vida espírita, como a morte o é da
vida corporal? “Certamente; assim é.”
331. Todos os Espíritos se preocupam com a
sua reencarnação? “Muitos há que em tal coisa não pensam, que nem
sequer a compreendem. Depende de estarem mais ou menos adiantados. Para
alguns, a incerteza em que se acham do futuro que os aguarda constitui
punição.”
332. Pode o Espírito apressar ou retardar
o momento da sua reencarnação? “Pode apressá-lo, atraindo-o por um
desejo ardente. Pode igualmente distanciá-lo, recuando diante da prova,
pois entre os Espíritos também há covardes e indiferentes. Nenhum,
porém, assim procede impunemente, visto que sofre por isso, como aquele
que recusa o remédio capaz de curá-lo.”
333. Se se considerasse bastante feliz,
numa condição mediana entre os Espíritos errantes e, conseguintemente,
não ambicionasse elevar-se, poderia um Espírito prolongar
indefinidamente esse estado? “Indefinidamente, não. Cedo ou tarde, o
Espírito sente a necessidade de progredir. Todos têm que se elevar; esse
o destino de todos.”
334. Há predestinação na união da alma
com tal ou tal corpo, ou só à última hora é feita a escolha do corpo que
ela tomará? “O Espírito é sempre, de antemão, designado. Tendo
escolhido a prova a que queira submeter-se, pede para encarnar. Ora,
Deus, que tudo sabe e vê, já antecipadamente sabia e vira que tal
Espírito se uniria a tal corpo.”
335. Cabe ao Espírito a escolha do corpo
em que encarne, ou somente a do gênero de vida que lhe sirva de prova?
“Pode também escolher o corpo, porquanto as imperfeições que este
apresente ainda serão, para o Espírito, provas que lhe auxiliarão o
progresso, se vencer os obstáculos que lhe oponha. Nem sempre, porém,
lhe é permitida a escolha do seu invólucro corpóreo; mas, simplesmente, a
faculdade de pedir que seja tal ou qual.” a) — Poderia o Espírito
recusar, à última hora, tomar o corpo por ele escolhido? “Se recusasse,
sofreria muito mais do que aquele que não tentasse prova alguma.”
336. Poderia dar-se não haver Espírito
que aceitasse encarnar numa criança que houvesse de nascer? “Deus a isso
proveria. Quando uma criança tem que nascer vital, está predestinada
sempre a ter uma alma. Nada se cria sem que à criação presida um
desígnio.”
337. Pode a união do Espírito a
determinado corpo ser imposta por Deus? “Certo, do mesmo modo que as
diferentes provas, mormente quando ainda o Espírito não está apto a
proceder a uma escolha com conhecimento de causa. Por expiação, pode o
Espírito ser constrangido a se unir ao corpo de determinada criança que,
pelo seu nascimento e pela posição que venha a ocupar no mundo, se lhe
torne instrumento de castigo.”
338. Se acontecesse que muitos Espíritos
se apresentassem para tomar determinado corpo destinado a nascer, que é o
que decidiria sobre a qual deles pertenceria o corpo? “Muitos podem
pedi-lo; mas, em tal caso, Deus é quem julga qual o mais capaz de
desempenhar a missão a que a criança se destina. Porém, como já eu
disse, o Espírito é designado antes que soe o instante em que haja de
unir-se ao corpo.”
339. No momento de encarnar, o Espírito
sofre perturbação semelhante à que experimenta ao desencarnar? “Muito
maior e, sobretudo, mais longa. Pela morte, o Espírito sai da
escravidão; pelo nascimento, entra para ela.”
340. É solene para o Espírito o instante
da sua encarnação? Pratica ele esse ato considerando-o grande e
importante? “Procede como o viajante que embarca para uma travessia
perigosa e que não sabe se encontrará ou não a morte nas ondas que se
decide a afrontar.” O viajante que embarca sabe a que perigo se lança,
mas não sabe se naufragará. O mesmo se dá com o Espírito: conhece o
gênero das provas a que se submete, mas não sabe se sucumbirá. Assim
como, para o Espírito, a morte do corpo é uma espécie de renascimento, a
reencarnação é uma espécie de morte, ou antes, de exílio, de clausura.
Ele deixa o mundo dos Espíritos pelo mundo corporal, como o homem deixa
este mundo por aquele. Sabe que reencarnará, como o homem sabe que
morrerá. Mas, como este com relação à morte, o Espírito só no instante
supremo, quando chegou o momento predestinado, tem consciência de que
vai reencarnar. Então, qual do homem em agonia, dele se apodera a
perturbação, que se prolonga até que a nova existência se ache
positivamente encetada. À aproximação do momento de reencarnar, sente
uma espécie de agonia.
341. Na incerteza em que se vê, quanto às
eventualidades do seu triunfo nas provas que vai suportar na vida, tem o
Espírito uma causa de ansiedade antes da sua encarnação? “De ansiedade
bem grande, pois que as provas da sua existência o retardarão ou farão
avançar, conforme as suporte.”
342. No momento de reencarnar, o Espírito
se acha acompanhado de outros Espíritos seus amigos, que vêm assistir à
sua partida do mundo incorpóreo, como vêm recebê-lo quando para lá
volta? “Depende da esfera a que pertença. Se já está nas em que reina a
afeição, os Espíritos que lhe querem o acompanham até ao último momento,
animam e mesmo lhe seguem, muitas vezes, os passos pela vida em fora.”
343. Os que vemos, em sonho, que nos
testemunham afeto e que se nos apresentam com desconhecidos semblantes,
são alguma vez os Espíritos amigos que nos seguem os passos na vida?
“Muito frequentemente são eles que vos vêm visitar, como ides visitar um
encarcerado.”
UNIÃO DA ALMA E DO CORPO
344. Em que momento a alma se une ao
corpo? “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do
nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para
habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez
mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz. O
grito, que o recém-nascido solta, anuncia que ela se conta no número dos
vivos e dos servos de Deus.”
345. É definitiva a união do Espírito com
o corpo desde o momento da concepção? Durante esta primeira fase,
poderia o Espírito renunciar a habitar o corpo que lhe está destinado?
“É definitiva a união, no sentido de que outro Espírito não poderia
substituir o que está designado para aquele corpo. Mas, como os laços
que ao corpo o prendem são ainda muito fracos, facilmente se rompem e
podem romper-se por vontade do Espírito, se este recua diante da prova
que escolheu. Em tal caso, porém, a criança não vinga.”
346. Que faz o Espírito, se o corpo que
ele escolheu morre antes de se verificar o nascimento? “Escolhe outro.”
a) — Qual a utilidade dessas mortes prematuras? “Dão-lhes causa, as mais
das vezes, as imperfeições da matéria.”
347. Que utilidade encontrará um Espírito
na sua encarnação em um corpo que morre poucos dias depois de nascido?
“O ser não tem então consciência plena da sua existência. Assim, a
importância da morte é quase nenhuma. Conforme já dissemos, o que há
nesses casos de morte prematura é uma prova para os pais.”
348. Sabe o Espírito, previamente, que o
corpo de sua escolha não tem probabilidade de viver? “Sabe-o algumas
vezes; mas, se nessa circunstância reside o motivo da escolha, isso
significa que está fugindo à prova.”
349. Quando falha por qualquer causa a
encarnação de um Espírito, é ela suprida imediatamente por outra
existência? “Nem sempre o é imediatamente. Faz-se mister dar ao Espírito
tempo para proceder a nova escolha, a menos que a reencarnação imediata
corresponda a anterior determinação.”
350. Uma vez unido ao corpo da criança e
quando já lhe não é possível voltar atrás, sucede alguma vez deplorar o
Espírito a escolha que fez? “Perguntas se, como homem, se queixa da vida
que tem? Se desejara que outra fosse ela? Sim. Se se arrepende da
escolha que fez? Não, pois não sabe ter sido sua a escolha. Depois de
encarnado, não pode o Espírito lastimar uma escolha de que não tem
consciência. Pode, entretanto, achar pesada demais a carga e
considerá-la superior às suas forças. É quando isso acontece que recorre
ao suicídio.”
351. No intervalo que medeia da concepção
ao nascimento, goza o Espírito de todas as suas faculdades? “Mais ou
menos, conforme o ponto, em que se ache, dessa fase, porquanto ainda não
está encarnado, mas apenas ligado. A partir do instante da concepção,
começa o Espírito a ser tomado de perturbação, que o adverte de que lhe
soou o momento de começar nova existência corpórea. Essa perturbação
cresce de contínuo até ao nascimento. Nesse intervalo, seu estado é
quase idêntico ao de um Espírito encarnado durante o sono. À medida que a
hora do nascimento se aproxima, suas ideias se apagam, assim como a
lembrança do passado, do qual deixa de ter consciência na condição de
homem, logo que entra na vida. Essa lembrança, porém, lhe volta pouco a
pouco ao retornar ao estado de Espírito.”
352. Imediatamente ao nascer recobra o
Espírito a plenitude das suas faculdades? “Não, elas se desenvolvem
gradualmente com os órgãos. O Espírito se acha numa existência nova;
preciso é que aprenda a servir-se dos instrumentos de que dispõe. As
ideias lhe voltam pouco a pouco, como a uma pessoa que desperta e se vê
em situação diversa da que ocupava na véspera.”
353. Não sendo completa a união do
Espírito ao corpo, não estando definitivamente consumada, senão depois
do nascimento, poder-se-á considerar o feto como dotado de alma? “O
Espírito que o vai animar existe, de certo modo, fora dele. O feto não
tem pois, propriamente falando, uma alma, visto que a encarnação está
apenas em via de operar-se. Achasse, entretanto, ligado à alma que virá a
possuir.”
354. Como se explica a vida intrauterina?
“É a da planta que vegeta. A criança vive vida animal. O homem tem a
vida vegetal e a vida animal que, pelo seu nascimento, se completam com a
vida espiritual.”
355. Há, de fato, como o indica a
Ciência, crianças que já no seio materno não são vitais? Com que fim
ocorre isso? “Frequentemente isso se dá e Deus o permite como prova,
quer para os pais do nascituro, quer para o Espírito designado a tomar
lugar entre os vivos.”
356. Entre os natimortos alguns haverá
que não tenham sido destinados à encarnação de Espíritos? “Alguns há,
efetivamente, a cujos corpos nunca nenhum Espírito esteve destinado.
Nada tinha que se efetuar para eles. Tais crianças então só vêm por seus
pais.” a) — Pode chegar a termo de nascimento um ser dessa natureza?
“Algumas vezes; mas não vive.” b) — Segue-se daí que toda criança que
vive após o nascimento tem forçosamente encarnado em si um Espírito?
“Que seria ela, sé assim não acontecesse? Não seria um ser humano.”
357. Que consequências tem para o Espírito o aborto? “É uma existência nulificada e que ele terá de recomeçar.”
358. Constitui crime a provocação do
aborto, em qualquer período da gestação? “Há crime sempre que
transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá
crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, por
isso que impede uma alma de passar pelas provas a que serviria de
instrumento o corpo que se estava formando.”
359. Dado o caso que o nascimento da
criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em
sacrificar- -se a primeira para salvar a segunda? “Preferível é se
sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”
360. Será racional ter-se para com um
feto as mesmas atenções que se dispensam ao corpo de uma criança que
viveu algum tempo? “Vede em tudo isso a vontade e a obra de Deus. Não
trateis, pois, desatenciosamente, coisas que deveis respeitar. Por que
não respeitar as obras da criação, algumas vezes incompletas por vontade
do Criador? Tudo ocorre segundo os seus desígnios e ninguém é chamado
para ser seu juiz.”
FACULDADES MORAIS E INTELECTUAIS DO HOMEM
361. Qual a origem das qualidades morais,
boas ou más, do homem? “São as do Espírito nele encarnado. Quanto mais
puro é esse Espírito, tanto mais propenso ao bem é o homem.” a) —
Seguir-se-á daí que o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito e o
homem vicioso a de um Espírito mau? “Sim, mas, dize antes que o homem
vicioso é a encarnação de um Espírito imperfeito, pois, do contrário,
poderias fazer crer na existência de Espíritos sempre maus, a que
chamais demônios.”
362. Qual o caráter dos indivíduos em que
encarnam Espíritos desassisados e levianos? “São indivíduos estúrdios,
maliciosos e, não raro, criaturas malfazejas.”
363. Têm os Espíritos paixões de que não partilhe a Humanidade? “Não, que, de outro modo, vo-las teriam comunicado.”
364. O mesmo Espírito dá ao homem as
qualidades morais e as da inteligência? “Certamente e isso em virtude do
grau de adiantamento a que se haja elevado. O homem não tem em si dois
Espíritos.”
365. Por que é que alguns homens muito
inteligentes, o que indica acharem-se encarnados neles Espíritos
superiores são ao mesmo tempo, profundamente viciosos? “É que não são
ainda bastante puros os Espíritos encarnados nesses homens, que, então, e
por isso, cedem à influência de outros Espíritos mais imperfeitos. O
Espírito progride em insensível marcha ascendente, mas o progresso não
se efetua simultaneamente em todos os sentidos. Durante um período da
sua existência, ele se adianta em ciência; durante outro, em
moralidade.”
366. Que se deve pensar da opinião dos
que pretendem que as diferentes faculdades intelectuais e morais do
homem resultam da encarnação, nele, de outros tantos Espíritos,
diferentes entre si, cada um com uma aptidão especial? “Refletindo,
reconhecereis que é absurda. O Espírito tem que ter todas as aptidões.
Para progredir, precisa de uma vontade única. Se o homem fosse um
amálgama de Espíritos, essa vontade não existiria e ele careceria de
individualidade, pois que, por sua morte, todos aqueles Espíritos
formariam um bando de pássaros escapados da gaiola. Queixa-se, amiúde, o
homem de não compreender certas coisas e, no entanto, curioso é ver-se
como multiplica as dificuldades, quando tem ao seu alcance explicações
muito simples e naturais. Ainda neste caso tomam o efeito pela causa.
Fazem, com relação à criatura humana, o que, com relação a Deus, faziam
os pagãos, que acreditavam em tantos deuses quantos eram os fenômenos no
Universo, se bem que as pessoas sensatas, com eles coexistentes, apenas
viam em tais fenômenos efeitos provindos de uma causa única – Deus.” O
mundo físico e o mundo moral nos oferecem, a este respeito, vários
pontos de semelhança. Enquanto se detiveram na aparência dos fenômenos,
os cientistas acreditaram fosse múltipla a matéria. Hoje, compreende-se
ser bem possível que tão variados fenômenos consistam apenas em
modificações da matéria elementar única. As diversas faculdades são
manifestações de uma mesma causa, que é a alma, ou do Espírito
encarnado, e não de muitas almas, exatamente como os diferentes sons do
órgão, os quais procedem todos do ar e não de tantas espécies de ar,
quantos os sons. De semelhante sistema decorreria que, quando um homem
perde ou adquire certas aptidões, certos pendores, isso significaria que
outros tantos Espíritos teriam vindo habitá-lo ou o teriam deixado, o
que o tornaria um ser múltiplo, sem individualidade e, conseguintemente,
sem responsabilidade. Acresce que o contradizem numerosíssimos exemplos
de manifestações de Espíritos, em que estes provam suas personalidades e
identidade.
INFLUÊNCIA DO ORGANISMO
367. Unindo-se ao corpo, o Espírito se
identifica com a matéria? “A matéria é apenas o envoltório do Espírito,
como o vestuário o é do corpo. Unindo-se a este, o Espírito conserva os
atributos da natureza espiritual.”
368. Após sua união com o corpo, exerce o
Espírito, com liberdade plena, suas faculdades? “O exercício das
faculdades depende dos órgãos que lhes servem de instrumento. A
grosseria da matéria as enfraquece.” a) — Assim, o invólucro material é
obstáculo à livre manifestação das faculdades do Espírito, como um vidro
opaco o é à livre irradiação da luz? “É, como vidro muito opaco.”
Pode-se comparar a ação que a matéria grosseira exerce sobre o Espírito à
de um charco lodoso sobre um corpo nele mergulhado, ao qual tira a
liberdade dos movimentos.
369. O livre exercício das faculdades da
alma está subordinado ao desenvolvimento dos órgãos? “Os órgãos são os
instrumentos da manifestação das faculdades da alma, manifestação que se
acha subordinada ao desenvolvimento e ao grau de perfeição dos órgãos,
como a excelência de um trabalho o está à da ferramenta própria à sua
execução.”
370. Da influência dos órgãos se pode
inferir a existência de uma relação entre o desenvolvimento dos do
cérebro e o das faculdades morais e intelectuais? “Não confundais o
efeito com a causa. O Espírito dispõe sempre das faculdades que lhe são
próprias. Ora, não são os órgãos que dão as faculdades, e sim estas que
impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.” a) — Dever-se-á deduzir daí
que a diversidade das aptidões entre os homens deriva unicamente do
estado do Espírito? “O termo — unicamente — não exprime com toda a
exatidão o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas
qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado. Cumpre,
porém, se leve em conta a influência da matéria, que mais ou menos lhe
cerceia o exercício de suas faculdades.” Encarnando, traz o Espírito
certas predisposições e, se se admitir que a cada uma corresponda no
cérebro um órgão, o desenvolvimento desses órgãos será efeito e não
causa. Se nos órgãos estivesse o princípio das faculdades, o homem seria
máquina sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos.
Forçoso então fora admitir-se que os maiores gênios, os sábios, os
poetas, os artistas, só o são porque o acaso lhes deu órgãos especiais,
donde se seguiria que, sem esses órgãos, não teriam sido gênios e que,
assim, o maior dos imbecis houvera podido ser um Newton, um Vergílio, ou
um Rafael, desde que de certos órgãos se achassem providos. Ainda mais
absurda se mostra semelhante hipótese, se a aplicarmos às qualidades
morais. Efetivamente, segundo esse sistema, um Vicente de Paulo, se a
Natureza o dotara de tal ou tal órgão, teria podido ser um celerado e o
maior dos celerados não precisaria senão de um certo órgão para ser um
Vicente de Paulo. Admita-se, ao contrário, que os órgãos especiais, dado
existam, são consequentes, que se desenvolvem por efeito do exercício
da faculdade, como os músculos por efeito do movimento, e a nenhuma
conclusão irracional se chegará. Sirvamo-nos de uma comparação, trivial à
força de ser verdadeira. Por alguns sinais fisionômicos se reconhece
que um homem tem o vício da embriaguez. Serão esses sinais que fazem
dele um ébrio, ou será a ebriedade que nele imprime aqueles sinais? Pode
dizer-se que os órgãos recebem o cunho das faculdades.
TISMIDIOO, LOUCARA
371. Tem algum fundamento o pretender-se
que a alma dos cretinos e dos idiotas é de natureza inferior? “Nenhum.
Eles trazem almas humanas, não raro mais inteligentes do que supondes,
mas que sofrem da insuficiência dos meios de que dispõem para se
comunicar, da mesma forma que o mudo sofre da impossibilidade de falar.”
372. Que objetivo visa a Providência
criando seres desgraçados, como os cretinos e os idiotas? “Os que
habitam corpos de idiotas são Espíritos sujeitos a uma punição. Sofrem
por efeito do constrangimento que experimentam e da impossibilidade em
que estão de se manifestarem mediante órgãos não desenvolvidos ou
desmantelados.” a) — Não há, pois, fundamento para dizer-se que os
órgãos nada influem sobre as faculdades? “Nunca dissemos que os órgãos
não têm influência. Têm-na muito grande sobre a manifestação das
faculdades, mas não são eles a origem destas. Aqui está a diferença. Um
músico excelente, com um instrumento defeituoso, não dará a ouvir boa
música, o que não fará que deixe de ser bom músico.”
Importa se distinga o estado normal do
estado patológico. No primeiro, o moral vence os obstáculos que a
matéria lhe opõe. Há, porém, casos em que a matéria oferece tal
resistência que as manifestações anímicas ficam obstadas ou
desnaturadas, como nos de idiotismo e de loucura. São casos patológicos
e, não gozando nesse estado a alma de toda a sua liberdade, a própria
lei humana a isenta da responsabilidade de seus atos.
373. Qual será o mérito da existência de
seres que, como os cretinos e os idiotas, não podendo fazer o bem nem o
mal, se acham incapacitados de progredir? “É uma expiação decorrente do
abuso que fizeram de certas faculdades. É um estacionamento temporário.”
a) — Pode assim o corpo de um idiota conter um Espírito que tenha
animado um homem de gênio em precedente existência? “Certo. O gênio se
torna por vezes um flagelo, quando dele abusa o homem.” A superioridade
moral nem sempre guarda proporção com a superioridade intelectual e os
grandes gênios podem ter muito que expiar. Daí, frequentemente, lhes
resulta uma existência inferior à que tiveram e uma causa de
sofrimentos. Os embaraços que o Espírito encontra para suas
manifestações se lhe assemelham às algemas que tolhem os movimentos a um
homem vigoroso. Pode dizer-se que os cretinos e os idiotas são
estropiados do cérebro, como o coxo o é das pernas e dos olhos o cego.
374. Na condição de Espírito livre, tem o
idiota consciência do seu estado mental? “Frequentemente tem.
Compreende que as cadeias que lhe obstam ao voo são prova e expiação.”
375. Qual, na loucura, a situação do
Espírito? “O Espírito, quando em liberdade, recebe diretamente
suas impressões e diretamente exerce sua ação sobre a matéria.
Encarnado, porém, ele se encontra em condições muito diversas e na
contingência de só o fazer com o auxílio de órgãos especiais. Altere-se
uma parte ou o conjunto de tais órgãos e eis que se lhe interrompem, no
que destes dependam, a ação ou as impressões. Se perde os olhos, fica
cego; se o ouvido, torna-se surdo, etc. Imagina agora que seja o órgão,
que preside às manifestações da inteligência, o atacado ou modificado,
parcial ou inteiramente, e fácil te será compreender que, só tendo o
Espírito a seu serviço órgãos incompletos ou alterados, uma perturbação
resultará de que ele, por si mesmo e no seu foro íntimo, tem perfeita
consciência, mas cujo curso não lhe está nas mãos deter”. a) — Então, o
desorganizado é sempre o corpo e não o Espírito? “Exatamente; mas,
convém não perder de vista que, assim como o Espírito atua sobre a
matéria, também esta reage sobre ele, dentro de certos limites, e que
pode acontecer impressionar-se o Espírito temporariamente com a
alteração dos órgãos pelos quais se manifesta e recebe as impressões.
Pode mesmo suceder que, com a continuação, durando longo tempo a
loucura, a repetição dos mesmos atos acabe por exercer sobre o Espírito
uma influência, de que ele não se libertará senão depois de se haver
libertado de toda impressão material.”
376. Por que razão a loucura leva o homem
algumas vezes ao suicídio? “O Espírito sofre pelo constrangimento em
que se acha e pela impossibilidade em que se vê de manifestar-se
livremente, donde o procurar na morte um meio de quebrar seus grilhões.”
377. Depois da morte, o Espírito do
alienado se ressente do desarranjo de suas faculdades? “Pode
ressentir-se, durante algum tempo após a morte, até que se desligue
completamente da matéria, como o homem que desperta se ressente, por
algum tempo, da perturbação em que o lançara o sono.”
378. De que modo a alteração do cérebro
reage sobre o Espírito depois da morte? “Como uma recordação. Um peso
oprime o Espírito e, como ele não teve a compreensão de tudo o que se
passou durante a sua loucura, sempre se faz mister um certo tempo, a fim
de se pôr ao corrente de tudo. Por isso é que, quanto mais durar a
loucura no curso da vida terrena, tanto mais lhe durará a incerteza, o
constrangimento, depois da morte. Liberto do corpo, o Espírito se
ressente, por certo tempo, da impressão dos laços que àquele o
prendiam.”
A INFÂNCIA
379. É tão desenvolvido, quanto o de um
adulto, o Espírito que anima o corpo de uma criança? “Pode até ser mais,
se mais progrediu. Apenas a imperfeição dos órgãos infantis o impede de
se manifestar. Obra de conformidade com o instrumento de que dispõe.”
380. Abstraindo do obstáculo que a
imperfeição dos órgãos opõe à sua livre manifestação, o Espírito, numa
criancinha, pensa como criança ou como adulto? “Desde que se trate de
uma criança, é claro que, não estando ainda nela desenvolvidos, não
podem os órgãos da inteligência dar toda a intuição própria de um adulto
ao Espírito que a anima. Este, pois, tem, efetivamente, limitada a
inteligência, enquanto a idade lhe não amadurece a razão. A perturbação
que o ato da encarnação produz no Espírito não cessa de súbito, por
ocasião do nascimento. Só gradualmente se dissipa, com o desenvolvimento
dos órgãos.” Há um fato de observação, que apoia esta resposta. Os
sonhos, numa criança, não apresentam o caráter dos de um adulto. Quase
sempre pueril é o objeto dos sonhos infantis, o que indica de que
natureza são a s preocupações do respectivo Espírito.
381. Por morte da criança, readquire o
Espírito, imediatamente, o seu precedente vigor? “Assim tem que ser,
pois que se vê desembaraçado de seu invólucro corporal. Entretanto, não
readquire a anterior lucidez, senão quando se tenha completamente
separado daquele envoltório, isto é, quando mais nenhum laço exista
entre ele e o corpo.”
382. Durante a infância sofre o Espírito
encarnado, em consequência do constrangimento que a imperfeição dos
órgãos lhe impõe? “Não. Esse estado corresponde a uma necessidade, está
na ordem da natureza e de acordo com as vistas da Providência. É um
período de repouso do Espírito.”
383. Qual, para este, a utilidade de
passar pelo estado de infância? “Encarnando, com o objetivo de se
aperfeiçoar, o Espírito, durante esse período, é mais acessível às
impressões que recebe, capazes de lhe auxiliarem o adiantamento, para o
que devem contribuir os incumbidos de educá-lo.”
384. Por que é o choro a primeira
manifestação da criança ao nascer? “Para estimular o interesse da
genitora e provocar os cuidados de que há mister. Não é evidente que se
suas manifestações fossem todas de alegria, quando ainda não sabe falar,
pouco se inquietariam os que o cercam com os cuidados que lhe são
indispensáveis? Admirai, pois, em tudo a sabedoria da Providência.”
385. Que é o que motiva a mudança que se
opera no caráter do indivíduo em certa idade, especialmente ao sair da
adolescência? É que o Espírito se modifica? “É que o Espírito retoma a
natureza que lhe é própria e se mostra qual era. Não conheceis o que a
inocência das crianças oculta. Não sabeis o que elas são, nem o que o
foram, nem o que serão. Contudo, afeição lhes tendes, as acariciais,
como se fossem parcelas de vós mesmos, a tal ponto que se considera o
amor que uma mãe consagra a seus filhos como o maior amor que um ser
possa votar a outro. Donde nasce o meigo afeto, a terna benevolência que
mesmo os estranhos sentem por uma criança? Sabeis? Não. Pois bem! Vou
explicá-lo. As crianças são os seres que Deus manda a novas existências.
Para que não lhe possam imputar excessiva severidade, dá-lhes ele todos
os aspectos da inocência. Ainda quando se trata de uma criança de maus
pendores, cobrem-se-lhe as más ações com a capa da inconsciência. Essa
inocência não constitui superioridade real com relação ao que eram
antes, não. É a imagem do que deveriam ser e, se não o são, o
consequente castigo exclusivamente sobre elas recai. Não foi, todavia,
por elas somente que Deus lhes deu esse aspecto de inocência; foi também
e sobretudo por seus pais, de cujo amor necessita a fraqueza que as
caracteriza. Ora, esse amor se enfraqueceria grandemente à vista de um
caráter áspero e intratável, ao passo que, julgando seus filhos bons e
dóceis, os pais lhes dedicam toda a afeição e os cercam dos mais
minuciosos cuidados. Desde que, porém, os filhos não mais precisam da
proteção e assistência que lhes foram dispensadas durante quinze ou
vinte anos, surge-lhes o caráter real e individual em toda a nudez.
Conservam-se bons, se eram fundamentalmente bons; mas, sempre irisados
de matizes que a primeira infância manteve ocultos. Como vedes, os
processos de Deus são sempre os melhores e, quando se tem o coração
puro, facilmente se lhes apreende a explicação. Com efeito, ponderai que
nos vossos lares possivelmente nascem crianças cujos Espíritos vêm de
mundos onde contraíram hábitos diferentes dos vossos e dizei-me como
poderiam estar no vosso meio esses seres, trazendo paixões diversas das
que nutris, inclinações, gostos, inteiramente opostos aos vossos; como
poderiam enfileirar-se entre vós, senão como Deus o determinou, isto é,
passando pelo tamis da infância? Nesta se vêm confundir todas as idéias,
todos os caracteres, todas as variedades de seres gerados pela
infinidade dos mundos em que medram as criaturas. E vós mesmos, ao
morrerdes, vos achareis num estado que é uma espécie de infância, entre
novos irmãos. Ao volverdes à existência extraterrena, ignorareis os
hábitos, os costumes, as relações que se observam nesse mundo, para vós,
novo. Manejareis com dificuldade uma linguagem que não estais
acostumado a falar, linguagem mais vivaz do que o é agora o vosso
pensamento. (319) A infância ainda tem outra utilidade. Os Espíritos só
entram na vida corporal para se aperfeiçoarem, para se melhorarem. A
delicadeza da idade infantil os torna brandos, acessíveis aos conselhos
da experiência e dos que devam fazê-los progredir. Nessa fase é que se
lhes pode reformar os caracteres e reprimir os maus pendores. Tal o
dever que Deus impôs aos pais, missão sagrada de que terão de dar
contas. Assim, portanto, a infância é não só útil, necessária,
indispensável, mas também consequência natural das leis que Deus
estabeleceu e que regem o Universo.”
SIMPATIA E ANTIPATIA TERRENAS
386. Podem dois seres, que se conheceram e
estimaram, encontrar-se noutra existência corporal e reconhecer-se?
“Reconhecer-se, não. Podem, porém, sentir-se atraí- dos um para o outro.
E, frequentemente, diversa não é a causa de íntimas ligações fundadas
em sincera afeição. Um do outro dois seres se aproximam devido a
circunstâncias aparentemente fortuitas, mas que na realidade resultam da
atração de dois Espíritos, que se buscam reciprocamente por entre a
multidão”. a) — Não lhes seria mais agradável reconhecerem-se? “Nem
sempre. A recordação das passadas existências teria inconvenientes
maiores do que imaginais. Depois de mortos, reconhecer-se-ão e saberão
que tempo passaram juntos.” (392)
387. A simpatia tem sempre por princípio
um anterior conhecimento? “Não. Dois Espíritos, que se ligam bem,
naturalmente se procuram um ao outro, sem que se tenham conhecido como
homens.”
388. Os encontros, que costumam dar-se,
de algumas pessoas e que comumente se atribuem ao acaso, não serão
efeito de uma certa relação de simpatia? “Entre os seres pensantes há
ligação que ainda não conheceis. O magnetismo é o piloto desta ciência,
que mais tarde compreendereis melhor.”
389. E a repulsão instintiva que se
experimenta por algumas pessoas, donde se origina? “São Espíritos
antipáticos que se adivinham e reconhecem, sem se falarem.”
390. A antipatia instintiva é sempre
sinal de natureza má? “De não simpatizarem um com o outro, não se segue
que dois Espíritos sejam necessariamente maus. A antipatia, entre eles,
pode derivar de diversidade no modo de pensar. À proporção, porém, que
se forem elevando, essa divergência irá desaparecendo e a antipatia
deixará de existir.”
91. A antipatia entre duas pessoas nasce
primeiro na que tem pior Espírito, ou na que o tem melhor? “Numa e
noutra indiferentemente, mas distintas são as causas e os efeitos nas
duas. Um Espírito mau antipatiza com quem quer que o possa julgar e
desmascarar. Ao ver pela primeira vez uma pessoa, logo sabe que vai ser
censurado. Seu afastamento dessa pessoa se transforma em ódio, em inveja
e lhe inspira o desejo de praticar o mal. O bom Espírito sente repulsão
pelo mau, por saber que este o não compreenderá e porque díspares dos
dele são os seus sentimentos. Entretanto, consciente da sua
superioridade, não alimenta ódio, nem inveja contra o outro. Limita-se a
evitá-lo e a lastimá-lo.”
ESQUECIMENTO DO PASSADO
392. Por que perde o Espírito encarnado a
lembrança do seu passado? “Não pode o homem, nem deve, saber tudo. Deus
assim o quer em sua sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas,
ficaria ofuscado, como quem, sem transição, saísse do escuro para o
claro. Esquecido de seu passado ele é mais senhor de si.”
393. Como pode o homem ser responsável
por atos e resgatar faltas de que se não lembra? Como pode aproveitar da
experiência de vidas de que se esqueceu? Concebe-se que as tribulações
da existência lhe servissem de lição, se se recordasse do que as tenha
podido ocasionar. Desde que, porém, disso não se recorda, cada
existência é, para ele, como se fosse a primeira e eis que então está
sempre a recomeçar. Como conciliar isto com a justiça de Deus? “Em cada
nova existência, o homem dispõe de mais inteligência e melhor pode
distinguir o bem do mal. Onde o seu mérito se se lembrasse de todo o
passado? Quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita),
diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas
que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as
teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então
uma existência capaz de reparar a que vem de transcorrer. Escolhe provas
análogas às de que não soube aproveitar, ou as lutas que considere
apropriadas ao seu adiantamento e pede a Espíritos que lhe são
superiores que o ajudem na nova empresa que sobre si toma, ciente de que
o Espírito, que lhe for dado por guia nessa outra existência, se
esforçará pelo levar a reparar suas faltas, dando-lhe uma espécie de
intuição das em que incorreu. Tendes essa intuição no pensamento, no
desejo criminoso que frequentemente vos assalta e a que instintivamente
resistis, atribuindo, as mais das vezes, essa resistência aos princípios
que recebestes de vossos pais, quando é a voz da consciência que vos
fala. Essa voz, que é a lembrança do passado, vos adverte para não
recairdes nas faltas de que já vos fizestes culpados. Em a nova
existência, se sofre com coragem aquelas provas e resiste, o Espírito se
eleva e ascende na hierarquia dos Espíritos, ao voltar para o meio
deles.” Não temos, é certo, durante a vida corpórea, lembrança exata do
que fomos e do que fizemos em anteriores existências; mas temos de tudo
isso a intuição, sendo as nossas tendências instintivas uma
reminiscência do passado. E a nossa consciência, que é o desejo que
experimentamos de não reincidir nas faltas já cometidas, nos concita à
resistência àqueles pendores.
394. Nos mundos mais elevados do que a
Terra, onde os que os habitam não se veem premidos pelas necessidades
físicas, pelas enfermidades que nos afligem, os homens compreendem que
são mais felizes do que nós? Relativa é, em geral, a felicidade.
Sentimo-la, mediante comparação com um estado menos ditoso. Visto que,
em suma, alguns desses mundos, se bem melhores do que o nosso, ainda não
atingiram o estado de perfeição, seus habitantes devem ter motivos de
desgostos, embora de gênero diverso dos nossos. Entre nós, o rico,
conquanto não sofra as angústias das necessidades materiais, como o
pobre, nem por isso se acha isento de tribulações, que lhe tornam amarga
a vida. Pergunto então: Na situação em que se encontram, os habitantes
desses mundos não se consideram tão infelizes quanto nós, na em que nos
vemos, e não se lastimam da sorte, olvidados de existências inferiores
que lhes sirvam de termos de comparação? “Cabem aqui duas respostas
distintas. Há mundos, entre os de que falas, cujos habitantes guardam
lembrança clara e exata de suas existências passadas. Esses,
compreendes, podem e sabem apreciar a felicidade de que Deus lhes
permite fruir. Outros há, porém, cujos habitantes, achando-se, como
dizes, em melhores condições do que vós na Terra, não deixam de
experimentar grandes desgostos, até desgraças. Esses não apreciam a
felicidade de que gozam, pela razão mesma de se não recordarem de um
estado mais infeliz. Entretanto, se não a apreciam como homens,
apreciam-na como Espíritos.” No esquecimento das existências
anteriormente transcorridas, sobretudo quando foram amarguradas, não há
qualquer coisa de providencial e que revela a sabedoria divina? Nos
mundos superiores, quando o recordá-las já não constitui pesadelo, é que
as vidas desgraçadas se apresentam à memória. Nos mundos inferiores, a
lembrança de todas as que se tenham sofrido não agravaria as
infelicidades presentes? Concluamos, pois, daí que tudo o que Deus fez é
perfeito e que não nos toca criticar-lhe as obras, nem lhe ensinar como
deveria ter regulado o Universo. Gravíssimos inconvenientes teria o nos
lembrarmos das nossas individualidades anteriores. Em certos casos,
humilhar-nos-ia sobremaneira. Em outros nos exaltaria o orgulho,
peando-nos, em consequência, o livre-arbítrio. Para nos melhorarmos,
dá-nos Deus exatamente o que nos é necessário e basta: a voz da
consciência e os pendores instintivos. Priva-nos do que nos
prejudicaria. Acrescentemos que, se nos recordássemos dos nossos
precedentes atos pessoais, igualmente nos recordaríamos dos outros
homens, do que resultariam talvez os mais desastrosos efeitos para as
relações sociais. Nem sempre podendo honrar-nos do nosso passado, melhor
é que sobre ele um véu seja lançado. Isto concorda perfeitamente com a
doutrina dos Espíritos acerca dos mundos superiores à Terra. Nesses
mundos, onde só reina o bem, a reminiscência do passado nada tem de
dolorosa. Tal a razão por que neles as criaturas se lembram da sua
antecedente existência, como nos lembramos do que fizemos na véspera.
Quanto à estada em mundos inferiores, não passa então, como já dissemos,
de mau sonho.
395. Podemos ter algumas revelações a
respeito de nossas vidas anteriores? “Nem sempre. Contudo, muitos sabem o
que foram e o que faziam. Se se lhes permitisse dizê-lo abertamente,
extraordinárias revelações fariam sobre o passado.”
396. Algumas pessoas julgam ter vaga
recordação de um passado desconhecido, que se lhes apresenta como a
imagem fugitiva de um sonho, que em vão se tenta reter. Não há nisso
simples ilusão? “Algumas vezes, é uma impressão real; mas também,
frequentemente, não passa de mera ilusão, contra a qual precisa o homem
pôr-se em guarda, porquanto pode ser efeito de superexcitada
imaginação.”
397. Nas existências corpóreas de
natureza mais elevada do que a nossa, é mais clara a lembrança das
anteriores? “Sim, à medida que o corpo se torna menos material, com mais
exatidão o homem se lembra do seu passado. Esta lembrança, os que
habitam os mundos de ordem superior a têm mais nítida.”
398. Sendo os pendores instintivos uma
reminiscência do seu passado, dar-se-á que, pelo estudo desses pendores,
seja possível ao homem conhecer as faltas que cometeu? “Até certo
ponto, assim é. Preciso se torna, porém, levar em conta a melhora que se
possa ter operado no Espírito e as resoluções que ele haja tomado na
erraticidade. Pode suceder que a existência atual seja muito melhor que a
precedente.”
a) — Poderá também ser pior, isto é,
poderá o Espírito cometer, numa existência, faltas que não praticou em a
precedente? “Depende do seu adiantamento. Se não souber triunfar das
provas, possivelmente será arrastado a novas faltas, consequentes,
então, da posição que escolheu. Mas, em geral, estas faltas denotam mais
um estacionamento que uma retrogradação, porquanto o Espírito é
suscetível de se adiantar ou de parar, nunca, porém, de retroceder.”
399. Sendo as vicissitudes da vida
corporal expiação das faltas do passado e, ao mesmo tempo, provas com
vistas ao futuro, seguir-se-á que da natureza de tais vicissitudes se
possa deduzir de que gênero foi a existência anterior? “Muito amiúde é
isso possível, pois que cada um é punido naquilo por onde pecou.
Entretanto, não há que tirar daí uma regra absoluta. As tendências
instintivas constituem indício mais seguro, visto que as provas por que
passa o Espírito o são, tanto pelo que respeita ao passado, quanto pelo
que toca ao futuro.” Chegado ao termo que a Providência lhe assinou à
vida na erraticidade, o próprio Espírito escolhe as provas a que deseja
submeter-se para apressar o seu adiantamento, isto é, escolhe meios de
adiantar-se e tais provas estão sempre em relação com as faltas que lhe
cumpre expiar. Se delas triunfa, eleva-se; se sucumbe, tem que
recomeçar. O Espírito goza sempre do livre-arbítrio. Em virtude dessa
liberdade é que escolhe, quando desencarnado, as provas da vida corporal
e que, quando encarnado, decide fazer ou não uma coisa e procede à
escolha entre o bem e o mal. Negar ao homem o livre- -arbítrio fora
reduzi-lo à condição de máquina.´
Mergulhado na vida corpórea, perde o
Espírito, momentaneamente, a lembrança de suas existências anteriores,
como se um véu as cobrisse. Todavia, conserva algumas vezes vaga
consciência dessas vidas, que, mesmo em certas circunstâncias, lhe podem
ser reveladas. Esta revelação, porém, só os Espíritos superiores
espontaneamente lha fazem, com um fim útil, nunca para satisfazer a vã
curiosidade. As existências futuras, essas em nenhum caso podem ser
reveladas, pela razão de que dependem do modo por que o Espírito se
sairá da existência atual e da escolha que ulteriormente faça. O
esquecimento das faltas praticadas não constitui obstáculo à melhoria do
Espírito, porquanto, se é certo que este não se lembra delas com
precisão, não menos certo é que a circunstância de as ter conhecido na
erraticidade e de haver desejado repará-las o guia por intuição e lhe dá
a idéia de resistir ao mal, idéia que é a voz da consciência, tendo a
secundá-la os Espíritos superiores que o assistem, se atende às boas
inspirações que lhe dão. O homem não conhece os atos que praticou em
suas existências pretéritas, mas pode sempre saber qual o gênero das
faltas de que se tornou culpado e qual o cunho predominante do seu
caráter. Bastará então julgar do que foi, não pelo que é, sim, pelas
suas tendências. As vicissitudes da vida corpórea constituem expiação
das faltas do passado e, simultaneamente, provas com relação ao futuro.
Depuram-nos e elevam-nos, se as suportamos resignados e sem murmurar. A
natureza dessas vicissitudes e das provas que sofremos também nos podem
esclarecer acerca do que fomos e do que fizemos, do mesmo modo que neste
mundo julgamos dos atos de um culpado pelo castigo que lhe inflige a
lei. Assim, o orgulhoso será castigado no seu orgulho, mediante a
humilhação de uma existência subalterna; o mau rico, o avarento, pela
miséria; o que foi cruel para os outros, pelas crueldades que sofrerá; o
tirano, pela escravidão; o mau filho, pela ingratidão de seus filhos; o
preguiçoso, por um trabalho forçado, etc.
CAPÍTULO VIII
Da emancipação da alma
• O sono e os sonhos
• Visitas espíritas entre pessoas vivas
Transmissão oculta do pensamento
• Letargia, catalepsia, mortes aparentes
• Sonambulismo
• Êxtase
• Dupla vista
• Resumo teórico do sonambulismo, do êxtase e da dupla vista
O SONO E OS SONHOS
400.
O Espírito encarnado permanece de bom grado no seu envoltório corporal?
“É como se perguntasses se ao encarcerado agrada o cárcere. O Espírito
encarnado aspira constantemente à sua libertação e tanto mais deseja
ver-se livre do seu invólucro, quanto mais grosseiro é este.”
401.
Durante o sono, a alma repousa como o corpo? “Não, o Espírito jamais
está inativo. Durante o sono, afrouxam-se os laços que o prendem ao
corpo e, não precisando este então da sua presença, ele se lança pelo espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos.”
402. Como podemos julgar da liberdade do
Espírito durante o sono? “Pelos sonhos. Quando o corpo repousa,
acredita-o, tem o Espírito mais faculdades do que no estado de vigília.
Lembra-se do passado e algumas vezes prevê o futuro. Adquire maior
potencialidade e pode pôr-se em comunicação com os demais Espíritos,
quer deste mundo, quer do outro. Dizes frequentemente: Tive um sonho
extravagante, um sonho horrível, mas absolutamente inverossímil.
Enganas-te. É amiúde uma recordação dos lugares e das coisas que viste
ou que verás em outra existência ou em outra ocasião. Estando
entorpecido o corpo, o Espírito trata de quebrar seus grilhões e de
investigar no passado ou no futuro. Pobres homens, que mal conheceis os
mais vulgares fenômenos da vida! Julgais-vos muito sábios e as coisas
mais comezinhas vos confundem. Nada sabeis responder a estas perguntas
que todas as crianças formulam: Que fazemos quando dormimos? Que são os
sonhos? O sono liberta a alma parcialmente do corpo. Quando dorme, o
homem se acha por algum tempo no estado em que fica permanentemente
depois que morre. Tiveram sonos inteligentes os Espíritos que,
desencarnando, logo se desligam da matéria. Esses Espíritos, quando
dormem, vão para junto dos seres que lhes são superiores. Com estes
viajam, conversam e se instruem. Trabalham mesmo em obras que se lhes
deparam concluídas, quando volvem, morrendo na Terra, ao mundo
espiritual. Ainda esta circunstância é de molde a vos ensinar que não
deveis temer a morte, pois que todos os dias morreis, como disse um
santo. Isto, pelo que concerne aos Espíritos elevados. Pelo que respeita
ao grande número de homens que, morrendo, têm que passar longas horas
na perturbação, na incerteza de que tantos já vos falaram, esses vão,
enquanto dormem, ou a mundos inferiores à Terra, onde os chamam velhas
afeições, ou em busca de gozos quiçá mais baixos do que os em que aqui
tanto se deleitam. Vão beber doutrinas ainda mais vis, mais ignóbeis,
mais funestas do que as que professam entre vós. E o que gera a simpatia
na Terra é o fato de sentir-se o homem, ao despertar, ligado pelo
coração àqueles com quem acaba de passar oito ou nove horas de ventura
ou de prazer. Também as antipatias invencíveis se explicam pelo fato de
sentirmos em nosso íntimo que os entes com quem antipatizamos têm uma
consciência diversa da nossa. Conhecemo-los sem nunca os termos visto
com os olhos. É ainda o que explica a indiferença de muitos homens. Não
cuidam de conquistar novos amigos, por saberem que muitos têm que os
amam e lhes querem. Numa palavra: o sono influi mais do que supondes na
vossa vida. Graças ao sono, os Espíritos encarnados estão sempre em
relação com o mundo dos Espíritos. Por isso é que os Espíritos
superiores assentem, sem grande repugnância, em encarnar entre vós. Quis
Deus que, tendo de estar em contato com o vício, pudessem eles ir
retemperar-se na fonte do bem, a fim de igualmente não falirem, quando
se propõem a instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu,
para que possam ir ter com seus amigos do céu; é o recreio depois do
trabalho, enquanto esperam a grande libertação, a libertação final, que
os restituirá ao meio que lhes é próprio. O sonho é a lembrança do que o
Espírito viu durante o sono. Notai, porém, que nem sempre sonhais. Que
quer isso dizer? Que nem sempre vos lembrais do que vistes, ou de tudo o
que haveis visto, enquanto dormíeis. É que não tendes então a alma no
pleno desenvolvimento de suas faculdades. Muitas vezes, apenas vos fica a
lembrança da perturbação que o vosso Espírito experimenta à sua partida
ou no seu regresso, acrescida da que resulta do que fizestes ou do que
vos preocupa quando despertos. A não ser assim, como explicaríeis os
sonhos absurdos, que tanto os sábios, quanto as mais humildes e simples
criaturas têm? Acontece também que os maus Espíritos se aproveitam dos
sonhos para atormentar as almas fracas e pusilânimes. Em suma, dentro em
pouco vereis vulgarizar-se outra espécie de sonhos. Conquanto tão
antiga como a de que vimos falando, vós a desconheceis. Refiro-me aos
sonhos de Joana, ao de Jacob, aos dos profetas judeus e aos de alguns
adivinhos indianos. São recordações guardadas por almas que se
desprendem quase inteiramente do corpo, recordações dessa segunda vida a
que ainda há pouco aludíamos. Tratai de distinguir essas duas espécies
de sonhos nos de que vos lembrais, do contrário cairíeis em contradições
e em erros funestos à vossa fé”. Os sonhos são efeito da emancipação da
alma, que mais independente se torna pela suspensão da vida ativa e de
relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida que se alonga até
aos mais afastados lugares e até mesmo a outros mundos. Daí também a
lembrança que traz à memória acontecimentos da precedente existência ou
das existências anteriores. As singulares imagens do que se passa ou se
passou em mundos desconhecidos, entremeados de coisas do mundo atual, é
que formam esses conjuntos estranhos e confusos, que nenhum sentido ou
ligação parecem ter. A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas
lacunas que apresenta a recordação incompleta que conservamos do que nos
apareceu quando sonhávamos. É como se a uma narração se truncassem
frases ou trechos ao acaso. Reunidos depois, os fragmentos restantes
nenhuma significação racional teriam. 403. Por que não nos lembramos
sempre dos sonhos? “Em o que chamas sono, só há o repouso do corpo,
visto que o Espírito está constantemente em atividade. Recobra, durante o
sono, um pouco da sua liberdade e se corresponde com os que lhe são
caros, quer neste mundo, quer em outros. Mas, como é pesada e grosseira a
matéria que o compõe, o corpo dificilmente conserva as impressões que o
Espírito recebeu, porque a este não chegaram por intermédio dos órgãos
corporais.
404. Que se deve pensar das significações
atribuídas aos sonhos? “Os sonhos não são verdadeiros como o entendem
os ledores de buenadicha, pois fora absurdo crer-se que sonhar com tal
coisa anuncia tal outra. São verdadeiros no sentido de que apresentam
imagens que para o Espírito têm realidade, porém que, frequentemente,
nenhuma relação guardam com o que se passa na vida corporal. São também,
como atrás dissemos, um pressentimento do futuro, permitido por Deus,
ou a visão do que no momento ocorre em outro lugar a que a alma se
transporta. Não se contam por muitos os casos de pessoas que em sonho
aparecem a seus parentes e amigos, a fim de avisá-los do que a elas está
acontecendo? Que são essas aparições senão as almas ou Espíritos de
tais pessoas a se comunicarem com entes caros? Quando tendes certeza de
que o que vistes realmente se deu, não fica provado que a imaginação
nenhuma parte tomou na ocorrência, sobretudo se o que observastes não
vos passava pela mente quando em vigília?” 405. Acontece com frequência
verem-se em sonho coisas que parecem um pressentimento, que, afinal, não
se confirma. A que se deve atribuir isto? “Pode suceder que tais
pressentimentos venham a confirmar-se apenas para o Espírito. Quer dizer
que este viu aquilo que desejava, foi ao seu encontro. É preciso não
esquecer que, durante o sono, a alma está mais ou menos sob a influência
da matéria e que, por conseguinte, nunca se liberta completamente de
suas idéias terrenas, donde resulta que as preocupações do estado de
vigília podem dar ao que se vê a aparência do que se deseja, ou do que
se teme. A isto é que, em verdade, cabe chamar-se efeito da imaginação.
Sempre que uma idéia nos preocupa fortemente, tudo o que vemos se nos
mostra ligado a essa idéia.” 406. Quando em sonho vemos pessoas vivas,
muito nossas conhecidas, a praticarem atos de que absolutamente não
cogitam, não é isso puro efeito de imaginação? “De que
absolutamente não cogitam, dizes. Que sabes a tal respeito? Os Espíritos
dessas pessoas vêm visitar o teu, como o teu os vai visitar, sem que
saibas sempre o que eles pensam. Demais, não é raro atribuirdes, de
acordo com o que desejais, a pessoas que conheceis, o que se deu ou se
está dando em outras existências.”
407. É necessário o sono completo para a
emancipação do Espírito? “Não; basta que os sentidos entrem em torpor
para que o Espírito recobre a sua liberdade. Para se emancipar, ele se
aproveita de todos os instantes de trégua que o corpo lhe concede. Desde
que haja prostração das forças vitais, o Espírito se desprende,
tornando-se tanto mais livre, quanto mais fraco for o corpo.” Assim se
explica que imagens idênticas às que vemos, em sonho, vejamos estando
apenas meio dormindo, ou em simples modorra.
408. E qual a razão de ouvirmos, algumas
vezes em nós mesmos, palavras pronunciadas distintamente e que nenhum
nexo têm com o que nos preocupa? “É fato: ouvis até mesmo frases
inteiras, principalmente quando os sentidos começam a entorpecer-se. É,
quase sempre, fraco eco do que diz um Espírito que convosco se quer
comunicar.”
409. Doutras vezes, num estado que ainda
não é bem o do adormecimento, estando com os olhos fechados, vemos
imagens distintas, figuras cujas mínimas particularidades percebemos.
Que há aí, efeito de visão ou de imaginação? “Estando entorpecido o
corpo, o Espírito trata de desprender-se. Transporta-se e vê. Se já
fosse completo o sono, haveria sonho.”
410. Dá-se também que, durante o sono, ou
quando nos achamos apenas ligeiramente adormecidos, acodem- -nos idéias
que nos parecem excelentes e que se nos apagam da memória, apesar dos
esforços que façamos para retê-las. Donde vêm essas idéias? “Provêm da
liberdade do Espírito que se emancipa e que, emancipado, goza de suas
faculdades com maior amplitude. Também são, frequentemente, conselhos
que outros Espíritos dão.” a) — De que servem essas idéias e esses
conselhos, desde que, pelos esquecer, não os podemos aproveitar? “Essas
idéias, em regra, mais dizem respeito ao mundo dos Espíritos do que ao
mundo corpóreo. Pouco importa que comumente o Espírito as esqueça,
quando unido ao corpo. Na ocasião oportuna, voltar-lhe-ão como
inspiração de momento.”
411. Estando desprendido da matéria
e atuando como Espírito, sabe o Espírito encarnado qual será a época de
sua morte? “Acontece pressenti-la. Também sucede ter plena consciência
dessa época, o que dá lugar a que, em estado de vigília, tenha a
intuição do fato. Por isso é que algumas pessoas preveem com grande
exatidão a data em que virão a morrer.”
412. Pode a atividade do Espírito,
durante o repouso, ou o sono corporal, fatigar o corpo? “Pode, pois que o
Espírito se acha preso ao corpo qual balão cativo ao poste. Assim como
as sacudiduras do balão abalam o poste, a atividade do Espírito reage
sobre o corpo e pode fatigá-lo.”
VISITAS ESPÍRITAS ENTRE PESSOAS VIVAS
413. Do princípio da emancipação da alma
parece decorrer que temos duas existências simultâneas: a do corpo, que
nos permite a vida de relação ostensiva; e a da alma, que nos
proporciona a vida de relação oculta. É assim? “No estado de
emancipação, prima a vida da alma. Contudo, não há, verdadeiramente,
duas existências. São antes duas fases de uma só existência, porquanto o
homem não vive duplamente.”
414. Podem duas pessoas que se conhecem
visitar-se durante o sono? “Certo e muitos que julgam não se conhecerem
costumam reunir-se e falar-se. Podes ter, sem que o suspeites, amigos em
outro país. É tão habitual o fato de irdes encontrar-vos, durante o
sono, com amigos e parentes, com os que conheceis e que vos podem ser
úteis, que quase todas as noites fazeis essas visitas.”
415. Que utilidade podem elas ter,
se as olvidamos? “De ordinário, ao despertardes, guardais a intuição
desse fato, do qual se originam certas idéias que vos vêm
espontaneamente, sem que possais explicar como vos acudiram. São idéias
que adquiristes nessas confabulações.”
416. Pode o homem, pela sua vontade
provocar as visitas espíritas? Pode, por exemplo, dizer, quando está
para dormir: Quero esta noite encontrar-me em Espírito com Fulano, quero
falar-lhe para dizer isto? “O que se dá é o seguinte: Adormecendo o
homem, seu Espírito desperta e, muitas vezes, nada disposto se mostra a
fazer o que o homem resolvera, porque a vida deste pouco interessa ao
seu Espírito, uma vez desprendido da matéria. Isto com relação a homens
já bastante elevados espiritualmente. Os outros passam de modo muito
diverso a fase espiritual de sua existência terrena. Entregam-se às
paixões que os escravizaram, ou se mantêm inativos. Pode, pois, suceder,
tais sejam os motivos que a isso o induzem, que o Espírito vá visitar
aqueles com quem deseja encontrar-se. Mas, não constitui razão, para que
semelhante coisa se verifique, o simples fato de ele o querer quando
desperto.”
417. Podem Espíritos encarnados reunir-se
em certo número e formar assembleias? “Sem dúvida alguma. Os laços,
antigos ou recentes, da amizade costumam reunir desse modo diversos
Espíritos, que se sentem felizes de estar juntos.” Pelo termo antigos se
devem entender os laços de amizade contraída em existências anteriores.
Ao despertar, guardamos intuição das idéias que haurimos nesses
colóquios, mas ficamos na ignorância da fonte donde promanaram. 418. Uma
pessoa que julgasse morto um de seus amigos, sem que tal fosse a
realidade, poderia encontrar-se com ele, em Espírito, e verificar que
continuava vivo? E, dado o fato, poderia, ao despertar, ter dele a
intuição? “Como Espírito, a pessoa que figuras pode ver o seu amigo e
conhecer-lhe a sorte. Se lhe não houver sido imposto, por prova, crer na
morte desse amigo, poderá ter um pressentimento da sua existência, como
poderá tê-lo de sua morte.”
TRANSMISSÃO OCULTA DO PENSAMENTO
419. Que é o que dá causa a que uma
idéia, a de uma descoberta, por exemplo, surja em muitos pontos ao mesmo
tempo? “Já dissemos que durante o sono os Espíritos se comunicam entre
si. Ora bem! Quando se dá o despertar, o Espírito se lembra do que
aprendeu e o homem julga ser isso um invento de sua autoria. Assim é que
muitos podem simultaneamente descobrir a mesma coisa. Quando dizeis que
uma idéia paira no ar, usais de uma figura de linguagem mais exata do
que supondes. Todos, sem o suspeitarem, contribuem para propagá-la.”
Desse modo, o nosso próprio Espírito revela muitas vezes, a outros
Espíritos, mau grado nosso, o que constituía objeto de nossas
preocupações no estado de vigília.
420. Podem os Espíritos comunicar-se,
estando completamente despertos os corpos? “O Espírito não se acha
encerrado no corpo como numa caixa; irradia por todos os lados. Segue-se
que pode comunicar-se com outros Espíritos, mesmo em estado de vigília,
se bem que mais dificilmente.”
421. Como se explica que duas pessoas,
perfeitamente acordadas, tenham instantaneamente a mesma idéia? “São
dois Espíritos simpáticos que se comunicam e veem reciprocamente seus
pensamentos respectivos, embora sem estarem adormecidos os corpos.” Há,
entre os Espíritos que se encontram, uma comunicação de pensamento, que
dá causa a que duas pessoas se vejam e compreendam sem precisarem dos
sinais ostensivos da linguagem. Poder-se-ia dizer que falam entre si a
linguagem dos Espíritos.
LETARGIA, CATALEPSIA, MORTES APARENTES
422. Os letárgicos e os catalépticos, em
geral, veem e ouvem o que em derredor se diz e faz, sem que possam
exprimir que estão vendo e ouvindo. É pelos olhos e pelos ouvidos que
têm essas percepções? “Não; pelo Espírito. O Espírito tem consciência de
si, mas não pode comunicar-se.” a) — Por quê? “Porque a isso se opõe o
estado do corpo. E esse estado especial dos órgãos vos prova que no
homem há alguma coisa mais do que o corpo, pois que, então, o corpo já
não funciona e, no entanto, o Espírito se mostra ativo.”
423. Na letargia, pode o Espírito
separar-se inteiramente do corpo, de modo a imprimir-lhe todas as
aparências da morte e voltar depois a habitá-lo? “Na letargia, o corpo
não está morto, porquanto há funções que continuam a executar-se. Sua
vitalidade se encontra em estado latente, como na crisálida, porém não
aniquilada. Ora, enquanto o corpo vive, o Espírito se lhe acha ligado.
Em se rompendo, por efeito da morte real e pela desagregação dos órgãos,
os laços que prendem um ao outro, integral se torna a separação e o
Espírito não volta mais ao seu envoltório. Desde que um homem,
aparentemente morto, volve à vida, é que não era completa a morte.”
424. Por meio de cuidados dispensados a
tempo, podem reatar-se laços prestes a se desfazerem e restituir-se à
vida um ser que definitivamente morreria se não fosse socorrido? “Sem
dúvida e todos os dias tendes a prova disso. O magnetismo, em tais
casos, constitui, muitas vezes, poderoso meio de ação, porque restitui
ao corpo o fluido vital que lhe falta para manter o funcionamento dos
órgãos.” A letargia e a catalepsia derivam do mesmo princípio, que é a
perda temporária da sensibilidade e do movimento, por uma causa
fisiológica ainda inexplicada. Diferem uma da outra em que, na letargia,
a suspensão das forças vitais é geral e dá ao corpo todas as aparências
da morte; na catalepsia, fica localizada, podendo atingir uma parte
mais ou menos extensa do corpo, de sorte a permitir que a inteligência
se manifeste livremente, o que a torna inconfundível com a morte. A
letargia é sempre natural; a catalepsia é por vezes magnética.
SONAMBULISMO
425. O sonambulismo natural tem alguma
relação com os sonhos? Como explicá-lo? “É um estado de independência do
Espírito, mais completo do que no sonho, estado em que maior amplitude
adquirem suas faculdades. A alma tem então percepções de que não dispõe
no sonho, que é um estado de sonambulismo imperfeito. “No sonambulismo, o
Espírito está na posse plena de si mesmo. Os órgãos materiais,
achando-se de certa forma em estado de catalepsia, deixam de receber as
impressões exteriores. Esse estado se apresenta principalmente durante o
sono, ocasião em que o Espírito pode abandonar provisoriamente o corpo,
por se encontrar este gozando do repouso indispensável à matéria.
Quando se produzem os fatos do sonambulismo, é que o Espírito,
preocupado com uma coisa ou outra, se aplica a uma ação qualquer, para
cuja prática necessita de utilizar-se do corpo. Serve-se então deste,
como se serve de uma mesa ou de outro objeto material no fenômeno das
manifestações físicas, ou mesmo como se utiliza da mão do médium nas
comunicações escritas. Nos sonhos de que se tem consciência, os órgãos,
inclusive os da memória, começam a despertar. Recebem imperfeitamente as
impressões produzidas por objetos ou causas externas e as comunicam ao
Espírito, que, então, também em repouso, só experimenta, do que lhe é
transmitido, sensações confusas e, amiúde, desordenadas, sem nenhuma
aparente razão de ser, mescladas que se apresentam de vagas recordações,
quer da existência atual, quer de anteriores. Facilmente, portanto, se
compreende por que os sonâmbulos nenhuma lembrança guardam do que se
passou enquanto estiveram no estado sonambúlico e por que os sonhos, de
que se conserva memória, as mais das vezes não têm sentido. Digo — as
mais das vezes, porque também sucede serem a consequência de lembrança
exata de acontecimentos de uma vida anterior e até, não raro, uma
espécie de intuição do futuro.”
426. O chamado sonambulismo magnético tem
alguma relação com o sonambulismo natural? “É a mesma coisa, com a só
diferença de ser provocado.”
427. De que natureza é o agente que se
chama fluido magnético? “Fluido vital, eletricidade animalizada, que são
modificações do fluido universal.”
428. Qual a causa da clarividência sonambúlica? “Já o dissemos: É a alma que vê.”
429. Como pode o sonâmbulo ver através
dos corpos opacos? “Não há corpos opacos senão para os vossos grosseiros
órgãos. Já precedentemente não dissemos que a matéria nenhum obstáculo
oferece ao Espírito, que livremente a atravessa? Frequentemente ouvis o
sonâmbulo dizer que vê pela fronte, pelo punho, etc., porque,
achando-vos inteiramente presos à matéria, não compreendeis lhe seja
possível ver sem o auxílio dos órgãos. Ele próprio, pelo desejo que
manifestais, julga precisar dos órgãos. Se, porém, o deixásseis livre,
compreenderia que vê por todas as partes do seu corpo, ou, melhor
falando, que vê de fora do seu corpo.”
430. Pois que a sua clarividência é a de
sua alma ou de seu Espírito, por que é que o sonâmbulo não vê tudo e
tantas vezes se engana?
“Primeiramente, aos Espíritos imperfeitos
não é dado verem tudo e tudo saberem. Não ignoras que ainda partilham
dos vossos erros e prejuízos. Depois, quando unidos à matéria, não gozam
de todas as suas faculdades de Espírito. Deus outorgou ao homem a
faculdade sonambúlica para fim útil e sério, não para que se informe do
que não deva saber. Eis por que os sonâmbulos nem tudo podem dizer.”
431. Qual a origem das idéias inatas do
sonâmbulo e como pode falar com exatidão de coisas que ignora quando
desperto, de coisas que estão mesmo acima de sua capacidade intelectual?
“É que o sonâmbulo possui mais conhecimentos do que os que lhe supões.
Apenas, tais conhecimentos dormitam, porque, por demasiado imperfeito,
seu invólucro corporal não lhe consente rememorá-lo. Que é, afinal, um
sonâmbulo? Espírito, como nós, e que se encontra encarnado na matéria
para cumprir a sua missão, despertando dessa letargia quando cai em
estado sonambúlico. Já te temos dito, repetidamente, que vivemos muitas
vezes. Esta mudança é que, ao sonâmbulo, como a qualquer Espírito
ocasiona a perda material do que haja aprendido em precedente
existência. Entrando no estado, a que chamas crise, lembra-se do que
sabe, mas sempre de modo incompleto. Sabe, mas não poderia dizer donde
lhe vem o que sabe, nem como possui os conhecimentos que revela. Passada
a crise, toda recordação se apaga e ele volve à obscuridade.” Mostra a
experiência que os sonâmbulos também recebem comunicações de outros
Espíritos, que lhes transmitem o que devam dizer e suprem à incapacidade
que denotam. Isto se verifica principalmente nas prescrições médicas. O
Espírito do sonâmbulo vê o mal, outro lhe indica o remédio. Essa dupla
ação é às vezes patente e se revela, além disso, por estas expressões
muito frequentes: dizem-me que diga, ou proíbem-me que diga tal coisa.
Neste último caso, há sempre perigo em insistir-se por uma revelação
negada, porque se dá azo a que intervenham Espíritos levianos, que falam
de tudo sem escrúpulo e sem se importarem com a verdade.
432. Como se explica a visão a distância
em certos sonâmbulos? “Durante o sono, a alma não se transporta? O mesmo
se dá no sonambulismo.”
433. O desenvolvimento maior ou menor da
clarividência sonambúlica depende da organização física, ou só da
natureza do Espírito encarnado? “De uma e outra. Há disposições físicas
que permitem ao Espírito desprender-se mais ou menos facilmente da
matéria.”
434. As faculdades de que goza o
sonâmbulo são as que tem o Espírito depois da morte? “Somente até certo
ponto, pois cumpre se atenda à influência da matéria a que ainda se acha
ligado.”
435. Pode o sonâmbulo ver os outros
Espíritos? “A maioria deles os vê muito bem, dependendo do grau e da
natureza da lucidez de cada um. É muito comum, porém, não perceberem, no
primeiro momento, que estão vendo Espíritos e os tomarem por seres
corpóreos. Isso acontece principalmente aos que, nada conhecendo do
Espiritismo, ainda não compreendem a essência dos Espíritos. O fato os
espanta e fá-los supor que têm diante da vista seres terrenos.” O mesmo
se dá com os que, tendo morrido, ainda se julgam vivos. Nenhuma
alteração notando ao seu derredor e parecendo- -lhes que os Espíritos
têm corpos iguais aos nossos, tomam por corpos reais os corpos aparentes
com que os mesmos Espíritos se lhes apresentam.
436. O sonâmbulo que vê, a distância, vê
do ponto em que se acha o seu corpo, ou do em que está sua alma? “Por
que esta pergunta, desde que sabes ser a alma quem vê e não o corpo?”
437. Posto que o que se dá, nos fenômenos
sonambúlicos, é que a alma se transporta, como pode o sonâmbulo
experimentar no corpo as sensações do frio e do calor existentes no
lugar onde se acha sua alma, muitas vezes bem distante do seu invólucro?
“A alma, em tais casos, não tem deixado inteiramente o corpo;
conserva-se-lhe presa pelo laço que os liga e que então desempenha o
papel de condutor das sensações. Quando duas pessoas se comunicam de uma
cidade para outra, por meio da eletricidade, esta constitui o laço que
lhes liga os pensamentos. Daí vem que confabulam como se estivessem ao
lado uma da outra.”
438. O uso que um sonâmbulo faz da sua
faculdade influi no estado do seu Espírito depois da morte? “Muito, como
o bom ou mau uso que o homem faz de todas as faculdades com que Deus o
dotou.”
ÊXTASE
439. Que diferença há entre o
êxtase e o sonambulismo? “O êxtase é um sonambulismo mais apurado. A
alma do extático ainda é mais independente.”
440. O Espírito do extático penetra
realmente nos mundos superiores? “Vê esses mundos e compreende a
felicidade dos que os habitam, donde lhe nasce o desejo de lá
permanecer. Há, porém, mundos inacessíveis aos Espíritos que ainda não
estão bastante purificados.”
441. Quando o extático manifesta o desejo
de deixar a Terra, fala sinceramente, não o retém o instinto de
conservação? “Isso depende do grau de purificação do Espírito. Se
verifica que a sua futura situação será melhor do que a sua vida
presente, esforça-se por desatar os laços que o prendem à Terra.”
442. Se se deixasse o extático entregue a
si mesmo, poderia sua alma abandonar definitivamente o corpo?
“Perfeitamente, poderia morrer”. Por isso é que preciso se torna
chamá-lo a voltar, apelando para tudo o que o prende a este mundo,
fazendo-lhe, sobretudo, compreender que a maneira mais certa de não
ficar lá, onde vê que seria feliz, consistiria em partir a cadeia que o
tem preso ao planeta terreno.”
443. Pretendendo que lhe é dado ver
coisas que evidentemente são produto de uma imaginação que as crenças e
prejuízos terrestres impressionaram, não será justo concluir-se que nem
tudo o que o extático vê é real? “O que o extático vê é real para ele.
Mas, como seu Espírito se conserva sempre debaixo da influência das
idéias terrenas, pode acontecer que veja a seu modo, ou melhor, que
exprima o que vê numa linguagem moldada pelos preconceitos e idéias de
que se acha imbuído, ou, então, pelos vossos preconceitos e idéias, a
fim de ser mais bem compreendido. Neste sentido, principalmente, é que
lhe sucede errar.”
444. Que confiança se pode depositar nas
revelações dos extáticos? “O extático está sujeito a enganar-se muito
frequentemente, sobretudo quando pretende penetrar no que deva continuar
a ser mistério para o homem, porque, então, se deixa levar pela
corrente das suas próprias idéias, ou se torna joguete de Espíritos
mistificadores, que se aproveitam da sua exaltação para fasciná-lo.”
445. Que deduções se podem tirar
dos fenômenos do sonambulismo e do êxtase? Não constituirão uma espécie
de iniciação na vida futura? “A bem dizer, mediante esses fenômenos, o
homem entrevê a vida passada e a vida futura. Estude-os e achará o
aclaramento de mais de um mistério, que a sua razão inutilmente procura
devassar.”
446. Poderiam tais fenômenos adequar-se
às idéias materialistas? “Aquele que os estudar de boa-fé e sem
prevenções não poderá ser materialista, nem ateu.”
DUPLA VISTA
447. O fenômeno a que se dá a designação
de dupla vista tem alguma relação com o sonho e o sonambulismo? “Tudo
isso é uma só coisa. O que se chama dupla vista é ainda resultado da
libertação do Espírito, sem que o corpo seja adormecido. A dupla vista
ou segunda vista é a vista da alma.”
448. É permanente a segunda vista? “A
faculdade é, o exercício não. Em os mundos menos materiais do que o
vosso, os Espíritos se desprendem mais facilmente e se põem em
comunicação apenas pelo pensamento, sem que, todavia, fique abolida a
linguagem articulada. Por isso mesmo, em tais mundos, a dupla vista é
faculdade permanente, para a maioria de seus habitantes, cujo estado
normal se pode comparar ao dos vossos sonâmbulos lúcidos. Essa também a
razão por que esses Espíritos se vos manifestam com maior facilidade do
que os encarnados em corpos mais grosseiros.”
449. A segunda vista aparece
espontaneamente ou por efeito da vontade de quem a possui como
faculdade? “As mais das vezes é espontânea, porém a vontade também
desempenha com grande frequência importante papel no seu aparecimento.
Toma, para exemplo, de umas dessas pessoas a quem se dá o nome de
ledoras da buenadicha, algumas das quais dispõem desta faculdade, e
verás que é com o auxílio da própria vontade que se colocam no estado de
terem a dupla vista e o que chamas visão.”
450. A dupla vista é suscetível de
desenvolver-se pelo exercício? “Sim, do trabalho sempre resulta o
progresso e a dissipação do véu que encobre as coisas.” a) — Esta
faculdade tem qualquer ligação com a organização física?
“Incontestavelmente, o organismo influi para a sua existência. Há
organismos que lhe são refratários.”
451. Por que é que a segunda vista parece
hereditária em algumas famílias? “Por semelhança da organização, que se
transmite como as outras qualidades físicas. Depois, a faculdade se
desenvolve por uma espécie de educação, que também se transmite de um a
outro.”
452. É exato que certas circunstâncias
desenvolvem a segunda vista? “A moléstia, a proximidade do perigo, uma
grande comoção podem desenvolvê-la. O corpo, às vezes, vem a achar-se
num estado especial que faculta ao Espírito ver o que não podeis ver com
os olhos carnais.” Nas épocas de crises e de calamidades, as grandes
emoções, todas as causas, enfim, de superexcitarão do moral provocam não
raro o desenvolvimento da dupla vista. Parece que a Providência, quando
um perigo nos ameaça, nos dá o meio de conjurá-lo. Todas as seitas e
partidos perseguidos oferecem múltiplos exemplos desse fato.
453. As pessoas dotadas de dupla vista
sempre têm consciência de que a possuem? “Nem sempre. Consideram isso
coisa perfeitamente natural e muitos crêem que, se cada um observasse o
que se passa consigo, todos verificariam que são como eles.”
454. Poder-se-ia atribuir a uma espécie
de segunda vista a perspicácia de algumas pessoas que, sem nada
apresentarem de extraordinário, apreciam as coisas com mais precisão do
que outras? “É sempre a alma a irradiar mais livremente e a apreciar
melhor do que sob o véu da matéria.” a) — Pode esta faculdade, em alguns
casos, dar a presciência das coisas? “Pode. Também dá os
pressentimentos, pois que muitos são os graus em que ela existe, sendo
possível que num mesmo indivíduo exista em todos os graus, ou em alguns
somente.”
RESUMO TEÓRICO DO SONAMBULISMO, DO ÊXTASE E DA DUPLA VISTA
455. Os fenômenos do sonambulismo natural
se produzem espontaneamente e independem de qualquer causa exterior
conhecida. Mas, em certas pessoas dotadas de especial organização, podem
ser provocados artificialmente, pela ação do agente magnético. O estado
que se designa pelo nome de sonambulismo magnético apenas difere do
sonambulismo natural em que um é provocado, enquanto o outro é
espontâneo. O sonambulismo natural constitui fato notório, que ninguém
mais se lembra de pôr em dúvida, não obstante o aspecto maravilhoso dos
fenômenos a que dá lugar. Por que seria então mais extraordinário ou
irracional o sonambulismo magnético? Apenas por produzir-se
artificialmente, como tantas outras coisas? Os charlatães o exploram,
dizem. Razão demais para que não lhes seja deixado nas mãos. Quando a
Ciência se houver apropriado dele, muito menos crédito terão os
charlatães junto às massas populares. Enquanto isso não se verifica,
como o sonambulismo natural ou artificial é um fato, e como contra fatos
não há raciocínio possível, vai ele ganhando terreno, apesar da má
vontade de alguns, no seio da própria Ciência, onde penetra por uma
imensidade de portinhas, em vez de entrar pela porta larga. Quando lá
estiver totalmente, terão que lhe conceder direito de cidade. Para o
Espiritismo, o sonambulismo é mais do que um fenômeno psicológico, é uma
luz projetada sobre a psicologia. É aí que se pode estudar a alma,
porque é onde esta se mostra a descoberto. Ora, um dos fenômenos que a
caracterizam é o da clarividência independente dos órgãos ordinários da
vista. Fundam-se os que contestam este fato em que o sonâmbulo nem
sempre vê, e à vontade do experimentador, como com os olhos. Será de
admirar que difiram os efeitos, quando diferentes são os meios? Será
racional que se pretenda obter os mesmos efeitos, quando há e quando não
há o instrumento? A alma tem suas propriedades, como os olhos têm as
suas. Cumpre julgá-las em si mesmas e não por analogia. De uma causa
única se originam a clarividência do sonâmbulo magnético e a do
sonâmbulo natural. É um atributo da alma, uma faculdade inerente a todas
as partes do ser incorpóreo que existe em nós e cujos limites não são
outros senão os assinados à própria alma. O sonâmbulo vê em todos os
lugares aonde sua alma possa transportar-se, qualquer que seja a
longitude. No caso de visão a distância, o sonâmbulo não vê as coisas de
onde está o seu corpo, como por meio de um telescópio. Vê-as presentes,
como se se achasse no lugar onde elas existem, porque sua alma, em
realidade, lá está. Por isso é que seu corpo fica como que aniquilado e
privado de sensação, até que a alma volte a habitá-lo novamente. Essa
separação parcial da alma e do corpo constitui um estado anormal,
suscetível de duração mais ou menos longa, porém não indefinida. Daí a
fadiga que o corpo experimenta após certo tempo, mormente quando aquela
se entrega a um trabalho ativo. A vista da alma ou do Espírito não é
circunscrita e não tem sede determinada. Eis por que os sonâmbulos não
lhe podem marcar órgão especial. Veem porque veem, sem saberem o motivo
nem o modo, uma vez que, para eles, na condição de Espíritos, a vista
carece de foco próprio. Se se reportam ao corpo, esse foco lhes parece
estar nos centros onde maior é a atividade vital, principalmente no
cérebro, na região do epigástrio, ou no órgão que considerem o ponto de
ligação mais forte entre o Espírito e o corpo. O poder da lucidez
sonambúlica não é ilimitado. O Espírito, mesmo quando completamente
livre, tem restringidos seus conhecimentos e faculdades, conforme ao
grau de perfeição que haja alcançado. Ainda mais restringidos os tem
quando ligado à matéria, a cuja influência está sujeito. É o que motiva
não ser universal, nem infalível, a clarividência sonambúlica. E tanto
menos se pode contar com a sua infalibilidade, quanto mais desviada seja
do fim visado pela natureza e transformada em objeto de curiosidade e
de experimentação. No estado de desprendimento em que fica colocado, o
Espírito do sonâmbulo entra em comunicação mais fácil com os outros
Espíritos encarnados, ou não encarnados, comunicação que se estabelece
pelo contato dos fluidos, que compõem os períspiritos e servem de
transmissão ao pensamento, como o fio elétrico. O sonâmbulo não precisa,
portanto, que se lhe exprimam os pensamentos por meio da palavra
articulada. Ele os sente e adivinha. É o que o torna eminentemente
impressionável e sujeito às influências da atmosfera moral que o
envolva. Essa também a razão por que uma assistência muito numerosa e a
presença de curiosos mais ou menos malevolentes lhe prejudicam de modo
essencial o desenvolvimento das faculdades que, por assim dizer, se
contraem, só se desdobrando com toda a liberdade num meio íntimo ou
simpático. A presença de pessoas mal-intencionadas ou antipáticas lhe
produz efeito idêntico ao do contato da mão na sensitiva. O sonâmbulo vê
ao mesmo tempo o seu próprio Espírito e o seu corpo, os quais
constituem, por assim dizer, dois seres que lhe representam a dupla
existência corpórea e espiritual, existências que, entretanto, se
confundem, mediante os laços que as unem. Nem sempre o sonâmbulo se
apercebe de tal situação e essa dualidade faz que muitas vezes fale de
si, como se falasse de outra pessoa. É que ora é o ser corpóreo que fala
ao ser espiritual, ora é este que fala àquele. Em cada uma de suas
existências corporais, o Espírito adquire um acréscimo de conhecimentos e
de experiência. Esquece-os parcialmente, quando encarnado em matéria
por demais grosseira, porém deles se recorda como Espírito. Assim é que
certos sonâmbulos revelam conhecimentos acima do grau da instrução que
possuem e mesmo superiores às suas aparentes capacidades intelectuais.
Portanto, da inferioridade intelectual e científica do sonâmbulo, quando
desperto, nada se pode inferir com relação aos conhecimentos que
porventura revele no estado de lucidez. Conforme as circunstâncias e o
fim que se tenha em vista, ele os pode haurir da sua própria
experiência, da sua clarividência relativa às coisas presentes, ou dos
conselhos que receba de outros Espíritos. Mas, podendo o seu próprio
Espírito ser mais ou menos adiantado, possível lhe é dizer coisas mais
ou menos certas. Pelos fenômenos do sonambulismo, quer natural, quer
magnético, a Providência nos dá a prova irrecusável da existência e da
independência da alma e nos faz assistir ao sublime espetáculo da sua
emancipação. Abre-nos, dessa maneira, o livro do nosso destino. Quando o
sonâmbulo descreve o que se passa a distância, é evidente que vê, mas
não com os olhos do corpo. Vê-se a si mesmo e se sente transportado ao
lugar onde vê o que descreve. Lá se acha, pois, alguma coisa dele e, não
podendo essa alguma coisa ser o seu corpo, necessariamente é sua alma,
ou Espírito. Enquanto o homem se perde nas sutilezas de uma metafísica
abstrata e ininteligível, em busca das causas da nossa existência moral,
Deus cotidianamente nos põe sob os olhos e ao alcance da mão os mais
simples e patentes meios de estudarmos a psicologia experimental. O
êxtase é o estado em que a independência da alma, com relação ao corpo,
se manifesta de modo mais sensível e se torna, de certa forma, palpável.
No sonho e no sonambulismo, o Espírito anda em giro pelos mundos
terrestres. No êxtase, penetra em um mundo desconhecido, o dos Espíritos
etéreos, com os quais entra em comunicação, sem que, todavia, lhe seja
lícito ultrapassar certos limites, porque, se os transpusesse,
totalmente se partiriam os laços que o prendem ao corpo. Cerca-o então
resplendente e desusado fulgor, inebriam-no harmonias que na Terra se
desconhecem, indefinível bem-estar o invade: goza antecipadamente da
beatitude celeste e bem se pode dizer que pousa um pé no limiar da
eternidade. No estado de êxtase, o aniquilamento do corpo é quase
completo. Fica-lhe somente, pode-se dizer, a vida orgânica. Sente-se que
a alma se lhe acha presa unicamente por um fio, que mais um pequenino
esforço quebraria sem remissão. Nesse estado, desaparecem todos os
pensamentos terrestres, cedendo lugar ao sentimento apurado, que
constitui a essência mesma do nosso ser imaterial. Inteiramente entregue
a tão sublime contemplação, o extático encara a vida apenas como
paragem momentânea. Considera os bens e os males, as alegrias grosseiras
e as misérias deste mundo quais incidentes fúteis de uma viagem, cujo
termo tem a dita de avistar. Dá-se com os extáticos o que se dá com os
sonâmbulos: mais ou menos perfeita podem ter a lucidez e o Espírito mais
ou menos apto a conhecer e compreender as coisas, conforme seja mais ou
menos elevado. Muitas vezes, porém, há neles mais excitação do que
verdadeira lucidez, ou, melhor, muitas vezes a exaltação lhes prejudica a
lucidez. Daí o serem, freqüentemente, suas revelações um misto de
verdades e erros, de coisas grandiosas e coisas absurdas, até ridículas.
Dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza, quando o indivíduo
não sabe reprimi-la, Espíritos inferiores costumam aproveitar-se para
dominar o extático, tomando, com tal intuito, aos seus olhos, aparências
que mais o aferram às idéias que nutre no estado de vigília. Há nisso
um escolho, mas nem todos são assim. Cabe-nos tudo julgar friamente e
pesar-lhes as revelações na balança da razão. A emancipação da alma se
verifica às vezes no estado de vigília e produz o fenômeno conhecido
pelo nome de segunda vista ou dupla vista, que é a faculdade graças à
qual quem a possui vê, ouve e sente além dos limites dos sentidos
humanos. Percebe o que exista até onde estende a alma a sua ação. Vê,
por assim dizer, através da vista ordinária e como por uma espécie de
miragem. No momento em que o fenômeno da segunda vista se produz, o
estado físico do indivíduo se acha sensivelmente modificado. O olhar
apresenta alguma coisa de vago. Ele olha sem ver. Toda a sua fisionomia
reflete uma como exaltação. Nota-se que os órgãos visuais se conservam
alheios ao fenômeno, pelo fato de a visão persistir, malgrado à oclusão
dos olhos. Aos dotados desta faculdade ela se afigura tão natural, como a
que todos temos de ver. Consideram-na um atributo de seus próprios
seres, que em nada lhes parecem excepcionais. De ordinário, o
esquecimento se segue a essa lucidez passageira, cuja lembrança,
tornando-se cada vez mais vaga, acaba por desaparecer, como a de um
sonho. O poder da vista dupla varia, indo desde a sensação confusa até a
percepção clara e nítida das coisas presentes ou ausentes. Quando
rudimentar, confere a certas pessoas o tato, a perspicácia, uma certa
segurança nos atos, a que se pode dar o qualificativo de precisão de
golpe de vista moral. Um pouco desenvolvida, desperta os
pressentimentos. Mais desenvolvida mostra os acontecimentos que deram ou
estão para dar-se. O sonambulismo natural e artificial, o êxtase e a
dupla vista são efeitos vários, ou de modalidades diversas, de uma mesma
causa. Esses fenômenos, como os sonhos, estão na ordem da natureza. Tal
a razão por que hão existido em todos os tempos. A História mostra que
foram sempre conhecidos e até explorados desde a mais remota antiguidade
e neles se nos depara a explicação de uma imensidade de fatos que os
preconceitos fizeram fossem tidos por sobrenaturais.
CAPÍTULO I X
Da intervenção dos Espíritos no mundo corporal
• Faculdade, que têm os Espíritos, de penetrar os nossos pensamentos 4
• Influência oculta dos Espíritos em nossos pensamentos e atos • Possessos • Convulsionários
• Afeição que os Espíritos votam a certas pessoas
• Anjos-de-guarda. Espíritos protetores, familiares ou simpáticos
• Pressentimentos
• Influência dos Espíritos nos acontecimentos da vida
• Ação dos Espíritos nos fenômenos da Natureza
• Os Espíritos durante os combates
• Pactos
• Poder oculto. Talismãs. Feiticeiros
• Bênçãos e maldições
FACULDADE, QUE TÊM OS ESPÍRITOS, DE PENETRAR OS NOSSOS PENSAMENTOS
456. Veem os Espíritos tudo o que
fazemos? “Podem ver, pois que constantemente vos rodeiam. Cada um,
porém, só vê aquilo a que dá atenção. Não se ocupam com o que lhes é
indiferente.”
457. Podem os Espíritos conhecer os
nossos mais secretos pensamentos? “Muitas vezes chegam a conhecer o que
desejaríeis ocultar de vós mesmos. Nem atos, nem pensamentos se lhes
podem dissimular.” a) — Assim, mais fácil nos seria ocultar de uma
pessoa viva qualquer coisa, do que a esconder dessa mesma pessoa depois
de morta? “Certamente. Quando vos julgais muito ocultos, é comum terdes
ao vosso lado uma multidão de Espíritos que vos observam.”
458. Que pensam de nós os Espíritos que
nos cercam e observam? “Depende. Os levianos riem das pequenas partidas
que vos pregam e zombam das vossas impaciências. Os Espíritos sérios se
condoem dos vossos reveses e procuram ajudar-vos.”
INFLUÊNCIA OCULTA DOS ESPÍRITOS EM NOSSOS PENSAMENTOS E ATOS
459. Influem os Espíritos em nossos
pensamentos e em nossos atos? “Muito mais do que imaginais. Influem a
tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem.”
460. De par com os pensamentos que nos
são próprios, outros haverá que nos sejam sugeridos? “Vossa alma é um
Espírito que pensa. Não ignorais que, frequentemente, muitos pensamentos
vos acodem a um tempo sobre o mesmo assunto e, não raro, contrários uns
aos outros. Pois bem! No conjunto deles, estão sempre de mistura os
vossos com os nossos. Daí a incerteza em que vos vedes. É que tendes em
vós duas idéias a se combaterem.”
461. Como havemos de distinguir os
pensamentos que nos são próprios dos que nos são sugeridos? “Quando um
pensamento vos é sugerido, tendes a impressão de que alguém vos fala.
Geralmente, os pensamentos próprios são os que acodem em primeiro lugar.
Afinal, não vos é de grande interesse estabelecer essa distinção.
Muitas vezes, é útil que não saibais fazê-la. Não a fazendo, obra o
homem com mais liberdade. Se se decide pelo bem, é voluntariamente que o
pratica; se toma o mau caminho, maior será a sua responsabilidade.”
462. É sempre de dentro de si mesmos que
os homens inteligentes e de gênio tiram suas idéias? Algumas vezes, elas
lhes vêm do seu próprio Espírito, porém, de outras muitas, lhes são
sugeridas por Espíritos que os julgam capazes de compreendê-las e dignos
de vulgarizá-las. Quando tais homens não as acham em si mesmos, apelam
para a inspiração. Fazem assim, sem o suspeitarem, uma verdadeira
evocação.” Se fora útil que pudéssemos distinguir claramente os nossos
pensamentos próprios dos que nos são sugeridos, Deus nos houvera
proporcionado os meios de o conseguirmos, como nos concedeu o de
diferençarmos o dia da noite. Quando uma coisa se conserva imprecisa, é
que convém assim aconteça.
463. Diz-se comumente ser sempre bom o
primeiro impulso. É exato? “Pode ser bom ou mau, conforme a natureza do
Espírito encarnado. É sempre bom naquele que atende às boas
inspirações.”
464. Como distinguirmos se um pensamento
sugerido procede de um bom Espírito ou de um Espírito mau? “Estudai o
caso. Os bons Espíritos só para o bem aconselham. Compete-vos
discernir.”
465. Com que fim os Espíritos imperfeitos
nos induzem ao mal? “Para que sofrais como eles sofrem.” a) — E isso
lhes diminui os sofrimentos? “Não; mas fazem-no por inveja, por não
poderem suportar que haja seres felizes.” b) — De que natureza é o
sofrimento que procuram infligir aos outros? “Os que resultam de ser de
ordem inferior a criatura e de estar afastada de Deus.”
466. Por que permite Deus que Espíritos
nos excitem ao mal? “Os Espíritos imperfeitos são instrumentos próprios a
pôr em prova a fé e a constância dos homens na prática do bem. Como
Espírito que és, tens que progredir na ciência do infinito. Daí o
passares pelas provas do mal, para chegares ao bem. A nossa missão
consiste em te colocarmos no bom caminho. Desde que sobre ti atuam
influências más, é que as atrais, desejando o mal; porquanto os
Espíritos inferiores correm a te auxiliar no mal, logo que desejes
praticá-lo. Só quando queiras o mal, podem eles ajudar-te para a prática
do mal. Se fores propenso ao assassínio, terás em torno de ti uma nuvem
de Espíritos a te alimentarem no íntimo esse pendor. Mas, outros também
te cercarão, esforçando-se por te influenciarem para o bem, o que
restabelece o equilíbrio da balança e te deixa senhor dos teus atos.” É
assim que Deus confia à nossa consciência a escolha do caminho que
devamos seguir e a liberdade de ceder a uma ou outra das influências
contrárias que se exercem sobre nós.
467. Pode o homem eximir-se da influência
dos Espíritos que procuram arrastá-lo ao mal? “Pode, visto que tais
Espíritos só se apegam aos que, pelos seus desejos, os chamam, ou aos
que, pelos seus pensamentos, os atraem.”
468. Renunciam às suas tentativas os
Espíritos cuja influência a vontade do homem repele? “Que querias que
fizessem? Quando nada conseguem, abandonam o campo. Entretanto, ficam à
espreita de um momento propício, como o gato que tocaia o rato.”
469. Por que meio podemos neutralizar a
influência dos maus Espíritos? “Praticando o bem e pondo em Deus toda a
vossa confiança, repelireis a influência dos Espíritos inferiores e
aniquilareis o império que desejem ter sobre vós. Guardai- -vos de
atender às sugestões dos Espíritos que vos suscitam maus pensamentos,
que sopram a discórdia entre vós outros e que vos insuflam as paixões
más. Desconfiai especialmente dos que vos exaltam o orgulho, pois que
esses vos assaltam pelo lado fraco. Essa a razão por que Jesus, na
oração dominical, vos ensinou a dizer: “Senhor! não nos deixes cair em
tentação, mas livra-nos do mal”.
470. Os Espíritos, que ao mal procuram
induzir-nos e que põem assim em prova a nossa firmeza no bem, procedem
desse modo cumprindo missão? E, se assim é, cabe-lhes alguma
responsabilidade? “A nenhum Espírito é dada a missão de praticar o mal.
Aquele que o faz fá-lo por conta própria, sujeitando-se, portanto, às
consequências. Pode Deus permitir-lhe que assim proceda, para vos
experimentar; nunca, porém, lhe determina tal procedimento. Compete-vos,
pois, repeli-lo.”
471. Quando experimentamos uma sensação
de angústia, de ansiedade indefinível, ou de íntima satisfação, sem que
lhe conheçamos a causa, devemos atribuí-la unicamente a uma disposição
física? “É quase sempre efeito das comunicações em que inconscientemente
entrais com os Espíritos, ou da que com eles tivestes durante o sono.”
472. Os Espíritos que procuram atrair-nos
para o mal se limitam a aproveitar as circunstâncias em que nos
achamos, ou podem também criá-las? “Aproveitam as circunstâncias
ocorrentes, mas também costumam criá-las, impelindo-vos, mau grado
vosso, para aquilo que cobiçais. Assim, por exemplo, encontra um homem,
no seu caminho, certa quantia. Não penses tenham sido os Espíritos que a
trouxeram para ali. Mas, eles podem inspirar ao homem a idéia de tomar
aquela direção e sugerir-lhe depois a de se apoderar da importância
achada, enquanto outros lhe sugerem a de restituir o dinheiro ao seu
legítimo dono. O mesmo se dá com relação a todas as demais tentações.”
POSSESSOS
473. Pode um Espírito tomar
temporariamente o invólucro corporal de uma pessoa viva, isto é,
introduzir-se num corpo animado e obrar em lugar do outro que se acha
encarnado neste corpo? “O Espírito não entra em um corpo como entras
numa casa. Identifica-se com um Espírito encarnado, cujos defeitos e
qualidades sejam os mesmos que os seus, a fim de obrar conjuntamente com
ele. Mas, o encarnado é sempre quem atua, conforme quer, sobre a
matéria de que se acha revestido. Um Espírito não pode substituir-se ao
que está encarnado, por isso que este terá que permanecer ligado ao seu
corpo até ao termo fixado para sua existência material.”
474. Desde que não há possessão
propriamente dita, isto é, coabitação de dois Espíritos no mesmo corpo,
pode a alma ficar na dependência de outro Espírito, de modo a se achar
subjugada ou obsidiada ao ponto de a sua vontade vir a achar-se, de
certa maneira, paralisada? “Sem dúvida e são esses os verdadeiros
possessos. Mas, é preciso saibas que essa dominação não se efetua nunca
sem que aquele que a sofre o consinta, quer por sua fraqueza, quer por
desejá-la. Muitos epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico
que de exorcismos, têm sido tomados por possessos.” O vocábulo
possesso, na sua acepção vulgar, supõe a existência de demônios, isto é,
de uma categoria de seres maus por natureza, e a coabitação de um
desses seres com a alma de um indivíduo, no seu corpo. Pois que, nesse
sentido, não há demônios e que dois Espíritos não podem habitar
simultaneamente o mesmo corpo, não há possessos na conformidade da idéia
a que esta palavra se acha associada. O termo possesso só se deve
admitir como exprimindo a dependência absoluta em que uma alma pode
achar-se com relação a Espíritos imperfeitos que a subjuguem.
475. Pode alguém por si mesmo afastar os
maus Espíritos e libertar-se da dominação deles? “Sempre é possível, a
quem quer que seja, subtrair-se a um jugo, desde que com vontade firme o
queira.”
476. Mas, não pode acontecer que a
fascinação exercida pelo mau Espírito seja de tal ordem que o subjugado
não a perceba? Sendo assim, poderá uma terceira pessoa fazer que cesse a
sujeição da outra? E, nesse caso, qual deve ser a condição dessa
terceira pessoa? “Sendo ela um homem de bem, a sua vontade poderá ter
eficácia, desde que apele para o concurso dos bons Espíritos, porque,
quanto mais digna for a pessoa, tanto maior poder terá sobre os
Espíritos imperfeitos, para afastá-los, e sobre os bons, para os atrair.
Todavia, nada poderá, se o que estiver subjugado não lhe prestar o seu
concurso. Há pessoas a quem agrada uma dependência que lhes lisonjeia os
gostos e os desejos. Qualquer, porém, que seja o caso, aquele que não
tiver puro o coração nenhuma influência exercerá. Os bons Espíritos não
lhe atendem ao chamado e os maus não o temem.”
477. As fórmulas de exorcismo têm
qualquer eficácia sobre os maus Espíritos? “Não. Estes últimos riem e se
obstinam, quando veem alguém tomar isso a sério.”
478. Pessoas há, animadas de boas
intenções e que, nada obstante, não deixam de ser obsidiadas. Qual,
então, o melhor meio de nos livrarmos dos Espíritos obsessores?
“Cansar-lhes a paciência, nenhum valor lhes dar às sugestões,
mostrar-lhes que perdem o tempo. Em vendo que nada conseguem,
afastam-se.”
479. A prece é meio eficiente para a
cura da obsessão? “A prece é em tudo um poderoso auxílio. Mas, crede
que não basta que alguém murmure algumas palavras, para que obtenha o
que deseja. Deus assiste os que obram, não os que se limitam a pedir. É,
pois, indispensável que o obsidiado faça, por sua parte, o que se torne
necessário para destruir em si mesmo a causa da atração dos maus
Espíritos.”
480. Que se deve pensar da expulsão dos
demônios, mencionada no Evangelho? “Depende da interpretação que se lhe
dê. Se chamais demônio ao mau Espírito que subjugue um indivíduo, desde
que se lhe destrua a influência, ele terá sido verdadeiramente expulso.
Se ao demônio atribuirdes a causa de uma enfermidade, quando a houverdes
curado direis com acerto que expulsastes o demônio. Uma coisa pode ser
verdadeira ou falsa, conforme o sentido que empresteis às palavras. As
maiores verdades estão sujeitas a parecer absurdos, uma vez que se
atenda apenas à forma, ou que se considere como realidade a alegoria.
Compreendei bem isto e não o esqueçais nunca, pois que se presta a uma
aplicação geral.”
CONVULSIONÁRIOS
481. Desempenham os Espíritos algum
papel nos fenômenos que se dão com os indivíduos chamados
convulsionários? “Sim e muito importante, bem como o magnetismo, que é a
causa originária de tais fenômenos. O charlatanismo, porém, os tem
amiúde explorado e exagerado, de sorte a lançá-los ao ridículo.” a) — De
que natureza são, em geral, os Espíritos que concorrem para a produção
desta espécie de fenômenos? “Pouco elevada. Supondes que Espíritos
superiores se deleitem com tais coisas?”
482. Como é que sucede estender-se
subitamente a toda uma população o estado anormal dos convulsionários e
dos que sofrem de crises nervosas? “Efeito de simpatia. As disposições
morais se comunicam mui facilmente, em certos casos. Não és tão alheio
aos efeitos magnéticos que não compreendas isto e a parte que alguns
Espíritos naturalmente tomam no fato, por simpatia com os que os
provocam.” Entre as singulares faculdades que se notam nos
convulsionários, algumas facilmente se reconhecem, de que numerosos
exemplos oferecem o sonambulismo e o magnetismo, tais como, além de
outras, a insensibilidade física, a leitura do pensamento, a transmissão
das dores, por simpatia, etc. Não há, pois, duvidar de que aqueles em
quem tais crises se manifestam estejam numa espécie de sonambulismo
desperto, provocado pela influência que exercem uns sobre os outros.
Eles são ao mesmo tempo magnetizadores e magnetizados,
inconscientemente.
483. Qual a causa da insensibilidade
física que se observa em alguns convulsionários, assim como em outros
indivíduos submetidos às mais atrozes torturas? “Em alguns é,
exclusivamente, efeito do magnetismo, que atua sobre o sistema nervoso,
do mesmo modo que certas substâncias. Em outros, a exaltação do
pensamento embota a sensibilidade. Dir-se-ia que nestes a vida se
retirou do corpo, para se concentrar toda no Espírito. Não sabeis que,
quando o Espírito está vivamente preocupado com uma coisa, o corpo nada
sente, nada vê e nada ouve?” A exaltação fanática e o entusiasmo hão
proporcionado, em casos de suplícios, múltiplos exemplos de uma calma e
de um sangue frio que não seriam capazes de triunfar de uma dor aguda,
senão admitindo-se que a sensibilidade se acha neutralizada, como por
efeito de um anestésico. Sabe-se que, no ardor da batalha, combatentes
há que não se apercebem de que estão gravemente feridos, ao passo que,
em circunstâncias ordinárias, uma simples arranhadura os poria trêmulos.
Visto que esses fenômenos dependem de uma causa física e da ação de
certos Espíritos, lícito se torna perguntar como há podido uma
autoridade pública fazê-los cessar em alguns casos. Simples a razão.
Meramente secundária é aqui a ação dos Espíritos, que nada mais fazem do
que aproveitar-se de uma disposição natural. A autoridade não suprimiu
essa disposição, mas a causa que a entretinha e exaltava. De ativa que
era, passou esta a ser latente. E a autoridade teve razão para assim
proceder, porque do fato resultava abuso e escândalo. Sabe-se, demais,
que semelhante intervenção nenhum poder absolutamente tem, quando a ação
dos Espíritos é direta e espontânea.
AFEIÇÃO QUE OS ESPÍRITOS VOTAM A CERTAS PESSOAS
484. Os Espíritos se afeiçoam de
preferência a certas pessoas? “Os bons Espíritos simpatizam com os
homens de bem, ou suscetíveis de se melhorarem. Os Espíritos inferiores
com os homens viciosos, ou que podem tornar-se tais. Daí suas afeições,
como consequência da conformidade dos sentimentos.”
485. É exclusivamente moral a afeição que
os Espíritos votam a certas pessoas? “A verdadeira afeição nada tem de
carnal; mas, quando um Espírito se apega a uma pessoa, nem sempre o faz
só por afeição. À estima que essa pessoa lhe inspira pode agregar-se uma
reminiscência das paixões humanas.”
486. Interessam-se os Espíritos pelas
nossas desgraças e pela nossa prosperidade? Afligem-se os que nos querem
bem com os males que padecemos durante a vida? “Os bons Espíritos fazem
todo o bem que lhes é possível e se sentem ditosos com as vossas
alegrias. Afligem-se com os vossos males, quando os não suportais com
resignação, porque nenhum benefício então tirais deles,
assemelhando-vos, em tais casos, ao doente que rejeita a beberagem
amarga que o há de curar.”
487. Dentre os nossos males, de que
natureza são os de que mais se afligem os Espíritos por nossa causa?
Serão os males físicos ou os morais? “O vosso egoísmo e a dureza dos
vossos corações. Daí decorre tudo o mais. Riem-se de todos esses males
imaginários que nascem do orgulho e da ambição. Rejubilam com os que
redundam na abreviação do tempo das vossas provas.” Sabendo ser
transitória a vida corporal e que as tribulações que lhe são inerentes
constituem meios de alcançarmos melhor estado, os Espíritos mais se
afligem pelos nossos males devidos a causas de ordem moral, do que pelos
nossos sofrimentos físicos, todos passageiros. Pouco se incomodam com
as desgraças que apenas atingem as nossas idéias mundanas, tal qual
fazemos com as mágoas pueris das crianças. Vendo nas amarguras da vida
um meio de nos adiantarmos, os Espíritos as consideram como a crise
ocasional de que resultará a salvação do doente. Compadecem-se dos
nossos sofrimentos, como nos compadecemos dos de um amigo. Porém,
enxergando as coisas de um ponto de vista mais justo, os apreciam de um
modo diverso do nosso. Então, ao passo que os bons nos levantam o ânimo
no interesse do nosso futuro, os outros nos impelem ao desespero,
objetivando comprometer-nos.
488. Os parentes e amigos, que nos
precederam na outra vida, maior simpatia nos votam do que os Espíritos
que nos são estranhos? “Sem dúvida e quase sempre vos protegem como
Espíritos, de acordo com o poder de que dispõem.” a) — São sensíveis à
afeição que lhes conservamos? “Muito sensíveis, mas esquecem-se dos que
os olvidam.”
ANJOS-DE-GUARDA. ESPÍRITOS PROTETORES, FAMILIARES OU SIMPÁTICOS
489. Há Espíritos que se liguem
particularmente a um indivíduo para protegê-lo? “Há o irmão espiritual, o
que chamais o bom Espírito ou o bom gênio.”
490. Que se deve entender por anjo de guarda ou anjo guardião? “O Espírito protetor, pertencente a uma ordem elevada.”
491. Qual a missão do Espírito protetor?
“A de um pai com relação aos filhos; a de guiar o seu protegido pela
senda do bem, auxiliá-lo com seus conselhos, consolá-lo nas suas
aflições, levantar-lhe o ânimo nas provas da vida.”
492. O Espírito protetor se dedica ao
indivíduo desde o seu nascimento? “Desde o nascimento até a morte e
muitas vezes o acompanha na vida espírita, depois da morte, e mesmo
através de muitas existências corpóreas, que mais não são do que fases
curtíssimas da vida do Espírito.”
493. É voluntária ou obrigatória a missão
do Espírito protetor? “O Espírito fica obrigado a vos assistir, uma vez
que aceitou esse encargo. Cabe-lhe, porém, o direito de escolher seres
que lhe sejam simpáticos. Para alguns, é um prazer; para outros, missão
ou dever.” a) — Dedicando-se a uma pessoa, renuncia o Espírito a
proteger outros indivíduos? “Não; mas protege-os menos exclusivamente.”
494. O Espírito protetor fica fatalmente
preso à criatura confiada à sua guarda? “Frequentemente sucede que
alguns Espíritos deixam suas posições de protetores para desempenhar
diversas missões. Mas, nesse caso, outros os substituem.”
495. Poderá dar-se que o Espírito
protetor abandone o seu protegido, por se lhe mostrar este rebelde aos
conselhos? “Afasta-se, quando vê que seus conselhos são inúteis e que
mais forte é, no seu protegido, a decisão de submeter-se à influência
dos Espíritos inferiores. Mas, não o abandona completamente e sempre se
faz ouvir. É então o homem quem tapa os ouvidos. O protetor volta desde
que este o chame. “É uma doutrina, esta, dos anjos guardiães, que, pelo
seu encanto e doçura, devera converter os mais incrédulos”. Não vos
parece grandemente consoladora a idéia de terdes sempre junto de vós
seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar,
a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e
dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos liguem na
Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí
os colocou e, aí permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém
penosa missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos
cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na
solidão, estais separados desses amigos a quem não podeis ver, mas cujo
brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo que lhes ouve os
ponderados conselhos. “Ah! se conhecêsseis bem esta verdade! Quanto vos
ajudaria nos momentos de crise! Quanto vos livraria dos maus Espíritos!
Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo
constrangido a vos observar: ‘Não te aconselhei isto? Entretanto, não o
fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz
ecoar na tua consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto,
seguir os conselhos da mentira!’ Oh! interrogai os vossos anjos
guardiães; estabelecei entre eles e vós essa terna intimidade que reina
entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que
eles têm o olhar de Deus e não podeis enganá-los. Pensai no futuro;
procurai adiantar-vos na vida presente. Assim fazendo, encurtareis
vossas provas e mais felizes tornareis as vossas existências. Vamos,
homens, coragem! De uma vez por todas, lançai para longe todos os
preconceitos e idéias preconcebidas. Entrai na nova senda que diante dos
passos se vos abre. Caminhai! Tendes guias, segui-os, que a meta não
vos pode faltar, porquanto essa meta é o próprio Deus. “Aos que
considerem impossível que Espíritos verdadeiramente elevados se
consagrem a tarefa tão laboriosa e de todos os instantes, diremos que
nós vos influenciamos as almas, estando embora muitos milhões de léguas
distantes de vós. O espaço, para nós, nada é, e, não obstante viverem
noutro mundo, os nossos Espíritos conservam suas ligações com os vossos.
Gozamos de qualidades que não podeis compreender, mas ficai certos de
que Deus não nos impôs tarefa superior às nossas forças e de que não vos
deixou sós na Terra, sem amigos e sem amparo. Cada anjo de guarda tem o
seu protegido, pelo qual vela, como o pai pelo filho. Alegra-se, quando
o vê no bom caminho; sofre, quando ele lhe despreza os conselhos. “Não
receeis fatigar-nos com as vossas perguntas. Ao contrário, procurai
estar sempre em relação conosco. Sereis assim mais fortes e mais
felizes. São essas comunicações de cada um com o seu Espírito familiar
que fazem sejam médiuns todos os homens, médiuns ignorados hoje, mas que
se manifestarão mais tarde e se espalharão qual oceano sem margens,
levando de roldão a incredulidade e a ignorância. Homens doutos, instruí
os vossos semelhantes; homens de talento, educai os vossos irmãos. Não
imaginais que obra fazeis desse modo: a do Cristo, a que Deus vos impõe.
Para que vos outorgou Deus a inteligência e o saber, senão para os
repartirdes com os vossos irmãos, senão para fazerdes que se adiantem
pela senda que conduz à bem-aventurança, à felicidade eterna? Nada tem
de surpreendente a doutrina dos anjos guardiães, a velarem pelos seus
protegidos, malgrado à distância que medeia entre os mundos. É, ao
contrário, grandiosa e sublime. Não vemos na Terra o pai velar pelo
filho, ainda que de muito longe, e auxiliá-lo com seus conselhos
correspondendo-se com ele? Que motivo de espanto haverá, então, em que
os Espíritos possam, de um outro mundo, guiar os que, habitantes da
Terra, eles tomaram sob sua proteção, uma vez que, para eles, a
distância que vai de um mundo a outro é menor do que a que, neste
planeta, separa os continentes? Não dispõem, além disso, do fluido
universal, que entrelaça todos os mundos, tornando-os solidários;
veículo imenso da transmissão dos pensamentos, como o ar é, para nós, o
da transmissão do som?
496. O Espírito, que abandona o seu
protegido, que deixa de lhe fazer bem, pode fazer-lhe mal? “Os bons
Espíritos nunca fazem mal. Deixam que o façam aqueles que lhes tomam o
lugar. Costumais então lançar à conta da sorte as desgraças que vos
acabrunham, quando só as sofreis por culpa vossa.”
497. Pode um Espírito protetor deixar o
seu protegido à mercê de outro Espírito que lhe queira fazer mal? “Os
maus Espíritos se unem para neutralizar a ação dos bons. Mas, se o
quiser, o protegido dará toda a força ao seu protetor. Pode acontecer
que o bom Espírito encontre alhures uma boa vontade a ser auxiliada.
Aplica-se então em auxiliá-la, aguardando que seu protegido lhe volte.”
498. Será por não poder lutar contra Espíritos malévolos que um Espírito
protetor deixa que seu protegido se transvie na vida? “Não é porque não
possa, mas porque não quer. E não quer, porque das provas sai o seu
protegido mais instruído e perfeito. Assiste-o sempre com seus
conselhos, dando-os por meio dos bons pensamentos que lhe inspira, porém
que quase nunca são atendidos. A fraqueza, o descuido ou o orgulho do
homem são exclusivamente o que empresta força aos maus Espíritos, cujo
poder todo advém do fato de lhes não opordes resistência.”
498. Será por não poder lutar contra
Espíritos malévolos que um Espírito protetor deixa que seu protegido se
transvie na vida? “Não é porque não possa, mas porque não quer. E não
quer, porque das provas sai o seu protegido mais instruído e perfeito.
Assiste-o sempre com seus conselhos, dando-os por meio dos bons
pensamentos que lhe inspira, porém que quase nunca são atendidos. A
fraqueza, o descuido ou o orgulho do homem são exclusivamente o que
empresta for- ça aos maus Espíritos, cujo poder todo advém do fato de
lhes não opordes resistência.”
499. O Espírito protetor está
constantemente com o seu protegido? Não haverá alguma circunstância em
que, sem abandoná-lo, ele o perca de vista? “Há circunstâncias em que
não é necessário esteja o Espírito protetor junto do seu protegido.”
500. Momentos haverá em que o Espírito
deixe de precisar, de então por diante, do seu protetor? “Sim, quando
ele atinge o ponto de poder guiar-se a si mesmo, como sucede ao
estudante, para o qual um momento chega em que não mais precisa de
mestre. Isso, porém, não se dá na Terra.”
501. Por que é oculta a ação dos
Espíritos sobre a nossa existência e por que, quando nos protegem, não o
fazem de modo ostensivo? “Se vos fosse dado contar sempre com a ação
deles, não obraríeis por vós mesmos e o vosso Espírito não progrediria”.
Para que este possa adiantar-se, precisa de experiência, adquirindo-a
frequentemente à sua custa. É necessário que exercite suas forças, sem o
que, seria como a criança a quem não consentem que ande sozinha. A ação
dos Espíritos que vos querem bem é sempre regulada de maneira que não
vos tolha o livre-arbítrio, porquanto, se não tivésseis
responsabilidade, não avançaríeis na senda que vos há de conduzir a
Deus. Não vendo quem o ampara, o homem se confia às suas próprias
forças. Sobre ele, entretanto, vela o seu guia e, de tempos a tempos,
lhe brada, advertindo-o do perigo.”
502. O Espírito protetor, que consegue
trazer ao bom caminho o seu protegido, lucra algum bem para si?
“Constitui isso um mérito que lhe é levado em conta, seja para seu
progresso, seja para sua felicidade. Sente-se ditoso quando vê
bem-sucedidos os seus esforços, o que representa, para ele, um triunfo,
como triunfo é, para um preceptor, os bons êxitos do seu educando.” a) —
É responsável pelo mau resultado de seus esforços? “Não, pois que fez o
que de si dependia.”
503. Sofre o Espírito protetor
quando vê que seu protegido segue mau caminho, não obstante os avisos
que dele recebe? Não há aí uma causa de turbação da sua felicidade?
“Compungem-no os erros do seu protegido, a quem lastima. Tal aflição,
porém, não tem analogia com as angústias da paternidade terrena, porque
ele sabe que há remédio para o mal e que o que não se faz hoje, amanhã
se fará”.
504. Poderemos sempre saber o nome do
Espírito nosso protetor, ou anjo-de-guarda? “Como quereis saber nomes
para vós inexistentes? Supondes que Espíritos só há os que conheceis?”
a) — Como então o podemos invocar, se o não conhecemos? “Dai-lhe o nome
que quiserdes, o de Espírito superior que vos inspire simpatia ou
veneração. O vosso protetor acudirá ao apelo que com esse nome lhe
dirigirdes, visto que todos os bons Espíritos são irmãos e se assistem
mutuamente.”
505. Os protetores, que dão nomes
conhecidos, sempre são, realmente, os Espíritos das personalidades que
tiveram esses nomes? “Não. Muitas vezes, os que os dão são Espíritos
simpáticos aos que de tais nomes usaram na Terra e, a mando destes,
respondem ao vosso chamamento. Fazeis questão de nomes; eles tomam um
que vos inspire confiança. Quando não podeis desempenhar pessoalmente
determinada missão, não costumais mandar que outro, por quem respondeis
como por vós mesmos, obre em vosso nome?”
506. Na vida espírita, reconheceremos o
Espírito nosso protetor? “Decerto, pois não é raro que o tenhais
conhecido antes de encarnardes.”
507. Pertencem todos os Espíritos
protetores à classe dos Espíritos elevados? Podem contar-se entre os de
classe média? Um pai, por exemplo, pode tornar-se o Espírito protetor de
seu filho? “Pode, mas a proteção pressupõe certo grau de elevação e um
poder ou uma virtude a mais, concedidos por Deus. O pai, que protege seu
filho, também pode ser assistido por um Espírito mais elevado.”
508. Os Espíritos que se achavam em boas
condições ao deixarem a Terra, sempre podem proteger os que lhes são
caros e que lhes sobrevivem? “Mais ou menos restrito é o poder de que
desfrutam. A situação em que se encontram nem sempre lhes permite
inteira liberdade de ação.”
509. Quando em estado de selvageria ou de
inferioridade moral, têm os homens, igualmente, seus Espíritos
protetores? E, assim sendo, esses Espíritos são de ordem tão elevada
quanto a dos Espíritos protetores de homens muito adiantados? “Todo
homem tem um Espírito que por ele vela, mas as missões são relativas ao
fim que visam. Não dais a uma criança, que está aprendendo a ler, um
professor de filosofia. O progresso do Espírito familiar guarda relação
com o do Espírito protegido. Tendo um Espírito que vela por vós, podeis
tornar-vos, a vosso turno, o protetor de outro que vos seja inferior e
os progressos que este realize, com o auxílio que lhe dispensardes,
contribuirão para o vosso adiantamento. Deus não exige do Espírito mais
do que comportem a sua natureza e o grau de elevação a que já chegou.”
510. Quando o pai, que vela pelo filho,
reencarna, continua a velar por ele? Isso é mais difícil. Contudo, de
certo modo o faz, pedindo, num instante de desprendimento, a um Espírito
simpático que o assista nessa missão. Demais, os Espíritos só aceitam
missões que possam desempenhar até ao fim. “Encarnado, mormente em mundo
onde a existência é material, o Espírito se acha muito sujeito ao corpo
para poder dedicar-se inteiramente a outro Espírito, isto é, para poder
assisti-lo pessoalmente. Tanto assim que os que ainda se não elevaram
bastante são também assistidos por outros, que lhes estão acima, de tal
sorte que, se por qualquer circunstância um vem a faltar, outro lhe
supre a falta.”
511. A cada indivíduo achar-se-á ligado,
além do Espírito protetor, um mau Espírito, com o fim de impeli-lo ao
erro e de lhe proporcionar ocasiões de lutar entre o bem e o mal?
“Ligado, não é o termo. É certo que os maus Espíritos procuram desviar
do bom caminho o homem, quando se lhes depara ocasião. Sempre, porém,
que um deles se liga a um indivíduo, fá-lo por si mesmo, porque conta
ser atendido. Há então luta entre o bom e o mau, vencendo aquele por
quem o homem se deixe influenciar.”
512. Podemos ter muitos Espíritos
protetores? “Todo homem conta sempre Espíritos, mais ou menos elevados,
que com ele simpatizam, que lhe dedicam afeto e por ele se interessam,
como também tem junto de si outros que o assistem no mal.”
513. Os Espíritos que conosco simpatizam
atuam em cumprimento de missão? “Não raro, desempenham missão
temporária; porém, as mais das vezes, são apenas atraídos pela
identidade de pensamentos e sentimentos, assim para o bem como para o
mal”. a) — Parece lícito inferir-se daí que os Espíritos a quem somos
simpáticos podem ser bons ou maus, não? “Sim, qualquer que seja o seu
caráter, o homem sempre encontra Espíritos que com ele simpatizem.”
514. Os Espíritos familiares são os
mesmos a quem chamamos Espíritos simpáticos ou Espíritos protetores? “Há
gradações na proteção e na simpatia. Dai-lhes os nomes que quiserdes. O
Espírito familiar é antes o amigo da casa.” Das explicações acima e das
observações feitas sobre a natureza dos Espíritos que se afeiçoam ao
homem, pode-se deduzir o seguinte: O Espírito protetor, anjo de guarda,
ou bom gênio é o que tem por missão acompanhar o homem na vida e
ajudá-lo a progredir. É sempre de natureza superior, com relação ao
protegido. Os Espíritos familiares se ligam a certas pessoas por laços
mais ou menos duráveis, com o fim de lhes serem úteis, dentro dos
limites do poder, quase sempre muito restrito, de que dispõem. São bons,
porém muitas vezes pouco adiantados e mesmo um tanto levianos.
Ocupam-se de boa mente com as particularidades da vida íntima e só atuam
por ordem ou com permissão dos Espíritos protetores. Os Espíritos
simpáticos são os que se sentem atraídos para o nosso lado por afeições
particulares e ainda por uma certa semelhança de gostos e de
sentimentos, tanto para o bem como para o mal. De ordinário, a duração
de suas relações se acha subordinada às circunstâncias. O mau gênio é um
Espírito imperfeito ou perverso, que se liga ao homem para desviá-lo do
bem. Obra, porém, por impulso próprio e não no desempenho de missão. A
tenacidade da sua ação está em relação direta com a maior ou menor
facilidade de acesso que encontre por parte do homem, que goza sempre da
liberdade de escutar-lhe a voz ou de lhe cerrar os ouvidos.
515. Que se há de pensar dessas pessoas
que se ligam a certos indivíduos para levá-los à perdição, ou para
guiá-los pelo bom caminho? “Efetivamente, certas pessoas exercem sobre
outras uma espécie de fascinação que parece irresistível. Quando isso se
dá no sentido do mal, são maus Espíritos, de que outros Espíritos
também maus se servem para subjugá-las. Deus permite que tal coisa
ocorra para vos experimentar.”
516. Poderiam os nossos bom e mau gênios
encarnar, a fim de mais de perto nos acompanharem na vida? “Isso às
vezes se dá. Porém, o que mais frequentemente se verifica é encarregarem
dessa missão outros Espíritos encarnados que lhes são simpáticos.”
517. Haverá Espíritos que se liguem a uma
família inteira para protegê-la? “Alguns Espíritos se ligam aos membros
de uma determinada família, que vivem juntos e unidos pela afeição;
mas, não acrediteis em Espíritos protetores do orgulho das raças.”
518. Assim como são atraídos, pela
simpatia, para certos indivíduos, são-no igualmente os Espíritos, por
motivos particulares, para as reuniões de indivíduos? “Os Espíritos
preferem estar no meio dos que se lhes assemelham. Acham-se aí mais à
vontade e mais certos de serem ouvidos. É pelas suas tendências que o
homem atrai os Espíritos e isso quer esteja só, quer faça parte de um
todo coletivo, como uma sociedade, uma cidade, ou um povo. Portanto, as
sociedades, as cidades e os povos são, de acordo com as paixões e o
caráter neles predominante, assistido por Espíritos mais ou menos
elevados. Os Espíritos imperfeitos se afastam dos que os repelem.
Segue-se que o aperfeiçoamento moral das coletividades, como o dos
indivíduos, tende a afastar os maus Espíritos e a atrair os bons, que
estimulam e alimentam nelas o sentimento do bem, como outros lhes podem
insuflar as paixões grosseiras.”
519. As aglomerações de indivíduos, como
as sociedades, as cidades, as nações, têm Espíritos protetores
especiais? “Têm, pela razão de que esses agregados são individualidades
coletivas que, caminhando para um objetivo comum, precisam de uma
direção superior.”
520. Os Espíritos protetores das
coletividades são de natureza mais elevada do que os que se ligam aos
indivíduos? “Tudo é relativo ao grau de adiantamento, quer se trate de
coletividades, quer de indivíduos.”
521. Podem certos Espíritos auxiliar o
progresso das artes, protegendo os que às artes se dedicam? “Há
Espíritos protetores especiais e que assistem os que os invocam, quando
dignos dessa assistência. Que queres, porém, que façam com os que julgam
ser o que não são? Não lhes cabe fazer que os cegos vejam, nem que os
surdos ouçam.” Os antigos fizeram, desses Espíritos, divindades
especiais. As Musas não eram senão a personificação alegórica dos
Espíritos protetores das ciências e das artes, como os deuses Lares e
Penates simbolizavam os Espíritos protetores da família. Também
modernamente, as artes, as diferentes indústrias, as cidades, os países
têm seus patronos, que mais não são do que Espíritos superiores, sob
várias designações. Tendo todo homem Espíritos que com ele simpatizam,
claro é que, nos corpos coletivos, a generalidade dos Espíritos que lhes
votam simpatia está em proporção com a generalidade dos indivíduos; que
os Espíritos estranhos são atraídos para essas coletividades pela
identidade dos gostos e das idéias; em suma, que esses agregados de
pessoas, tanto quanto os indivíduos, são mais ou menos bem assistidos e
influenciados, de acordo com a natureza dos sentimentos dominantes entre
os elementos que os compõem. Nos povos, determinam a atração dos
Espíritos os costumes, os hábitos, o caráter dominante e as leis, as
leis sobretudo, porque o caráter de uma nação se reflete nas suas leis.
Fazendo reinar em seu seio a justiça, os homens combatem a influência
dos maus Espíritos. Onde quer que as leis consagrem coisas injustas,
contrárias à Humanidade, os bons Espíritos ficam em minoria e a
multidão, que aflui, dos maus mantém a nação aferrada às suas idéias e
paralisa as boas influências parciais, que ficam perdidas no conjunto,
como insuladas espigas entre espinheiros. Estudando-se os costumes dos
povos ou de qualquer reunião de homens, facilmente se forma idéia da
população oculta que se lhes imiscui no modo de pensar e nos atos.
PRESSENTIMENTOS
522. O pressentimento é sempre um aviso
do Espírito protetor? “É o conselho íntimo e oculto de um Espírito que
vos quer bem. Também está na intuição da escolha que se haja feito. É a
voz do instinto. Antes de encarnar, tem o Espírito conhecimento das
fases principais de sua existência, isto é, do gênero das provas a que
se submete. Tendo estas caráter assinalado, ele conserva, no seu foro
íntimo, uma espécie de impressão de tais provas e esta impressão, que é a
voz do instinto, fazendo-se ouvir quando lhe chega o momento de
sofrê-las, se torna pressentimento.”
523. Acontecendo que os pressentimentos e
a voz do instinto são sempre algum tanto vagos, que devemos fazer, na
incerteza em que ficamos? “Quando te achares na incerteza, invoca o teu
bom Espírito, ou ora a Deus, soberano senhor de todos, e ele te enviará
um de seus mensageiros, um de nós.”
524. Os avisos dos Espíritos protetores
objetivam unicamente o nosso procedimento moral, ou também o proceder
que devamos adotar nos assuntos da vida particular? “Tudo. Eles se
esforçam para que vivais o melhor possível. Mas, quase sempre tapais os
ouvidos aos avisos salutares e vos tornais desgraçados por culpa vossa.”
Os Espíritos protetores nos ajudam com seus conselhos, mediante a voz
da consciência que fazem ressoar em nosso íntimo. Como, porém, nem
sempre ligamos a isso a devida importância, outros conselhos mais
diretos eles nos dão, servindo-se das pessoas que nos cercam. Examine
cada um as diversas circunstâncias felizes ou infelizes de sua vida e
verá que em muitas ocasiões recebeu conselhos de que se não aproveitou e
que lhe teriam poupado muitos desgostos, se os houvera escutado.
INFLUÊNCIA DOS ESPÍRITOS NOS ACONTECIMENTOS DA VIDA
525. Exercem os Espíritos alguma
influência nos acontecimentos da vida? “Certamente, pois que vos
aconselham.” a) — Exercem essa influência por outra forma que não apenas
pelos pensamentos que sugerem, isto é, têm ação direta sobre o
cumprimento das coisas? “Sim, mas nunca atuam fora das leis da
Natureza.” Imaginamos erradamente que aos Espíritos só caiba manifestar
sua ação por fenômenos extraordinários. Quiséramos que nos viessem
auxiliar por meio de milagres e os figuramos sempre armados de uma
varinha mágica. Por não ser assim é que oculta nos parece a intervenção
que têm nas coisas deste mundo e muito natural o que se executa com o
concurso deles. Assim é que, provocando, por exemplo, o encontro de duas
pessoas, que suporão encontrar-se por acaso; inspirando a alguém a
idéia de passar por determinado lugar; chamando-lhe a atenção para certo
ponto, se disso resulta o que tenham em vista, eles obram de tal
maneira que o homem, crente de que obedece a um impulso próprio,
conserva sempre o seu livre-arbítrio.
526. Tendo, como têm, ação sobre a
matéria, podem os Espíritos provocar certos efeitos, com o objetivo de
que se dê um acontecimento? Por exemplo: um homem tem que morrer; sobe
uma escada, a escada se quebra e ele morre da queda. Foram os Espíritos
que quebraram a escada, para que o destino daquele homem se cumprisse?
“É exato que os Espíritos têm ação sobre a matéria, mas para cumprimento
das leis da Natureza, não para as derrogar, fazendo que, em dado
momento, ocorra um sucesso inesperado e em contrário àquelas leis. No
exemplo que figuraste, a escada se quebrou porque se achava podre, ou
por não ser bastante forte para suportar o peso de um homem. Se era
destino daquele homem perecer de tal maneira, os Espíritos lhe
inspirariam a idéia de subir a escada em questão, que teria de
quebrar-se com o seu peso, resultando-lhe daí a morte por um efeito
natural e sem que para isso fosse mister a produção de um milagre.”
527. Tomemos outro exemplo, em que não
entre a matéria em seu estado natural. Um homem tem que morrer fulminado
pelo raio. Refugia-se debaixo de uma árvore. Estala o raio e o mata.
Poderá dar-se tenham sido os Espíritos que provocaram a produção do raio
e que o dirigiram para o homem? “Dá-se o mesmo que anteriormente. O
raio caiu sobre aquela árvore em tal momento, porque estava nas leis da
Natureza que assim acontecesse. Não foi encaminhado para a árvore, por
se achar debaixo dela o homem. A este, sim, foi inspirada a idéia de se
abrigar debaixo de uma árvore sobre a qual cairia o raio, porquanto a
árvore não deixaria de ser atingida, só por não lhe estar debaixo da
fronde o homem.”
528. No caso de uma pessoa
mal-intencionada disparar sobre outra um projetil que apenas lhe passe
perto sem atingir, poderá ter sucedido que um Espírito bondoso haja
desviado o projetil? “Se o indivíduo alvejado não tem que perecer desse
modo, o Espírito bondoso lhe inspirará a idéia de se desviar, ou então
poderá ofuscar o que empunha a arma, de sorte a fazê-lo apontar mal,
porquanto, uma vez disparada a arma, o projetil segue a linha que tem de
percorrer.”
529. Que se deve pensar das balas
encantadas, de que falam algumas lendas e que fatalmente atingem o alvo?
“Pura imaginação. O homem gosta do maravilhoso e não se contenta com as
maravilhas da Natureza.” a) — Podem os Espíritos que dirigem os
acontecimentos terrenos ter obstada sua ação por Espíritos que queiram o
contrário? “O que Deus quer se executa. Se houver demora na execução,
ou lhe surjam obstáculos, é porque ele assim o quis.”
530. Não podem os Espíritos levianos e
zombeteiros criar pequenos embaraços à realização dos nossos projetos e
transtornar as nossas previsões? Serão eles, numa palavra, os causadores
do que chamamos pequenas misérias da vida humana? “Eles se comprazem em
vos causar aborrecimentos que representam para vós provas destinadas a
exercitar a vossa paciência. Cansam-se, porém, quando veem que nada
conseguem. Entretanto, não seria justo, nem acertado, imputar-lhes todas
as decepções que experimentais e de que sois os principais culpados
pela vossa irreflexão. Fica certo de que, se a tua louça se quebra, é
mais por desazo teu do que por culpa dos Espíritos.” a) — Destes, os que
provocam contrariedades obram impelidos por animosidade pessoal, ou
assim procedem contra qualquer, sem motivo determinado, por pura
malícia? “Por uma e outra coisa. Às vezes os que assim vos molestam são
inimigos que granjeastes nesta ou em precedente existência. Doutras
vezes, nenhum motivo há.”
531. Extingue-se-lhes com a vida corpórea
a malevolência dos seres que nos fizeram mal na Terra? “Muitas vezes
reconhecem a injustiça com que procederam e o mal que causaram. Mas,
também, não é raro que continuem a perseguir-vos, cheios de animosidade,
se Deus o permitir, por ainda vos experimentar.” a) — Pode-se pôr termo
a isso? Por que meio? “Podeis. Orando por eles e lhes retribuindo o mal
com o bem, acabarão compreendendo a injustiça do proceder deles.
Demais, se souberdes colocar-vos acima de suas maquinações,
deixar-vos-ão, por verificarem que nada lucram.” A experiência demonstra
que alguns Espíritos continuam em outra existência a exercer as
vinganças que vinham tomando e que assim, cedo ou tarde, o homem paga o
mal que tenha feito a outrem.
532. Têm os Espíritos o poder de afastar
de certas pessoas os males e de favorecê-las com a prosperidade? De
todo, não; porquanto, há males que estão nos decretos da Providência.
Amenizam-vos, porém, as dores, dando-vos paciência e resignação. “Ficai
igualmente sabendo que de vós depende muitas vezes poupar-vos aos males,
ou, quando menos, atenuá-los. A inteligência, Deus vo-la outorgou para
que dela vos sirvais e é principalmente por meio da vossa inteligência
que os Espíritos vos auxiliam, sugerindo-vos idéias propícias ao vosso
bem. Mas, não assistem senão os que sabem assistir-se a si mesmos. Esse o
sentido destas palavras: Buscai e achareis, batei e se vos abrirá.
“Sabei ainda que nem sempre é um mal o que vos parece sê-lo.
Frequentemente, do que considerais um mal sairá um bem muito maior.
Quase nunca compreendeis isso, porque só atentais no momento presente ou
na vossa própria pessoa.
533. Podem os Espíritos fazer que
obtenham riquezas os que lhes pedem que assim aconteça? “Algumas vezes,
como prova. Quase sempre, porém, recusam, como se recusa à criança a
satisfação de um pedido inconsiderado. a) — São os bons ou os maus
Espíritos que concedem esses favores? Uns e outros. Depende da intenção.
As mais das vezes, entretanto, os que os concedem são os Espíritos que
vos querem arrastar para o mal e que encontram meio fácil de o
conseguirem, facilitando-vos os gozos que a riqueza proporciona.
534. Será por influência de algum
Espírito que, fatalmente, a realização dos nossos projetos parece
encontrar obstáculos? “Algumas vezes é isso efeito da ação dos
Espíritos; muito mais vezes, porém, é que andais errados na elaboração e
na execução dos vossos projetos. Muito influem nesses casos a posição e
o caráter do indivíduo. Se vos obstinais em ir por um caminho que não
deveis seguir, os Espíritos nenhuma culpa têm dos vossos insucessos. Vós
mesmos vos constituís em vossos maus gênios.”
535. Quando algo de venturoso nos sucede é
ao Espírito nosso protetor que devemos agradecê-lo? “Agradecei
primeiramente a Deus, sem cuja permissão nada se faz; depois, aos bons
Espíritos que foram os agentes da sua vontade.” a) — Que sucederia se
nos esquecêssemos de agradecer? “O que sucede aos ingratos.” b) — No
entanto, pessoas há que não pedem nem agradecem e às quais tudo sai bem!
“Assim é, de fato, mas importa ver o fim. Pagarão bem caro essa
felicidade de que não são merecedoras, pois quanto mais houverem
recebido, tanto maiores contas terão que prestar.”
AÇÃO DOS ESPÍRITOS NOS FENÔMENOS DA NATUREZA
536. São devidos a causas fortuitas, ou,
ao contrário, têm todos um fim providencial, os grandes fenômenos da
Natureza, os que se consideram como perturbação dos elementos? “Tudo tem
uma razão de ser e nada acontece sem a permissão de Deus.”
a) — Objetivam sempre o homem esses
fenômenos? “Às vezes têm, como imediata razão de ser, o homem. Na
maioria dos casos, entretanto, têm por único motivo o restabelecimento
do equilíbrio e da harmonia das forças físicas da Natureza.” b) —
Concebemos perfeitamente que a vontade de Deus seja a causa primária,
nisto como em tudo; porém, sabendo que os Espíritos exercem ação sobre a
matéria e que são os agentes da vontade de Deus, perguntamos se alguns
dentre eles não exercerão certa influência sobre os elementos para os
agitar, acalmar ou dirigir? “Mas, evidentemente. Nem poderia ser de
outro modo. Deus não exerce ação direta sobre a matéria. Ele encontra
agentes dedicados em todos os graus da escala dos mundos.”
537. A mitologia dos antigos se fundava
inteiramente em idéias espíritas, com a única diferença de que
consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou
esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados
dos ventos, outros do raio, outros de presidir ao fenômeno da
vegetação, etc. Semelhante crença é totalmente destituída de fundamento?
“Tão pouco destituída é de fundamento, que ainda está muito aquém da
verdade.” a) — Poderá então haver Espíritos que habitem o interior da
Terra e presidam aos fenômenos geológicos? “Tais Espíritos não habitam
positivamente a Terra. Presidem aos fenômenos e os dirigem de acordo com
as atribuições que têm. Dia virá em que recebereis a explicação de
todos esses fenômenos e os compreendereis melhor.”
538. Formam categoria especial no mundo
espírita os Espíritos que presidem aos fenômenos da Natureza? Serão
seres à parte, ou Espíritos que foram encarnados como nós? “Que foram ou
que o serão.” a) — Pertencem esses Espíritos às ordens superiores ou às
inferiores da hierarquia espírita? “Isso é conforme seja mais ou menos
material, mais ou menos inteligente o papel que desempenhem. Uns mandam,
outros executam. Os que executam coisas materiais são sempre de ordem
inferior, assim entre os Espíritos, como entre os homens.”
539. A produção de certos fenômenos, das
tempestades, por exemplo, é obra de um só Espírito, ou muitos se reúnem,
formando grandes massas, para produzi-los? “Reúnem-se em massas
inumeráveis.”
540. Os Espíritos que exercem ação nos
fenômenos da Natureza operam com conhecimento de causa, usando do
livre-arbítrio, ou por efeito de instintivo ou irrefletido impulso? Uns
sim, outros não. Estabeleçamos uma comparação. Considera essas miríades
de animais que, pouco a pouco, fazem emergir do mar ilhas e
arquipélagos. Julgas que não há aí um fim providencial e que essa
transformação da superfície do globo não seja necessária à harmonia
geral? Entretanto, são animais de ínfima ordem que executam essas obras,
provendo às suas necessidades e sem suspeitarem de que são instrumentos
de Deus. Pois bem, do mesmo modo, os Espíritos mais atrasados oferecem
utilidade ao conjunto. Enquanto se ensaiam para a vida, antes que tenham
plena consciência de seus atos e estejam no gozo pleno do
livre-arbítrio, atuam em certos fenômenos, de que inconscientemente se
constituem os agentes. Primeiramente, executam. Mais tarde, quando suas
inteligências já houverem alcançado um certo desenvolvimento, ordenarão e
dirigirão as coisas do mundo material. Depois, poderão dirigir as do
mundo moral. É assim que tudo serve, que tudo se encadeia na Natureza,
desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou por ser átomo.
Admirável lei de harmonia, que o vosso acanhado espírito ainda não pode
apreender em seu conjunto!”
OS ESPÍRITOS DURANTE OS COMBATES
541. Durante uma batalha, há Espíritos
assistindo e amparando cada um dos exércitos? “Sim, e que lhes estimulam
a coragem.” Os antigos figuravam os deuses tomando o partido deste ou
daquele povo. Esses deuses eram simplesmente Espíritos representados por
alegorias.
542. Estando, numa guerra, a justiça
sempre de um dos lados, como pode haver Espíritos que tomem o partido
dos que se batem por uma causa injusta? “Bem sabeis haver Espíritos que
só se comprazem na discórdia e na destruição. Para esses, a guerra é a
guerra. A justiça da causa pouco os preocupa.”
543. Podem alguns Espíritos influenciar o
general na concepção de seus planos de campanha? “Sem dúvida alguma.
Podem influenciá-lo nesse sentido, como com relação a todas as
concepções.”
544. Poderiam maus Espíritos suscitar-lhe
planos errôneos com o fim de levá-lo à derrota? “Podem; mas, não tem
ele o livre-arbítrio? Se não tiver critério bastante para distinguir uma
idéia falsa, sofrerá as consequências e melhor faria se obedecesse, em
vez de comandar.”
545. Pode, alguma vez, o general ser
guiado por uma espécie de dupla vista, por uma visão intuitiva, que lhe
mostre de antemão o resultado de seus planos? “Isso se dá amiúde com o
homem de gênio. É o que ele chama inspiração e o que faz que obre com
uma espécie de certeza. Essa inspiração lhe vem dos Espíritos que o
dirigem, os quais se aproveitam das faculdades de que o veem dotado.”
546. No tumulto dos combates, que se
passa com os Espíritos dos que sucumbem? Continuam, após a morte, a
interessar-se pela batalha? “Alguns continuam a interessar-se, outros se
afastam.” Dá-se, nos combates, o que ocorre em todos os casos de morte
violenta: no primeiro momento, o Espírito fica surpreendido e como que
atordoado. Julga não estar morto. Parece-lhe que ainda toma parte na
ação. Só pouco a pouco a realidade lhe surge.
547. Após a morte, os Espíritos, que como
vivos se guerreavam, continuam a considerar-se inimigos e se conservam
encarniçados uns contra os outros?
Nessas ocasiões, o Espírito nunca está
calmo. Pode acontecer que nos primeiros instantes depois da morte ainda
odeie o seu inimigo e mesmo o persiga. Quando, porém, se lhe restabelece
a serenidade nas idéias, vê que nenhum fundamento há mais para sua
animosidade. Contudo, não é impossível que dela guarde vestígios mais ou
menos fortes, conforme o seu caráter) — Continua a ouvir o rumor da
batalha? Perfeitamente.
548. O Espírito que, como espectador,
assiste calmamente a um combate observa o ato de separar-se a alma do
corpo? Como é que esse fenômeno se lhe apresenta à observação? “Raras
são as mortes verdadeiramente instantâneas. Na maioria dos casos, o
Espírito, cujo corpo acaba de ser mortalmente ferido, não tem
consciência imediata desse fato. Somente quando ele começa a reconhecer a
nova condição em que se acha, é que os assistentes podem distingui-lo, a
mover-se ao lado do cadáver. Parece isso tão natural, que nenhum efeito
desagradável lhe causa a vista do corpo morto. Tendo-se a vida toda
concentrado no Espírito, só ele prende a atenção dos outros. É com ele
que estes conversam, ou a ele é que fazem determinações.”
PACTOS
549. Algo de verdade haverá nos pactos
com os maus Espíritos? “Não, não há pactos. Há, porém, naturezas más que
simpatizam com os maus Espíritos. Por exemplo: queres atormentar o teu
vizinho e não sabes como hás de fazer. Chamas então por Espíritos
inferiores que, como tu, só querem o mal e que, para te ajudarem, exigem
que também os sirvas em seus maus desígnios. Mas, não se segue que o
teu vizinho não possa livrar-se deles por meio de uma conjuração oposta e
pela ação da sua vontade. Aquele que intenta praticar uma ação má, pelo
simples fato de alimentar essa intenção, chama em seu auxílio maus
Espíritos, aos quais fica então obrigado a servir, porque dele também
precisam esses Espíritos, para o mal que queiram fazer. Nisto apenas é
que consiste o pacto.” O fato de o homem ficar, às vezes, na dependência
dos Espí- ritos inferiores nasce de se entregar aos maus pensamentos
que estes lhe sugerem e não de estipulações quaisquer que com eles faça.
O pacto, no sentido vulgar do termo, é uma alegoria representativa da
simpatia existente entre um indivíduo de natureza má e Espíritos
malfazejos.
550. Qual o sentido das lendas
fantásticas em que figuram indivíduos que teriam vendido suas almas a
Satanás para obterem certos favores? “Todas as fábulas encerram um
ensinamento e um sentido moral. O vosso erro consiste em tomá-las ao pé
da letra. Isso a que te referes é uma alegoria, que se pode explicar
desta maneira: aquele que chama em seu auxílio os Espíritos, para deles
obter riquezas, ou qualquer outro favor, rebela-se contra a Providência;
renuncia à missão que recebeu e às provas que lhe cumpre suportar neste
mundo. Sofrerá na vida futura as consequências desse ato. Não quer isto
dizer que sua alma fique para sempre condenada à desgraça. Mas, desde
que, em lugar de se desprender da matéria, nela cada vez se enterra
mais, não terá, no mundo dos Espíritos, a satisfação de que haja gozado
na Terra, até que tenha resgatado a sua falta, por meio de novas provas,
talvez maiores e mais penosas. Coloca-se, por amor dos gozos materiais,
na dependência dos Espíritos impuros. Estabelece-se assim, tacitamente,
entre estes e o delinquente, um pacto que o leva à sua perda, mas que
lhe será sempre fácil romper, se o quiser firmemente, granjeando a
assistência dos bons Espíritos.”
PODER OCULTO. TALISMÃS. FEITICEIROS
551. Pode um homem mau, com o auxílio de
um mau Espírito que lhe seja dedicado, fazer mal ao seu próximo? “Não;
Deus não o permitiria.”
552. Que se deve pensar da crença no
poder, que certas pessoas teriam, de enfeitiçar? “Algumas pessoas
dispõem de grande força magnética, de que podem fazer mau uso, se maus
forem seus próprios Espíritos, caso em que possível se torna serem
secundados por outros Espíritos maus. Não creias, porém, num pretenso
poder mágico, que só existe na imaginação de criaturas supersticiosas,
ignorantes das verdadeiras leis da Natureza. Os fatos que citam, como
prova da existência desse poder, são fatos naturais, mal observados e
sobretudo mal compreendidos.”
553. Que efeito podem produzir as
fórmulas e práticas mediante as quais pessoas há que pretendem dispor do
concurso dos Espíritos? “O efeito de torná-las ridículas, se procedem
de boa-fé. No caso contrário, são tratantes que merecem castigo. Todas
as fórmulas são mera charlatanaria. Não há palavra sacramental nenhuma,
nenhum sinal cabalístico, nem talismã, que tenha qualquer ação sobre os
Espíritos, porquanto estes só são atraídos pelo pensamento e não pelas
coisas materiais.” a) — Mas, não é exato que alguns Espíritos têm
ditado, eles próprios, fórmulas cabalísticas? “Efetivamente, Espíritos
há que indicam sinais, palavras estranhas, ou prescrevem a prática de
atos, por meio dos quais se fazem os chamados conjuros. Mas, ficai
certos de que são Espíritos que de vós outros escarnecem e zombam da
vossa credulidade.”
554. Não pode aquele que, com ou sem
razão, confia no que chama a virtude de um talismã, atrair um Espírito,
por efeito mesmo dessa confiança, visto que, então, o que atua é o
pensamento, não passando o talismã de um sinal que apenas lhe auxilia a
concentração? “É verdade; mas, da pureza da intenção e da elevação dos
sentimentos depende a natureza do Espírito que é atraído. Ora, muito
raramente aquele que seja bastante simplório para acreditar na virtude
de um talismã deixará de colimar um fim mais material do que moral.
Qualquer, porém, que seja o caso, essa crença denuncia uma inferioridade
e uma fraqueza de idéias que favorecem a ação dos Espíritos imperfeitos
e escarninhos.”
555. Que sentido se deve dar ao
qualificativo de feiticeiro? “Aqueles a quem chamais feiticeiros são
pessoas que, quando de boa-fé, gozam de certas faculdades, como sejam a
força magnética ou a dupla vista. Então, como fazem coisas geralmente
incompreensíveis, são tidas por dotadas de um poder sobrenatural. Os
vossos sábios não têm passado muitas vezes por feiticeiros aos olhos dos
ignorantes?” O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma
imensidade de fenômenos sobre os quais a ignorância teceu um sem-
-número de fábulas, em que os fatos se apresentam exagerados pela
imaginação. O conhecimento lúcido dessas duas ciências que, a bem dizer,
formam uma única, mostrando a realidade das coisas e suas verdadeiras
causas, constitui o melhor preservativo contra as idéias supersticiosas,
porque revela o que é possível e o que é impossível, o que está nas
leis da Natureza e o que não passa de ridícula crendice.
556. Têm algumas pessoas,
verdadeiramente, o poder de curar pelo simples contato? “A força
magnética pode chegar até aí, quando secundada pela pureza dos
sentimentos e por um ardente desejo de fazer o bem, porque então os bons
Espíritos lhe vêm em auxílio. Cumpre, porém, desconfiar da maneira pela
qual contam as coisas pessoas muito crédulas e muito entusiastas,
sempre dispostas a considerar maravilhoso o que há de mais simples e
mais natural. Importa desconfiar também das narrativas interesseiras,
que costumam fazer os que exploram, em seu proveito, a credulidade
alheia.”
BÊNÇÃOS E MALDIÇÕES 557.
Podem a bênção e a maldição atrair o bem e
o mal para aquele sobre quem são lançadas? “Deus não escuta a maldição
injusta e culpado perante ele se torna o que a profere. Como temos os
dois gênios opostos, o bem e o mal, pode a maldição exercer
momentaneamente influência, mesmo sobre a matéria. Tal influência,
porém, só se verifica por vontade de Deus como aumento de prova para
aquele que é dela objeto. Demais, o que é comum é serem amaldiçoados os
maus e abençoados os bons. Jamais a bênção e a maldição podem desviar da
senda da justiça a Providência, que nunca fere o maldito, senão quando
mau, e cuja proteção não acoberta senão aquele que a merece.”
CAPÍTULO X
Das ocupações e missões dos Espíritos
558. Alguma outra coisa incumbe aos
Espíritos fazer, que não seja melhorarem-se pessoalmente? “Concorrem
para a harmonia do Universo, executando as vontades de Deus, cujos
ministros eles são. A vida espírita é uma ocupação contínua, mas que
nada tem de penosa, como a vida na Terra, porque não há a fadiga
corporal, nem as angústias das necessidades.”
559. Também desempenham função útil no
Universo os Espíritos inferiores e imperfeitos? “Todos têm deveres a
cumprir. Para a construção de um edifício, não concorre tanto o último
dos serventes de pedreiro, como o arquiteto?” (540)
560. Tem atribuições especiais cada
Espírito? “Todos temos que habitar em toda parte e adquirir o
conhecimento de todas as coisas, presidindo sucessivamente ao que se
efetua em todos os pontos do Universo. Mas, como diz o Eclesiastes, há
tempo para tudo. Assim, tal Espírito cumpre hoje neste mundo o seu
destino, tal outro cumprirá ou já cumpriu o seu, em época diversa, na
terra, na água, no ar, etc.”
561. São permanentes para cada um e estão
nas atribuições exclusivas de certas classes as funções que os
Espíritos desempenham na ordem das coisas? “Todos têm que percorrer os
diferentes graus da escala, para se aperfeiçoarem. Deus, que é justo,
não poderia ter dado a uns a ciência sem trabalho, destinando outros a
só a adquirirem com esforço.” É o que sucede entre os homens, onde
ninguém chega ao supremo grau de perfeição numa arte qualquer, sem que
tenha adquirido os conhecimentos necessários, praticando os rudimentos
dessa arte.
562. Já não tendo o que adquirir,
os Espíritos da ordem mais elevada se acham em repouso absoluto, ou
também lhes tocam ocupações? “Que quererias que fizessem na eternidade? A
ociosidade eterna seria um eterno suplício.” a) — De que natureza são
as suas ocupações? “Receber diretamente as ordens de Deus, transmiti-las
ao Universo inteiro e velar por que sejam cumpridas.”
563. São incessantes as ocupações dos
Espíritos? “Incessantes, sim, atendendo-se a que sempre ativos são os
seus pensamentos, porquanto vivem pelo pensamento. Importa, porém, não
identifiqueis as ocupações dos Espíritos com as ocupações materiais dos
homens. Essa mesma atividade lhes constitui um gozo, pela consciência
que têm de ser úteis”. a) — Concebe-se isto com relação aos bons
Espíritos. Dar-se-á, entretanto, o mesmo com os Espíritos inferiores? “A
estes cabem ocupações apropriadas à sua natureza. Confiais, porventura,
ao obreiro manual e ao ignorante trabalhos que só o homem instruído
pode executar?”
564. Haverá Espíritos que se conservem
ociosos, que em coisa alguma útil se ocupem? “Há, mas esse estado é
temporário e dependendo do desenvolvimento de suas inteligências. Há,
certamente, como há homens que só para si mesmos vivem. Pesa-lhes,
porém, essa ociosidade e, cedo ou tarde, o desejo de progredir lhes faz
necessária a atividade e felizes se sentirão por poderem tornar-se
úteis. Referimo-nos aos Espíritos que hão chegado ao ponto de terem
consciência de si mesmos e do seu livre-arbítrio; porquanto, em sua
origem, todos são quais crianças que acabam de nascer e que obram mais
por instinto que por vontade expressa.”
565. Atentam os Espíritos em nossos
trabalhos de arte e por eles se interessam? “Atentam no que prove a
elevação dos Espíritos e seus progressos.”
566. Um Espírito, que haja cultivado na
Terra uma especialidade artística, que tenha sido, por exemplo, pintor,
ou arquiteto, se interessa de preferência pelos trabalhos que
constituíram objeto de sua predileção durante a vida? “Tudo se confunde
num objetivo geral. Se for um Espírito bom, esses trabalhos o
interessarão na medida do ensejo que lhe proporcionem de auxiliar as
almas a se elevarem para Deus. Demais, esqueceis que um Espírito que
cultivou certa arte, na existência em que o conhecestes, pode ter
cultivado outra em anterior existência, pois que lhe cumpre saber tudo
para ser perfeito. Assim, conforme o grau do seu adiantamento, pode
suceder que nada seja para ele uma especialidade. Foi o que eu quis
significar, dizendo que tudo se confunde num objetivo geral. Notai ainda
o seguinte: o que, no vosso mundo atrasado, considerais sublime, não
passa de infantilidade, comparado ao que há em mundos mais adiantados.
Como pretenderíeis que os Espíritos que habitam esses mundos, onde
existem artes que desconheceis, admirem o que, aos seus olhos,
corresponde a trabalhos de colegiais? Por isso disse eu: atentam no que
demonstre progresso.” a) — Concebemos que seja assim, em se tratando de
Espíritos muito adiantados. Referimo-nos, porém, a Espíritos mais
vulgares, que ainda se não elevaram acima das idéias terrenas. “Com
relação a esses, o caso é diferente. Mais restrito é o ponto de vista
donde observam as coisas. Podem, portanto, admirar o que vos cause
admiração.”
567. Costumam os Espíritos imiscuir-se em
nossos prazeres e ocupações? “Os Espíritos vulgares, como dizes,
costumam. Esses vos rodeiam constantemente e com frequência tomam parte
muito ativa no que fazeis, de conformidade com suas naturezas. Cumpre
assim aconteça, porque, para serem os homens impelidos pelas diversas
veredas da vida, necessário é que se lhes excitem ou moderem as
paixões.” Com as coisas deste mundo os Espíritos se ocupam conformemente
ao grau de elevação ou de inferioridade em que se achem. Os Espíritos
superiores dispõem, sem dúvida, da faculdade de examiná-las nas suas
mínimas particularidades, mas só o fazem na medida em que isso seja útil
ao progresso. Unicamente os Espíritos inferiores ligam a essas coisas
uma importância relativa às reminiscências que ainda conservam e às
idéias materiais que ainda se não extinguiram neles.
568. Os Espíritos, que têm missões a
cumprir, as cumprem na erraticidade, ou encarnados? “Podem tê-las num e
noutro estado. Para certos Espíritos errantes, é uma grande ocupação.”
569. Em que consistem as missões de que
podem ser encarregados os Espíritos errantes? “São tão variadas que
impossível fora descrevê-las. Muitas há mesmo que não podeis
compreender. Os Espíritos executam as vontades de Deus e não vos é dado
penetrar-lhe todos os desígnios.” As missões dos Espíritos têm sempre
por objeto o bem. Quer como Espíritos, quer como homens, são incumbidos
de auxiliar o progresso da Humanidade, dos povos ou dos indivíduos,
dentro de um círculo de idéias mais ou menos amplas, mais ou menos
especiais e de velar pela execução de determinadas coisas. Alguns
desempenham missões mais restritas e, de certo modo, pessoais ou
inteiramente locais, como sejam assistir os enfermos, os agonizantes, os
aflitos, velar por aqueles de quem se constituíram guias e protetores,
dirigi-los, dando-lhes conselhos ou inspirando-lhes bons pensamentos.
Pode dizer-se que há tantos gêneros de missões quantas as espécies de
interesses a resguardar, assim no mundo físico, como no moral. O
Espírito se adianta conforme à maneira por que desempenha a sua tarefa.
570. Os Espíritos percebem sempre os
desígnios que lhes compete executar? “Não. Muitos há que são
instrumentos cegos. Outros, porém, sabem muito bem com que fim atuam.”
571. Só os Espíritos elevados desempenham
missões? “A importância das missões corresponde às capacidades e à
elevação do Espírito. O estafeta que leva um telegrama ao seu
destinatário também desempenha uma perfeita missão, se bem que diversa
da de um general.”
572. A missão de um Espírito lhe é
imposta, ou depende da sua vontade? “Ele a pede e ditoso se considera se
a obtém.” a) — Pode uma igual missão ser pedida por muitos Espíritos?
“Sim, é frequente apresentarem-se muitos candidatos, mas nem todos são
aceitos.”
573. Em que consiste a missão dos
Espíritos encarnados? “Em instruir os homens, em lhes auxiliar o
progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e
materiais”. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O
que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou
o que instrui. Tudo em a Natureza se encadeia. “Ao mesmo tempo em que o
Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a
execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua
missão, porque todos podem ter alguma utilidade”.
574. Qual pode ser, na Terra, a missão
das criaturas voluntariamente inúteis? “Há efetivamente pessoas que só
para si mesmas vivem e que não sabem tornar-se úteis ao que quer que
seja. São pobres seres dignos de compaixão, porquanto expiarão duramente
sua voluntária inutilidade, começando-lhes muitas vezes, já neste
mundo, o castigo, pelo aborrecimento e pelo desgosto que a vida lhes
causa. a) — Pois que lhes era facultada a escolha, por que preferiram
uma existência que nenhum proveito lhes traria? “Entre os Espíritos
também há preguiçosos que recuam diante de uma vida de labor. Deus
consente que assim procedam. Mais tarde compreenderão, à própria custa,
os inconvenientes da inutilidade a que se votaram e serão os primeiros a
pedir que se lhes conceda recuperar o tempo perdido. Pode também
acontecer que tenham escolhido uma vida útil e que hajam recuado diante
da execução da obra, deixando-se levar pelas sugestões dos Espíritos que
os induzem a permanecer na ociosidade.
575. As ocupações comuns mais nos parecem
deveres do que missões propriamente ditas. A missão, de acordo com a
idéia a que esta palavra está associada, tem um caráter menos exclusivo,
de importância sobretudo menos pessoal. Deste ponto de vista, como se
pode reconhecer que um homem tem realmente na Terra uma determinada
missão? “Pelas grandes coisas que opera, pelos progressos a cuja
realização conduz seus semelhantes.”
576. Foram predestinados a isso, antes de
nascerem, os homens que trazem uma importante missão e dela têm
conhecimento? “Algumas vezes, assim é. Quase sempre, porém, o ignoram.
Baixando à Terra, colimam um vago objetivo. Depois do nascimento e de
acordo com as circunstâncias é que suas missões se lhes desenham às
vistas. Deus os impele para a senda onde devam executar-lhe os
desígnios.”
577. Quando um homem faz alguma coisa
útil fá-la sempre em virtude da missão em que foi anteriormente
investido e a que vem predestinado, ou pode suceder que haja recebido
missão não prevista? “Nem tudo o que o homem faz resulta de missão a que
tenha sido predestinado. Amiudadas vezes é o instrumento de que se
serve um Espírito para fazer que se execute uma coisa que julga útil.
Por exemplo, entende um Espírito ser útil que se escreva um livro, que
ele próprio escreveria se estivesse encarnado. Procura então o escritor
mais apto a lhe compreender e executar o pensamento. Transmite-lhe a
idéia do livro e o dirige na execução. Ora, esse escritor não veio à
Terra com a missão de publicar tal obra. O mesmo ocorre com diversos
trabalhos artísticos e muitas descobertas. Devemos acrescentar que,
durante o sono corporal, o Espírito encarnado se comunica diretamente
com o Espírito errante, entendendo-se os dois acerca da execução.”
578. Poderá o Espírito, por própria
culpa, falir na sua missão? “Sim, se não for um Espírito superior.” a) —
Que consequências lhe advirão da sua falência? “Terá que retomar a
tarefa; essa a sua punição. Também sofrerá as conseqüências do mal que
haja causado.”
579. Pois se é de Deus que o Espírito
recebe a sua missão, como se há de compreender que Deus confie missão
importante e de interesse geral a um Espírito capaz de falir? “Não sabe
Deus se o seu general obterá a vitória ou se será vencido? Sabe-o,
crede, e seus planos, quando importantes, não se apoiam nos que hajam de
abandonar em meio a obra. Toda a questão, para vós, está no
conhecimento que Deus tem do futuro, mas que não vos é concedido.”
580. O Espírito, que encarna para
desempenhar determinada missão, tem apreensões idênticas às de outro que
o faz por provação? “Não, porque traz a experiência adquirida.”
581. Certamente desempenham missão os
homens que servem de faróis ao gênero humano, que o iluminam com a luz
do gênio. Entre eles, porém, alguns há que se enganam, que, de par com
grandes verdades, propagam grandes erros. Como se deve considerar a
missão desses homens? “Como falseadas por eles próprios. Estão abaixo da
tarefa que tomaram sobre os ombros. Contudo, mister se faz levar em
conta as circunstâncias. Os homens de gênio têm que falar de acordo com
as épocas em que vivem e, assim, um ensinamento que pareceu errôneo ou
pueril, numa época adiantada, pode ter sido o que convinha no século em
que foi divulgado.”
582. Pode-se considerar como missão a
paternidade? “É, sem contestação possível, uma verdadeira missão. É ao
mesmo tempo grandíssimo dever e que envolve, mais do que o pensa o
homem, a sua responsabilidade quanto ao futuro. Deus colocou o filho sob
a tutela dos pais, a fim de que estes o dirijam pela senda do bem, e
lhes facilitou a tarefa dando àquele uma organização débil e delicada,
que o torna propício a todas as impressões. Muitos há, no entanto, que
mais cuidam de aprumar as árvores do seu jardim e de fazê-las dar bons
frutos em abundância, do que de formar o caráter de seu filho. Se este
vier a sucumbir por culpa deles, suportarão os desgostos resultantes
dessa queda e partilharão dos sofrimentos do filho na vida futura, por
não terem feito o que lhes estava ao alcance para que ele avançasse na
estrada do bem.”
583. São responsáveis os pais pelo
transviamento de um filho que envereda pelo caminho do mal, apesar dos
cuidados que lhe dispensaram? “Não; porém, quanto piores forem as
propensões do filho, tanto mais pesada é a tarefa e tanto maior o mérito
dos pais, se conseguirem desviá-lo do mau caminho.”
a) — Se um filho se torna homem de bem,
não obstante a negligência ou os maus exemplos de seus pais, tiram estes
daí algum proveito? “Deus é justo.”
584. De que natureza será a missão do
conquistador que apenas visa satisfazer à sua ambição e que, para
alcançar esse objetivo, não vacila ante nenhuma das calamidades que vai
espalhando? “As mais das vezes não passa de um instrumento de que se
serve Deus para cumprimento de seus desígnios, representando essas
calamidades um meio de que ele se utiliza para fazer que um povo
progrida mais rapidamente.” a) — Nenhuma parte tendo na produção do bem
que dessas calamidades passageiras possa resultar, pois que visava um
fim todo pessoal, aquele que delas se constitui instrumento tirará, não
obstante, proveito desse bem? “Cada um é recompensado de acordo com as
suas obras, com o bem que intentou fazer e com a retidão de suas
intenções.” Os Espíritos encarnados têm ocupações inerentes às suas
existências corpóreas. No estado de erraticidade, ou de
desmaterialização, tais ocupações são adequadas ao grau de adiantamento
deles. Uns percorrem os mundos, se instruem e preparam para nova
encarnação. Outros, mais adiantados, se ocupam com o progresso,
dirigindo os acontecimentos e sugerindo idéias que lhe sejam propícias.
Assistem os homens de gênio que concorrem para o adiantamento da
Humanidade. Outros encarnam com determinada missão de progresso. Outros
tomam sob sua tutela os indivíduos, as famílias, as reuniões, as cidades
e os povos, dos quais se constituem os anjos guardiães, os gênios
protetores e os Espíritos familiares. Outros, finalmente, presidem aos
fenômenos da Natureza, de que se fazem os agentes diretos. Os Espíritos
vulgares se imiscuem em nossas ocupações e diversões. Os impuros ou
imperfeitos aguardam, em sofrimentos e angústias, o momento em que praza
a Deus proporcionar-lhes meios de se adiantarem. Praticam-se o mal, é
pelo despeito de ainda não poderem gozar do bem.
CAPÍTULO X I
Dos três reinos
• Os minerais e as plantas
• Os animais e o homem
• Metempsicose
OS MINERAIS E AS PLANTAS
585. Que pensais da divisão da Natureza
em três reinos, ou melhor, em duas classes: a dos seres orgânicos e a
dos inorgânicos? Segundo alguns, a espécie humana forma uma quarta
classe. Qual destas divisões é preferível? “Todas são boas, conforme o
ponto de vista. Do ponto de vista material, apenas há seres orgânicos e
inorgânicos. Do ponto de vista moral, há evidentemente quatro graus.”
Esses quatro graus apresentam, com efeito, caracteres determinados,
muito embora pareçam confundir-se nos seus limites extremos. A matéria
inerte, que constitui o reino mineral, só tem em si uma força mecânica.
As plantas, ainda que compostas de matéria inerte, são dotadas de
vitalidade. Os animais, também compostos de matéria inerte e igualmente
dotados de vitalidade, possuem, além disso, uma espécie de inteligência
instintiva, limitada, e a consciência de sua existência e de suas
individualidades. O homem, tendo tudo o que há nas plantas e nos
animais, domina todas as outras classes por uma inteligência especial,
indefinida, que lhe dá a consciência do seu futuro, a percepção das
coisas extra materiais e o conhecimento de Deus.
586. Têm as plantas consciência de que existem? “Não, pois que não pensam; só têm vida orgânica.”
587. Experimentam sensações? Sofrem
quando as mutilam? “Recebem impressões físicas que atuam sobre a
matéria, mas não têm percepções. Conseguintemente, não têm a sensação da
dor.”
588. Independe da vontade delas a força
que as atrai umas para as outras? “Certo, porquanto não pensam. É uma
força mecânica da matéria, que atua sobre a matéria, sem que elas possam
a isso opor-se.”
589. Algumas plantas, como a sensitiva e a
dionéia, por exemplo, executam movimentos que denotam grande
sensibilidade e, em certos casos, uma espécie de vontade, conforme se
observa na segunda, cujos lóbulos apanham a mosca que sobre ela pousa
para sugá-la, parecendo que urde uma armadilha com o fim de capturar e
matar aquele inseto. São dotadas essas plantas da faculdade de pensar?
Têm vontade e formam uma classe intermediária entre a Natureza vegetal e
a Natureza animal? Constituem a transição de uma para outra?
“Tudo em a Natureza é transição, por isso
mesmo que uma coisa não se assemelha a outra e, no entanto, todas se
prendem umas às outras. As plantas não pensam; por conseguinte carecem
de vontade. Nem a ostra que se abre, nem os zoófitos pensam: têm apenas
um instinto cego e natural.” O organismo humano nos proporciona exemplo
de movimentos análogos, sem participação da vontade, nas funções
digestivas e circulatórias. O piloro se contrai, ao contato de certos
corpos, para lhes negar passagem. O mesmo provavelmente se dá na
sensitiva, cujos movimentos de nenhum modo implicam a necessidade de
percepção e, ainda menos, da vontade.
590. Não haverá nas plantas, como nos
animais, um instinto de conservação, que as induza a procurar o que lhes
possa ser útil e a evitar o que lhes possa ser nocivo? “Há, se
quiserdes, uma espécie de instinto, dependendo isso da extensão que se
dê ao significado desta palavra. É, porém, um instinto puramente
mecânico. Quando, nas operações químicas, observais que dois corpos se
reúnem, é que um ao outro convém; quer dizer: é que há entre eles
afinidade. Ora, a isto não dais o nome de instinto.”
591. Nos mundos superiores, as plantas
são de natureza mais perfeita, como os outros seres? “Tudo é mais
perfeito. As plantas, porém, são sempre plantas, como os animais sempre
animais e os homens sempre homens.”
OS ANIMAIS E O HOMEM
592. Se, pelo que toca à
inteligência, comparamos o homem e os animais, parece difícil
estabelecer-se uma linha de demarcação entre aquele e estes, porquanto
alguns animais mostram, sob esse aspecto, notória superioridade sobre
certos homens. Pode essa linha de demarcação ser estabelecida de modo
preciso? “A este respeito é completo o desacordo entre os vossos
filósofos. Querem uns que o homem seja um animal e outros que o animal
seja um homem. Estão todos em erro. O homem é um ser à parte, que desce
muito baixo algumas vezes e que pode também elevar-se muito alto. Pelo
físico, é como os animais e menos bem-dotado do que muitos destes. A
Natureza lhes deu tudo o que o homem é obrigado a inventar com a sua
inteligência, para satisfação de suas necessidades e para sua
conservação. Seu corpo se destrói, como o dos animais, é certo, mas ao
seu Espírito está assinado um destino que só ele pode compreender,
porque só ele é inteiramente livre. Pobres homens, que vos rebaixais
mais do que os brutos! não sabeis distinguir-vos deles? Reconhecei o
homem pela faculdade de pensar em Deus.”
593. Poder-se-á dizer que os animais só
obram por instinto? “Ainda aí há um sistema. É verdade que na maioria
dos animais domina o instinto. Mas, não vês que muitos obram denotando
acentuada vontade? É que têm inteligência, porém limitada.” Não se
poderia negar que, além de possuírem o instinto, alguns animais praticam
atos combinados, que denunciam vontade de operar em determinado sentido
e de acordo com as circunstâncias. Há, pois, neles, uma espécie de
inteligência, mas cujo exercício quase que se circunscreve à utilização
dos meios de satisfazerem às suas necessidades físicas e de proverem à
conservação própria. Nada, porém, criam, nem melhora alguma realizam.
Qualquer que seja a arte com que executem seus trabalhos, fazem hoje o
que faziam outrora e o fazem, nem melhor, nem pior, segundo formas e
proporções constantes e invariáveis. A cria, separada dos de sua
espécie, não deixa por isso de construir o seu ninho de perfeita
conformidade com os seus maiores, sem que tenha recebido nenhum ensino. O
desenvolvimento intelectual de alguns, que se mostram suscetíveis de
certa educação, desenvolvimento, aliás, que não pode ultrapassar
acanhados limites, é devido à ação do homem sobre uma natureza maleável,
porquanto não há aí progresso que lhe seja próprio. Mesmo o progresso
que realizam pela ação do homem é efêmero e puramente individual, visto
que, entregue a si mesmo, não tarda que o animal volte a encerrar-se nos
limites que lhe traçou a Natureza.
594. Têm os animais alguma linguagem? “Se
vos referis a uma linguagem formada de sílabas e palavras, não. Meio,
porém, de se comunicarem entre si, têm. Dizem uns aos outros muito mais
coisas do que imaginais. Mas, essa mesma linguagem de que dispõem é
restrita às necessidades, como restritas também são as idéias que podem
ter.” a) — Há, entretanto, animais que carecem de voz. Esses parece que
nenhuma linguagem usam, não? “Compreendem-se por outros meios. Para vos
comunicardes reciprocamente, vós outros, homens, só dispondes da
palavra? E os mudos? Facultada lhes sendo a vida de relação, os animais
possuem meios de se prevenirem e de exprimirem as sensações que
experimentam. Pensais que os peixes não se entendem entre si? O homem
não goza do privilégio exclusivo da linguagem. Porém, a dos animais é
instintiva e circunscrita pelas suas necessidades e idéias, ao passo que
a do homem é perfectível e se presta a todas as concepções da sua
inteligência.” Efetivamente, os peixes que, como as andorinhas, emigram
em cardumes, obedientes ao guia que os conduz, devem ter meios de se
advertirem, de se entenderem e combinarem. É possível que disponham de
uma vista mais penetrante e esta lhes permita perceber os sinais que
mutuamente façam. Pode ser também que tenham na água um veículo próprio
para a transmissão de certas vibrações. Como quer que seja, o que é
incontestável é que lhes não falecem meios de se entenderem, do mesmo
modo que a todos os animais carentes de voz e que, não obstante,
trabalham em comum. Diante disso, que admiração pode causar que os
Espíritos entre si se comuniquem sem o auxílio da palavra articulada?
595. Gozam de livre-arbítrio os animais,
para a prática dos seus atos? “Os animais não são simples máquinas, como
supondes. Contudo, a liberdade de ação, de que desfrutam, é limitada
pelas suas necessidades e não se pode comparar à do homem. Sendo
muitíssimo inferiores a este, não têm os mesmos deveres que ele. A
liberdade, possuem-na restrita aos atos da vida material.”
596. Donde procede a aptidão que
certos animais denotam para imitar a linguagem do homem e por que essa
aptidão se revela mais nas aves do que no macaco, por exemplo, cuja
conformação apresenta mais analogia com a humana? “Origina-se de uma
particular conformação dos órgãos vocais, reforçada pelo instinto de
imitação. O macaco imita os gestos; algumas aves imitam a voz.”
597. Pois que os animais possuem uma
inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles
algum princípio independente da matéria? “Há e que sobrevive ao corpo.”
a) — Será esse princípio uma alma semelhante à do homem? “É também uma
alma, se quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta
palavra. É, porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a
do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e
Deus.”
598. Após a morte, conserva a alma dos
animais a sua individualidade e a consciência de si mesma? “Conserva sua
individualidade; quanto à consciência do seu eu, não. A vida
inteligente lhe permanece em estado latente.”
599. À alma dos animais é dado escolher a espécie de animal em que encarne? “Não, pois que lhe falta livre-arbítrio.”
600. Sobrevivendo ao corpo em que
habitou, a alma do animal vem a achar-se, depois da morte, num estado de
erraticidade, como a do homem? “Fica numa espécie de erraticidade, pois
que não mais se acha unida ao corpo, mas não é um Espírito errante”. O
Espírito errante é um ser que pensa e obra por sua livre vontade. De
idêntica faculdade não dispõe o dos animais. A consciência de si mesmo é
o que constitui o principal atributo do Espírito. O do animal, depois
da morte, é classifi597. Pois que os animais possuem uma inteligência
que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio
independente da matéria? “Há e que sobrevive ao corpo.” a) — Será esse
princípio uma alma semelhante à do homem? “É também uma alma, se
quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta palavra. É,
porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem
distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus.” 598.
Após a morte, conserva a alma dos animais a sua individualidade e a
consciência de si mesma? “Conserva sua individualidade; quanto à
consciência do seu eu, não. A vida inteligente lhe permanece em estado
latente.”
599. À alma dos animais é dado escolher a espécie de animal em que encarne? “Não, pois que lhe falta livre-arbítrio.”
600. Sobrevivendo ao corpo em que
habitou, a alma do animal vem a achar-se, depois da morte, num estado de
erraticidade, como a do homem? “Fica numa espécie de erraticidade, pois
que não mais se acha unida ao corpo, mas não é um Espírito errante”. O
Espírito errante é um ser que pensa e obra por sua livre vontade. De
idêntica faculdade não dispõe o dos animais. A consciência de si mesmo é
o que constitui o principal atributo do Espírito. O do animal, depois
da morte, é classificado pelos Espíritos a quem incumbe essa tarefa e
utilizado quase imediatamente. Não lhe é dado tempo de entrar em relação
com outras criaturas.
601. Os animais estão sujeitos, como o
homem, a uma lei progressiva? “Sim; e daí vem que nos mundos superiores,
onde os homens são mais adiantados, os animais também o são, dispondo
de meios mais amplos de comunicação. São sempre, porém, inferiores ao
homem e se lhe acham submetidos, tendo neles o homem servidores
inteligentes.” Nada há nisso de extraordinário. Tomemos os nossos mais
inteligentes animais, o cão, o elefante, o cavalo, e imaginemo-los
dotados de uma conformação apropriada a trabalhos manuais. Que não
fariam sob a direção do homem?
602. Os animais progridem, como o homem,
por ato da própria vontade, ou pela força das coisas? “Pela força das
coisas, razão por que não estão sujeitos à expiação.”
603. Nos mundos superiores, os animais
conhecem a Deus? “Não. Para eles o homem é um deus, como outrora os
Espíritos eram deuses para o homem.”
604. Pois que os animais, mesmo os
aperfeiçoados, existentes nos mundos superiores, são sempre inferiores
ao homem, segue-se que Deus criou seres intelectuais perpetuamente
destinados à inferioridade, o que parece em desacordo com a unidade de
vistas e de progresso que todas as suas obras revelam.
“Tudo em a Natureza se encadeia por elos
que ainda não podeis apreender. Assim, as coisas aparentemente mais
díspares têm pontos de contato que o homem, no seu estado atual, nunca
chegará a compreender. Por um esforço da inteligência poderá
entrevê-los; mas, somente quando essa inteligência estiver no máximo
grau de desenvolvimento e liberta dos preconceitos do orgulho e da
ignorância, logrará ver claro na obra de Deus. Até lá, suas muito
restritas idéias lhe farão observar as coisas por um mesquinho e
acanhado prisma. Sabei não ser possível que Deus se contradiga e que, na
Natureza, tudo se harmoniza mediante leis gerais, que por nenhum de
seus pontos deixam de corresponder à sublime sabedoria do Criador”. a) —
A inteligência é então uma propriedade comum, um ponto de contato entre
a alma dos animais e a do homem? “É, porém os animais só possuem a
inteligência da vida material. No homem, a inteligência proporciona a
vida moral.”
605. Considerando-se todos os pontos de
contato que existem entre o homem e os animais, não seria lícito pensar
que o homem possui duas almas: a alma animal e a alma espírita e que, se
esta última não existisse, só como o bruto poderia ele viver? Por
outra: que o animal é um ser semelhante ao homem, tendo de menos a alma
espírita? Dessa maneira de ver resultaria serem os bons e os maus
instintos do homem efeito da predominância de uma ou outra dessas almas?
“Não, o homem não tem duas almas. O corpo, porém, tem seus instintos,
resultantes da sensação peculiar aos órgãos. Dupla, no homem, só é a
natureza. Há nele a natureza animal e a natureza espiritual. Participa,
pelo seu corpo, da natureza dos animais e de seus instintos. Por sua
alma, participa da dos Espíritos”. a) — De modo que, além de suas
próprias imperfeições de que cumpre ao Espírito despojar-se, tem ainda o
homem que lutar contra a influência da matéria? “Quanto mais inferior é
o Espírito, tanto mais apertados são os laços que o ligam à matéria.
Não o vedes? O homem não tem duas almas; a alma é sempre única em cada
ser. São distintas uma da outra a alma do animal e a do homem, a tal
ponto que a de um não pode animar o corpo criado para o outro. Mas,
conquanto não tenha alma animal, que, por suas paixões, o nivele aos
animais, o homem tem o corpo que, às vezes, o rebaixa até ao nível
deles, por isso que o corpo é um ser dotado de vitalidade e de
instintos, porém ininteligentes estes e restritos ao cuidado que a sua
conservação requer.” Encarnando no corpo do homem, o Espírito lhe traz o
princípio intelectual e moral, que o torna superior aos animais. As
duas naturezas nele existentes dão às suas paixões duas origens
diferentes: umas provêm dos instintos da natureza animal, provindo as
outras das impurezas do Espírito, de cuja encarnação é ele a imagem e
que mais ou menos simpatiza com a grosseria dos apetites animais.
Purificando-se, o Espírito se liberta pouco a pouco da influência da
matéria. Sob essa influência, aproxima-se do bruto. Isento dela,
eleva-se à sua verdadeira destinação.
606. Donde tiram os animais o princípio
inteligente que constitui a alma de natureza especial de que são
dotados? “Do elemento inteligente universal”. a) — Então, emanam de um
único princípio a inteligência do homem e a dos animais? “Sem dúvida
alguma, porém, no homem, passou por uma elaboração que a coloca acima da
que existe no animal.”
607. Dissestes (190) que o estado da alma
do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida
corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a
vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?
“Numa série de existências que precedem o período a que chamais
Humanidade.” a) — Parece que, assim, se pode considerar a alma
como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação,
não? “Já não dissemos que tudo em a Natureza se encadeia e tende para a
unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o
princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se
ensaia para a vida, conforme acabamos de dizer. É, de certo modo, um
trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o
princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra
então no período da humanização, começando a ter consciência do seu
futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos
seus atos. Assim, à fase da infância se segue a da adolescência, vindo
depois a da juventude e da madureza. Nessa origem, coisa alguma há de
humilhante para o homem. Sentir-se-ão humilhados os grandes gênios por
terem sido fetos informes nas entranhas que os geraram? Se alguma coisa
há que lhe seja humilhante, é a sua inferioridade perante Deus e sua
impotência para lhe sondar a profundeza dos desígnios e para apreciar a
sabedoria das leis que regem a harmonia do Universo. Reconhecei a
grandeza de Deus nessa admirável harmonia, mediante a qual tudo é
solidário na Natureza. Acreditar que Deus haja feito, seja o que for,
sem um fim, e criado seres inteligentes sem futuro, fora blasfemar da
sua bondade, que se estende por sobre todas as suas criaturas.” b) —
Esse período de humanização principia na Terra? “A Terra não é o ponto
de partida da primeira encarnação humana. O período da humanização
começa, geralmente, em mundos ainda inferiores à Terra. Isto,
entretanto, não constitui regra absoluta, pois pode suceder que um
Espírito, desde o seu início humano, esteja apto a viver na Terra. Não é
frequente o caso; constitui antes uma exceção.”
608. O Espírito do homem tem, após a
morte, consciência de suas existências anteriores ao período de
humanidade? “Não, pois não é desse período que começa a sua vida de
Espírito. Difícil é mesmo que se lembre de suas primeiras existências
humanas, como difícil é que o homem se lembre dos primeiros tempos de
sua infância e ainda menos do tempo que passou no seio materno. Essa a
razão por que os Espíritos dizem que não sabem como começaram.”
609. Uma vez no período da humanidade,
conserva o Espírito traços do que era precedentemente, quer dizer: do
estado em que se achava no período a que se poderia chamar anti-humano?
“Conforme a distância que medeie entre os dois períodos e o progresso
realizado. Durante algumas gerações, pode ele conservar vestígios mais
ou menos pronunciados do estado primitivo, porquanto nada se opera na
Natureza por brusca transição. Há sempre anéis que ligam as extremidades
da cadeia dos seres e dos acontecimentos. Aqueles vestígios, porém, se
apagam com o desenvolvimento do livre- -arbítrio. Os primeiros
progressos só muito lentamente se efetuam, porque ainda não têm a
secundá-los a vontade. Vão em progressão mais rápida, à medida que o
Espírito adquire mais perfeita consciência de si mesmo.”
610. Ter-se-ão enganado os Espíritos que
disseram constituir o homem um ser à parte na ordem da criação? “Não,
mas a questão não fora desenvolvida. Demais, há coisas que só a seu
tempo podem ser esclarecidas. O homem é, com efeito, um ser à parte,
visto possuir faculdades que o distinguem de todos os outros e ter outro
destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos
seres que podem conhecê-lo.”
METEMPSICOSE
611. O terem os seres vivos uma origem
comum no princípio inteligente não é a consagração da doutrina da
metempsicose? “Duas coisas podem ter a mesma origem e absolutamente não
se assemelharem mais tarde”. Quem reconheceria a árvore, com suas
folhas, flores e frutos, no gérmen informe que se contém na semente
donde ela surge? Desde que o princípio inteligente atinge o grau
necessário para ser Espírito e entrar no período da humanização, já não
guarda relação com o seu estado primitivo e já não é a alma dos animais,
como a árvore já não é a semente. De animal só há no homem o corpo e as
paixões que nascem da influência do corpo e do instinto de conservação
inerente à matéria. Não se pode, pois, dizer que tal homem é a
encarnação do Espírito de tal animal. Conseguintemente, a metempsicose,
como a entendem, não é verdadeira.”
612. Poderia encarnar num animal o
Espírito que animou o corpo de um homem? “Isso seria retrogradar e o
Espírito não retrograda. O rio não remonta à sua nascente.” (118)
613. Embora de todo errônea, a idéia
ligada à metempsicose não terá resultado do sentimento intuitivo que o
homem possui de suas diferentes existências? “Nessa, como em muitas
outras crenças, se depara esse sentimento intuitivo. O homem, porém, o
desnaturou, como costuma fazer com a maioria de suas idéias intuitivas.”
Seria verdadeira a metempsicose, se indicasse a progressão da alma,
passando de um estado inferior a outro superior, onde adquirisse
desenvolvimentos que lhe transformassem a natureza. É, porém, falsa no
sentido de transmigração direta da alma do animal para o homem e
reciprocamente, o que implicaria a idéia de uma retrogradação, ou de
fusão. Ora, o fato de não poder semelhante fusão operar-se, entre os
seres corporais das duas espécies, mostra que estas são de graus
inassimiláveis, devendo dar-se o mesmo com relação aos Espíritos que as
animam. Se um mesmo Espírito as pudesse animar alternativamente,
haveria, como consequência, uma identidade de natureza, traduzindo-se
pela possibilidade da reprodução material.
A reencarnação, como os Espíritos a
ensinam, se funda, ao contrário, na marcha ascendente da Natureza e na
progressão do homem, dentro da sua própria espécie, o que em nada lhe
diminui a dignidade. O que o rebaixa é o mau uso que ele faz das
faculdades que Deus lhe outorgou para que progrida. Seja como for, a
ancianidade e a universalidade da doutrina da metempsicose e, bem assim,
a circunstância de a terem professado homens eminentes provam que o
princípio da reencarnação se radica na própria Natureza. Antes, pois,
constituem argumentos a seu favor, que contrários a esse princípio. O
ponto inicial do Espírito é uma dessas questões que se prendem à origem
das coisas e de que Deus guarda o segredo. Dado não é ao homem
conhecê-las de modo absoluto, nada mais lhe sendo possível a tal
respeito do que fazer suposições, criar sistemas mais ou menos
prováveis. Os próprios Espíritos longe estão de tudo saberem e, acerca
do que não sabem, também podem ter opiniões pessoais mais ou menos
sensatas. É assim, por exemplo, que nem todos pensam da mesma forma
quanto às relações existentes entre o homem e os animais. Segundo uns, o
Espírito não chega ao período humano senão depois de se haver elaborado
e individualizado nos diversos graus dos seres inferiores da Criação.
Segundo outros, o Espírito do homem teria pertencido sempre à raça
humana, sem passar pela fieira animal. O primeiro desses sistemas
apresenta a vantagem de assinar um alvo ao futuro dos animais, que
formariam então os primeiros elos da cadeia dos seres pensantes. O
segundo é mais conforme à dignidade do homem e pode resumir-se da
maneira seguinte: As diferentes espécies de animais não procedem
intelectualmente umas das outras, mediante progressão. Assim, o espírito
da ostra não se torna sucessivamente o do peixe, do pássaro, do
quadrúpede e do quadrúmano. Cada espécie constitui, física e moralmente,
um tipo absoluto, cada um de cujos indivíduos haurem na fonte universal
a quantidade do princípio inteligente que lhe seja necessário, de
acordo com a perfeição de seus órgãos e com o trabalho que tenha de
executar nos fenômenos da Natureza, quantidade que ele, por sua morte,
restitui ao reservatório donde a tirou. Os dos mundos mais adiantados
que o nosso (ver nº 188) constituem igualmente raças distintas,
apropriadas às necessidades desses mundos e ao grau de adiantamento dos
homens, cujos auxiliares eles são, mas de modo nenhum procedem das da
Terra, espiritualmente falando. Outro tanto não se dá com o homem. Do
ponto de vista físico, este forma evidentemente um elo da cadeia dos
seres vivos; porém, do ponto de vista moral, há, entre o animal e o
homem, solução de continuidade. O homem possui, como propriedade sua, a
alma ou Espírito, centelha divina que lhe confere o senso moral e um
alcance intelectual de que carecem os animais e que é nele o ser
principal, que preexiste e sobrevive ao corpo, conservando sua
individualidade. Qual a origem do Espírito? Onde o seu ponto inicial?
Forma-se do princípio inteligente individualizado? Tudo isso são
mistérios que fora inú- til querer devassar e sobre os quais, como
dissemos, nada mais se pode fazer do que construir sistemas. O que é
constante, o que ressalta do raciocínio e da experiência é a
sobrevivência do Espírito, a conservação de sua individualidade após a
morte, a progressividade de suas faculdades, seu estado feliz ou
desgraçado de acordo com o seu adiantamento na senda do bem e todas as
verdades morais decorrentes deste princípio. Quanto às relações
misteriosas que existem entre o homem e os animais, isso, repetimos,
está nos segredos de Deus, como muitas outras coisas, cujo conhecimento
atual nada importa ao nosso progresso e sobre as quais seria inútil
determo-nos.
PARTE TERCEIRA
Das leis morais
CAPÍTULO I – DA LEI DIVINA OU NATURAL
CAPÍTULO II – DA LEI DE ADORAÇÃO
CAPÍTULO III – DA LEI DO TRABALHO
CAPÍTULO IV – DA LEI DE REPRODUÇÃO
CAPÍTULO V – DA LEI DE CONSERVAÇÃO
CAPÍTULO VI – DA LEI DE DESTRUIÇÃO
CAPÍTULO VII – DA LEI DE SOCIEDADE
CAPÍTULO VIII – DA LEI DO PROGRESSO
CAPÍTULO IX – DA LEI DE IGUALDADE
CAPÍTULO X – DA LEI DE LIBERDADE
CAPÍTULO XI – DA LEI DE JUSTIÇA, DE AMOR E DE CARIDADE
CAPÍTULO XII – DA PERFEIÇÃO MORAL
CAPÍTULO I
Da lei divina ou natural
• Caracteres da lei natural
• Conhecimento da lei natural
• O bem e o mal
• Divisão da lei natural
CARACTERES DA LEI NATURAL
614. Que se deve entender por lei
natural? “A lei natural é a lei de Deus. É a única verdadeira para a
felicidade do homem. Indica-lhe o que deve fazer ou deixar de fazer e
ele só é infeliz quando dela se afasta.”
615. É eterna a lei de Deus? “Eterna e imutável como o próprio Deus.”
616. Será possível que Deus em certa
época haja prescrito aos homens o que noutra época lhes proibiu? Deus
não se engana. Os homens é que são obrigados a modificar suas leis, por
imperfeitas. As de Deus, essas são perfeitas. A harmonia que reina no
universo material como no universo moral, se funda em leis estabelecidas
por Deus desde toda a eternidade.
617. As leis divinas, que é o que
compreendem no seu âmbito? Concernem a alguma outra coisa, que não
somente ao procedimento moral? “Todas as da Natureza são leis divinas,
pois que Deus é o autor de tudo. O sábio estuda as leis da matéria, o
homem de bem estuda e pratica as da alma. a) — Dado é ao homem
aprofundar umas e outras? “É, mas uma única existência não lhe basta
para isso.” Efetivamente, que são alguns anos para a aquisição de tudo o
de que precisa o ser, a fim de se considerar perfeito, embora apenas se
tenha em conta a distancia que vai do selvagem ao homem civilizado?
Insuficiente seria, para tanto, a existência mais longa que se possa
imaginar. Ainda com mais forte razão o será quando curta, como é para a
maior parte dos homens. Entre as leis divinas, umas regulam o movimento e
as relações da matéria bruta: as leis físicas, cujo estudo pertence ao
domínio da Ciência. As outras dizem respeito especialmente ao homem
considerado em si mesmo e nas suas relações com Deus e com seus
semelhantes. Contêm as regras da vida do corpo, bem como as da vida da
alma: são as leis morais. 618. São as mesmas, para todos os mundos, as
leis divinas? “A razão está a dizer que devem ser apropriadas à natureza
de cada mundo e adequadas ao grau de progresso dos seres que os
habitam.”
CONHECIMENTO DA LEI NATURAL
619. A todos os homens facultou Deus os
meios de conhecerem sua lei? “Todos podem conhecê-la, mas nem todos a
compreendem. Os homens de bem e os que se decidem a investigá-la são os
que melhor a compreendem. Todos, entretanto, a compreenderão um dia,
porquanto forçoso é que o progresso se efetue.” A justiça das diversas
encarnações do homem é uma consequência deste princípio, pois que, em
cada nova existência, sua inteligência se acha mais desenvolvida e ele
compreende melhor o que é bem e o que é mal. Se numa só existência tudo
lhe devesse ficar ultimado, qual seria a sorte de tantos milhões de
seres que morrem todos os dias no embrutecimento da selvageria, ou nas
trevas da ignorância, sem que deles tenha dependido o se instruírem?
(171-222)
620. Antes de se unir ao corpo, a alma
compreende melhor a lei de Deus do que depois de encarnada?
“Compreende-a de acordo com o grau de perfeição que tenha atingido e
dela guarda a intuição quando unida ao corpo. Os maus instintos, porém,
fazem ordinariamente que o homem a esqueça.”
621. Onde está escrita a lei de Deus? “Na
consciência.” a) — Visto que o homem traz em sua consciência a lei de
Deus, que necessidade havia de lhe ser ela revelada? “Ele a esquecera e
desprezara. Quis então Deus lhe fosse lembrada.”
622. Confiou Deus a certos homens a
missão de revelarem a sua lei? “Indubitavelmente. Em todos os tempos
houve homens que tiveram essa missão. São Espíritos superiores, que
encarnam com o fim de fazer progredir a Humanidade.”
623. Os que hão pretendido instruir os
homens na lei de Deus não se têm enganado algumas vezes, fazendo-os
transviar-se por meio de falsos princípios? “Certamente hão dado causa a
que os homens se transviassem aqueles que não eram inspirados por Deus e
que, por ambição, tomaram sobre si um encargo que lhes não fora
cometido. Todavia, como eram, afinal, homens de gênio, mesmo entre os
erros que ensinaram, grandes verdades muitas vezes se encontram.”
624. Qual o caráter do verdadeiro
profeta? “O verdadeiro profeta é um homem de bem, inspirado por Deus.
Podeis reconhecê-lo pelas suas palavras e pelos seus atos. Impossível é
que Deus se sirva da boca do mentiroso para ensinar a verdade.”
625. Qual o tipo mais perfeito que Deus
tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo? “Jesus.” Para o
homem, Jesus constitui o tipo da perfeição moral a que a Humanidade
pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a
doutrina que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor, porque,
sendo ele o mais puro de quantos têm aparecido na Terra, o Espírito
Divino o animava.
Quanto aos que, pretendendo instruir o
homem na lei de Deus, o têm transviado, ensinando-lhe falsos princípios,
isso aconteceu por haverem deixado que os dominassem sentimentos
demasiado terrenos e por terem confundido as leis que regulam as
condições da vida da alma, com as que regem a vida do corpo. Muitos hão
apresentado como leis divinas simples leis humanas estatuídas para
servir às paixões e dominar os homens.
626. Só por Jesus foram reveladas
as leis divinas e naturais? Antes do seu aparecimento, o conhecimento
dessas leis só por intuição os homens o tiveram? “Já não dissemos que
elas estão escritas por toda parte? Desde os séculos mais longínquos,
todos os que meditaram sobre a sabedoria hão podido compreendê-las e
ensiná-las. Pelos ensinos, mesmo incompletos, que espalharam, prepararam
o terreno para receber a semente. Estando as leis divinas escritas no
livro da natureza, possível foi ao homem conhecê-las, logo que as quis
procurar. Por isso é que os preceitos que consagram foram, desde todos
os tempos, proclamados pelos homens de bem; e também por isso é que
elementos delas se encontram, se bem que incompletos ou adulterados pela
ignorância, na doutrina moral de todos os povos saídos da barbárie.”
627. Uma vez que Jesus ensinou as
verdadeiras leis de Deus, qual a utilidade do ensino que os Espíritos
dão? Terão que nos ensinar mais alguma coisa? Jesus empregava amiúde, na
sua linguagem, alegorias e parábolas, porque falava de conformidade com
os tempos e os lugares. Faz-se mister agora que a verdade se torne
inteligível para todo mundo. Muito necessário é que aquelas leis sejam
explicadas e desenvolvidas, tão poucos são os que as compreendem e ainda
menos os que as praticam. A nossa missão consiste em abrir os olhos e
os ouvidos a todos, confundindo os orgulhosos e desmascarando os
hipócritas: os que vestem a capa da virtude e da religião, a fim de
ocultarem suas torpezas. O ensino dos Espíritos tem que ser claro e sem
equívocos, para que ninguém possa pretextar ignorância e para que todos o
possam julgar e apreciar com a razão. Estamos incumbidos de preparar o
reino do bem que Jesus anunciou. Daí a necessidade de que a ninguém seja
possível interpretar a lei de Deus ao sabor de suas paixões, nem
falsear o sentido de uma lei toda de amor e de caridade.
628. Por que a verdade não foi sempre
posta ao alcance de toda gente? “Importa que cada coisa venha a seu
tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela, pouco a
pouco; do contrário, fica deslumbrado. “Jamais permitiu Deus que o
homem recebesse comunicações tão completas e instrutivas como as que
hoje lhe são dadas. Havia como sabeis, na antiguidade alguns indivíduos
possuidores do que eles próprios consideravam uma ciência sagrada e da
qual faziam mistério para os que, aos seus olhos, eram tidos por
profanos. Pelo que conheceis das leis que regem estes fenômenos, deveis
compreender que esses indivíduos apenas recebiam algumas verdades
esparsas, dentro de um conjunto equívoco e, na maioria dos casos,
emblemático. Entretanto, para o estudioso, não há nenhum sistema antigo
de filosofia, nenhuma tradição, nenhuma religião, que seja desprezível,
pois em tudo há germens de grandes verdades que, se bem pareçam
contraditórias entre si, dispersas que se acham em meio de acessórios
sem fundamento, facilmente coordenáveis se vos apresentam, graças à
explicação que o Espiritismo dá de uma imensidade de coisas que até
agora se vos afiguraram sem razão alguma e cuja realidade está hoje
irrecusavelmente demonstrada. Não desprezeis, portanto, os objetos de
estudo que esses materiais oferecem. Ricos eles são de tais objetos e
podem contribuir grandemente para vossa instrução.”
O BEM E O MAL
629. Que definição se pode dar da moral?
“A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal.
Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo
faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus.”
630. Como se pode distinguir o bem do
mal? “O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe
é contrário. Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a lei de Deus.
Fazer o mal é infringi-la.”
631. Tem meios o homem de distinguir por
si mesmo o que é bem do que é mal? “Sim, quando crê em Deus e o quer
saber. Deus lhe deu a inteligência para distinguir um do outro.”
632. Estando sujeito ao erro, não pode o
homem enganar- -se na apreciação do bem e do mal e crer que pratica o
bem quando em realidade pratica o mal? “Jesus disse: vede o que queríeis
que vos fizessem ou não vos fizessem. Tudo se resume nisso. Não vos
enganareis.”
633. A regra do bem e do mal, que se
poderia chamar de reciprocidade ou de solidariedade, é inaplicável ao
proceder pessoal do homem para consigo mesmo. Achará ele, na lei
natural, a regra desse proceder e um guia seguro? “Quando comeis em
excesso, verificais que isso vos faz mal. Pois bem, é Deus quem vos dá a
medida daquilo de que necessitais. Quando excedeis dessa medida, sois
punidos. Em tudo é assim. A lei natural traça para o homem o limite das
suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é punido pelo
sofrimento. Se atendesse sempre à voz que lhe diz — basta, evitaria a
maior parte dos males, cuja culpa lança à Natureza.”
634. Por que está o mal na natureza das
coisas? Falo do mal moral. Não podia Deus ter criado a Humanidade em
melhores condições? “Já te dissemos: os Espíritos foram criados simples e
ignorantes (115). Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior
para ele, se toma o caminho mau: mais longa será sua peregrinação. Se
não existissem montanhas, não compreenderia o homem que se pode subir e
descer; se não existissem rochas, não compreenderia que há corpos duros.
É preciso que o Espírito ganhe experiência; é preciso, portanto, que
conheça o bem e o mal. Eis por que se une ao corpo.” (119)
635. Das diferentes posições sociais
nascem necessidades que não são idênticas para todos os homens. Não
parece poder inferir-se daí que a lei natural não constitui regra
uniforme? “Essas diferentes posições são da natureza das coisas e
conformes à lei do progresso. Isso não infirma a unidade da lei natural,
que se aplica a tudo.” As condições de existência do homem mudam de
acordo com os tempos e os lugares, do que lhe resultam necessidades
diferentes e posições sociais apropriadas a essas necessidades. Pois que
está na ordem das coisas, tal diversidade é conforme à lei de Deus, lei
que não deixa de ser una quanto ao seu princípio. À razão cabe
distinguir as necessidades reais das factícias ou convencionais.
636. São absolutos, para todos os homens,
o bem e o mal? “A lei de Deus é a mesma para todos; porém, o mal
depende principalmente da vontade que se tenha de o praticar. O bem é
sempre o bem e o mal sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem.
Diferença só há quanto ao grau da responsabilidade.”
637. Será culpado o selvagem que,
cedendo ao seu instinto, se nutre de carne humana? “Eu disse que o mal
depende da vontade. Pois bem! Tanto mais culpado é o homem, quanto
melhor sabe o que faz.” As circunstâncias dão relativa gravidade ao bem e
ao mal. Muitas vezes, comete o homem faltas, que, nem por serem
consequência da posição em que a sociedade o colocou, se tornam menos
repreensíveis. Mas, a sua responsabilidade é proporcionada aos meios de
que ele dispõe para compreender o bem e o mal. Assim, mais culpado é,
aos olhos de Deus, o homem instruído que pratica uma simples injustiça,
do que o selvagem ignorante que se entrega aos seus instintos.
638. Parece, às vezes, que o mal é uma
consequência da força das coisas. Tal, por exemplo, a necessidade em que
o homem se vê, nalguns casos, de destruir, até mesmo o seu semelhante.
Poder-se-á dizer que há, então, infração da lei de Deus? “Embora
necessário, o mal não deixa de ser o mal. Essa necessidade desaparece,
entretanto, à medida que a alma se depura, passando de uma a outra
existência. Então, mais culpado é o homem, quando o pratica, porque
melhor o compreende.”
639. Não sucede frequentemente resultar o
mal, que o homem pratica, da posição em que os outros homens o colocam?
Quais, nesse caso, os culpados? “O mal recai sobre quem lhe foi o
causador. Nessas condições, aquele que é levado a praticar o mal pela
posição em que seus semelhantes o colocam tem menos culpa do que os que,
assim procedendo, o ocasionaram. Porque, cada um será punido, não só
pelo mal que haja feito, mas também pelo mal a que tenha dado lugar.”
640. Aquele que não pratica o mal, mas
que se aproveita do mal praticado por outrem, é tão culpado quanto este?
“É como se o houvera praticado. Aproveitar do mal é participar dele.
Talvez não fosse capaz de praticá-lo; mas, desde que, achando-o feito,
dele tira partido, é que o aprova; é que o teria praticado, se pudera,
ou se ousara.”
641. Será tão repreensível, quanto fazer o
mal, o desejá-lo? “Conforme. Há virtude em resistir-se voluntariamente
ao mal que se deseja praticar, sobretudo quando há possibilidade de
satisfazer-se a esse desejo. Se apenas não o pratica por falta de
ocasião, é culpado quem o deseja.”
642. Para agradar a Deus e assegurar a
sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal? “Não;
cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá
por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”
643. Haverá quem, pela sua posição,
não tenha possibilidade de fazer o bem? “Não há quem não possa fazer o
bem. Somente o egoísta nunca encontra ensejo de o praticar. Basta que se
esteja em relações com outros homens para que se tenha ocasião de fazer
o bem, e não há dia da existência que não ofereça, a quem não se ache
cego pelo egoísmo, oportunidade de praticá-lo. Porque, fazer o bem não
consiste, para o homem, apenas em ser caridoso, mas em ser útil, na
medida do possível, todas as vezes que o seu concurso venha a ser
necessário.”
644. Para certos homens, o meio
onde se acham colocados não representa a causa primária de muitos vícios
e crimes? “Sim, mas ainda aí há uma prova que o Espírito escolheu,
quando em liberdade, levado pelo desejo de expor-se à tentação para ter o
mérito da resistência”.
645. Quando o homem se acha, de certo
modo, mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se lhe torna um
arrastamento quase irresistível? “Arrastamento, sim; irresistível, não;
porquanto, mesmo dentro da atmosfera do vício, com grandes virtudes às
vezes deparas. São Espíritos que tiveram a força de resistir e que, ao
mesmo tempo, receberam a missão de exercer boa influência sobre os seus
semelhantes.”
646. Estará subordinado a determinadas
condições o mérito do bem que se pratique? Por outra: será de diferentes
graus o mérito que resulta da prática do bem? “O mérito do bem está na
dificuldade em praticá-lo. Nenhum merecimento há em fazê-lo sem esforço e
quando nada custe. Em melhor conta tem Deus o pobre que divide com
outro o seu único pedaço de pão, do que o rico que apenas dá do que lhe
sobra, disse-o Jesus, a propósito do óbolo da viúva.”
DIVISÃO DA LEI NATURAL
647. A lei de Deus se acha contida toda
no preceito do amor ao próximo, ensinado por Jesus? Certamente esse
preceito encerra todos os deveres dos homens uns para com os outros.
Cumpre, porém, se lhes mostre a aplicação que comporta, do contrário
deixarão de cumpri-lo, como o fazem presentemente. Demais, a lei natural
abrange todas as circunstâncias da vida e esse preceito compreende só
uma parte da lei. “Aos homens são necessárias regras precisas; os
preceitos gerais e muito vagos deixam grande número de portas abertas à
interpretação.”
648. Que pensais da divisão da lei
natural em dez partes, compreendendo as leis de adoração, trabalho,
reprodução, conservação, destruição, sociedade, progresso, igualdade,
liberdade e, por fim, a de justiça, amor e caridade? “Essa divisão da
lei de Deus em dez partes é a de Moisés e de natureza a abranger todas
as circunstâncias da vida, o que é essencial. Podes, pois, adotá-la, sem
que, por isso, tenha qualquer coisa de absoluta, como não o tem nenhum
dos outros sistemas de classificação, que todos dependem do prisma pelo
qual se considere o que quer que seja. “A última lei é a mais
importante, por ser a que faculta ao homem adiantar-se mais na vida
espiritual, visto que resume todas as outras.”
CAPÍTULO I I
Da lei de adoração
• Objetivo da adoração
• Adoração exterior
• Vida contemplativa
• A prece
• Politeísmo
• Sacrifícios
OBJETIVO DA ADORAÇÃO
649. Em que consiste a adoração? “Na elevação do pensamento a Deus. Deste, pela adoração, aproxima o homem sua alma.”
650. Origina-se de um sentimento inato à
adoração, ou é fruto de ensino? “Sentimento inato, como o da existência
de Deus. A consciência da sua fraqueza leva o homem a curvar-se diante
daquele que o pode proteger.”
651. Terá havido povos destituídos
de todo sentimento de adoração? “Não, que nunca houve povos de ateus.
Todos compreendem que acima de tudo há um Ente Supremo.”
652. Poder-se-á considerar a lei natural
como fonte originária da adoração? “A adoração está na lei natural, pois
resulta de um sentimento inato no homem. Por essa razão é que existe
entre todos os povos, se bem que sob formas diferentes.”
ADORAÇÃO EXTERIOR
653. Precisa de manifestações
exteriores a adoração? “A adoração verdadeira é do coração. Em todas as
vossas ações, lembrai-vos sempre de que o Senhor tem sobre vós o seu
olhar.” a) — Será útil a adoração exterior? “Sim, se não consistir num
vão simulacro. É sempre útil dar um bom exemplo. Mas, os que somente por
afetação e amor-próprio o fazem, desmentindo com o proceder a aparente
piedade, mau exemplo dão e não imaginam o mal que causam.”
654. Tem Deus preferência pelos que o
adoram desta ou daquela maneira? “Deus prefere os que o adoram do fundo
do coração, com sinceridade, fazendo o bem e evitando o mal, aos que
julgam honrá-lo com cerimônias que os não tornam melhores para com os
seus semelhantes”. Todos os homens são irmãos e filhos de Deus. Ele
atrai a si todos os que lhe obedecem às leis, qualquer que seja a forma
sob que as exprimam.
“É hipócrita aquele cuja piedade se cifra
nos atos exteriores. Mau exemplo dá todo aquele cuja adoração é afetada
e contradiz o seu procedimento. “Declaro-vos que somente nos lábios e
não na alma tem religião aquele que professa adorar o Cristo, mas que é
orgulhoso, invejoso e cioso, duro e implacável para com outrem, ou
ambicioso dos bens deste mundo. Deus, que tudo vê, dirá: o que conhece a
verdade é cem vezes mais culpado do mal que faz, do que o selvagem
ignorante que vive no deserto. E como tal será tratado no dia da
justiça. Se um cego, ao passar, vos derriba, perdoá-lo-eis; se for um
homem que enxerga perfeitamente bem, queixar-vos-eis e com razão. “Não
pergunteis, pois, se alguma forma de adoração há que mais convenha,
porque equivaleria a perguntardes se mais agrada a Deus ser adorado num
idioma do que noutro. Ainda uma vez vos digo: até ele não chegam os
cânticos, senão quando passam pela porta do coração.”
655. Merece censura aquele que
pratica uma religião em que não crê do fundo d’alma, fazendo-o apenas
pelo respeito humano e para não escandalizar os que pensam de modo
diverso? “Nisto, como em muitas outras coisas, a intenção constitui a
regra. Não procede mal aquele que, assim fazendo, só tenha em vista
respeitar as crenças de outrem. Procede melhor do que um que as
ridiculize, porque, então, falta à caridade. Aquele, porém, que a
pratique por interesse e por ambição se torna desprezível aos olhos de
Deus e dos homens. A Deus não podem agradar os que fingem humilhar-se
diante dele tão-somente para granjear o aplauso dos homens.”
656. À adoração individual será
preferível a adoração em comum? “Reunidos pela comunhão dos pensamentos e
dos sentimentos, mais força têm os homens para atrair a si os bons
Espíritos. O mesmo se dá quando se reúnem para adorar a Deus. Não
creiais, todavia, que menos valiosa seja a adoração particular, pois que
cada um pode adorar a Deus pensando nele.”
VIDA CONTEMPLATIVA
657. Têm, perante Deus, algum mérito os
que se consagram à vida contemplativa, uma vez que nenhum mal fazem e só
em Deus pensam? “Não, porquanto, se é certo que não fazem o mal, também
o é que não fazem o bem e são inúteis. Demais, não fazer o bem já é um
mal. Deus quer que o homem pense nele, mas não quer que só nele pense,
pois que lhe impôs deveres a cumprir na Terra. Quem passa todo o tempo
na meditação e na contemplação nada faz de meritório aos olhos de Deus,
porque vive uma vida toda pessoal e inútil à Humanidade e Deus lhe
pedirá contas do bem que não houver feito.” (640)
A PRECE
658. Agrada a Deus a prece? “A prece é
sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração, pois, para ele, a
intenção é tudo. Assim, preferível lhe é a prece do íntimo à prece lida,
por muito bela que seja, se for lida mais com os lábios do que com o
coração. Agrada-lhe a prece, quando dita com fé, com fervor e
sinceridade. Mas, não creiais que o toque a do homem fútil, orgulhoso e
egoísta, a menos que signifique, de sua parte, um ato de sincero
arrependimento e de verdadeira humildade.”
659. Qual o caráter geral da prece? “A
prece é um ato de adoração. Orar a Deus é pensar nele; é aproximar-se
dele; é pôr-se em comunicação com ele. A três coisas podemos propor-nos
por meio da prece: louvar, pedir, agradecer.”
660. A prece torna melhor o homem? “Sim,
porquanto aquele que ora com fervor e confiança se faz mais forte contra
as tentações do mal e Deus lhe envia bons Espíritos para assisti-lo. É
este um socorro que jamais se lhe recusa, quando pedido com
sinceridade.” a) — Como é que certas pessoas, que oram muito, são, não
obstante, de mau-caráter, ciosas, invejosas, impertinentes, carentes de
benevolência e de indulgência e até, algumas vezes, viciosas? “O
essencial não é orar muito, mas orar bem. Essas pessoas supõem que todo o
mérito está na longura da prece e fecham os olhos para os seus próprios
defeitos. Fazem da prece uma ocupação, um emprego do tempo, nunca,
porém, um estudo de si mesmas. A ineficácia, em tais casos, não é do
remédio, sim da maneira por que o aplicam.”
661. Poderemos utilmente pedir a Deus que perdoe as nossas faltas?
“Deus sabe discernir o bem do mal; a
prece não esconde as faltas. Aquele que a Deus pede perdão de suas
faltas só o obtém mudando de proceder. As boas ações são a melhor prece,
por isso que os atos valem mais que as palavras.”
662. Pode-se, com utilidade, orar por
outrem? “O Espírito de quem ora atua pela sua vontade de praticar o bem.
Atrai a si, mediante a prece, os bons Espíritos e estes se associam ao
bem que deseje fazer.” O pensamento e a vontade representam em nós um
poder de ação que alcança muito além dos limites da nossa esfera
corporal. A prece que façamos por outrem é um ato dessa vontade. Se for
ardente e sincera, pode chamar, em auxílio daquele por quem oramos, os
bons Espíritos, que lhe virão sugerir bons pensamentos e dar a força de
que necessitem seu corpo e sua alma. Mas, ainda aqui, a prece do coração
é tudo, a dos lábios nada vale.
663. Podem as preces, que por nós mesmos
fizermos mudar a natureza das nossas provas e desviar-lhes o
curso? As vossas provas estão nas mãos de Deus e algumas há que
têm de ser suportadas até ao fim; mas, Deus sempre leva em conta a
resignação. A prece traz para junto de vós os bons Espíritos e,
dando-vos estes a força de suportá-las corajosamente, menos rudes elas
vos parecem.
Temos dito que a prece nunca é inútil,
quando bem feita, porque fortalece aquele que ora, o que já constitui
grande resultado. Ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará, bem o sabes.
Demais, não é possível que Deus mude a ordem da natureza ao sabor de
cada um, porquanto o que, do vosso ponto de vista mesquinho e do da
vossa vida efêmera, vos parece um grande mal é quase sempre um grande
bem na ordem geral do Universo. Além disso, de quantos males não se
constitui o homem o próprio autor, pela sua imprevidência ou pelas suas
faltas? Ele é punido naquilo em que pecou. Todavia, as súplicas justas
são atendidas mais vezes do que supondes. Julgais, de ordinário, que
Deus não vos ouviu, porque não fez a vosso favor um milagre, enquanto
que vos assiste por meios tão naturais que vos parecem obra do acaso ou
da força das coisas. Muitas vezes também, as mais das vezes mesmo, ele
vos sugere a idéia que vos fará sair da dificuldade pelo vosso próprio
esforço.
664. Será útil que oremos pelos mortos e
pelos Espíritos sofredores? E, neste caso, como lhes podem as nossas
preces proporcionar alívio e abreviar os sofrimentos? Têm elas o poder
de abrandar a justiça de Deus? “A prece não pode ter por efeito mudar os
desígnios de Deus, mas a alma por quem se ora experimenta alívio,
porque recebe assim um testemunho do interesse que inspira àquele que
por ela pede e também porque o desgraçado sente sempre um refrigério,
quando encontra almas caridosas que se compadecem de suas dores. Por
outro lado, mediante a prece, aquele que ora concita o desgraçado ao
arrependimento e ao desejo de fazer o que é necessário para ser feliz.
Neste sentido é que se lhe pode abreviar a pena, se, por sua parte, ele
secunda a prece com a boa vontade. O desejo de melhorar-se, despertado
pela prece, atrai para junto do Espírito sofredor Espíritos melhores,
que o vão esclarecer, consolar e dar-lhe esperanças. “Jesus orava pelas
ovelhas desgarradas, mostrando-vos, desse modo, que culpados vos
tornaríeis, se não fizésseis o mesmo pelos que mais necessitam das
vossas preces.”
665. Que se deve pensar da opinião dos
que rejeitam a prece em favor dos mortos, por não se achar prescrita no
Evangelho? “Aos homens disse o Cristo: Amai-vos uns aos outros. Esta
recomendação contém a de empregar o homem todos os meios possíveis para
testemunhar aos outros homens afeição, sem haver entrado em minúcias
quanto à maneira de atingir ele esse fim. Se é certo que nada pode fazer
que o Criador, imagem da justiça perfeita, deixe de aplicá-la a todas
as ações do Espírito, não menos certo é que a prece que lhe dirigis por
aquele que vos inspira afeição constitui, para este, um testemunho de
que dele vos lembrais, testemunho que forçosamente contribuirá para lhe
suavizar os sofrimentos e consolá-lo. Desde que ele manifeste o mais
ligeiro arrependimento, mas só então, é socorrido. Nunca, porém, será
deixado na ignorância de que uma alma simpática com ele se ocupou. Ao
contrário, será deixado na doce crença de que a intercessão dessa alma
lhe foi útil. Daí resulta necessariamente, de sua parte, um sentimento
de gratidão e afeto pelo que lhe deu essa prova de amizade ou de
piedade. Em consequência, crescerá num e noutro, reciprocamente, o amor
que o Cristo recomendava aos homens. Ambos, pois, se fizeram assim
obedientes à lei de amor e de união de todos os seres, lei divina, de
que resultará a unidade, objetivo e finalidade do Espírito.”1
666. Pode-se orar aos Espíritos? “Pode-se
orar aos bons Espíritos, como sendo os mensageiros de Deus e os
executores de suas vontades. O poder deles, porém, está em relação com a
superioridade que tenham alcançado e dimana sempre do Senhor de todas
as coisas, sem cuja permissão nada se faz. Eis por que as preces que se
lhes dirigem só são eficazes, se bem aceitas por Deus.”
POLITEÍSMO
667. Por que razão, não obstante ser
falsa, a crença politeísta é uma das mais antigas e espalhadas? “A
concepção de um Deus único não poderia existir no homem, senão como
resultado do desenvolvimento de suas idéias. Incapaz, pela sua
ignorância, de conceber um ser imaterial, sem forma determinada, atuando
sobre a matéria, conferiu-lhe o homem atributos da natureza corpórea,
isto é, uma forma e um aspecto e, desde então, tudo o que parecia
ultrapassar os limites da inteligência comum era, para ele, uma
divindade. Tudo o que não compreendia devia ser obra de uma potência
sobrenatural. Daí a crer em tantas potências distintas quantos os
efeitos que observava, não havia mais que um passo. Em todos os tempos,
porém, houve homens instruídos, que compreenderam ser impossível a
existência desses poderes múltiplos a governarem o mundo, sem uma
direção superior, e que, em consequência, se elevaram à concepção de um
Deus único.”
668. Tendo-se produzido em todos os
tempos e sendo conhecidos desde as primeiras idades do mundo, não
haverão os fenômenos espíritas contribuído para a difusão da crença na
pluralidade dos deuses? “Sem dúvida, porquanto, chamando deus a tudo o
que era sobre-humano, os homens tinham por deuses os Espí- ritos. Daí
veio que, quando um homem, pelas suas ações, pelo seu gênio, ou por um
poder oculto que o vulgo não lograva compreender, se distinguia dos
demais, faziam dele um deus e, por sua morte, lhe rendiam culto.” (603) A
palavra deus tinha, entre os antigos, acepção muito ampla. Não
indicava, como presentemente, uma personificação do Senhor da Natureza.
Era uma qualificação genérica, que se dava a todo ser existente fora das
condições da Humanidade.
Ora, tendo-lhes as manifestações
espíritas revelado a existência de seres incorpóreos a atuarem como
potência da Natureza, a esses seres deram eles o nome de deuses, como
lhes damos atualmente o de Espíritos. Pura questão de palavras, com a
única diferença de que, na ignorância em que se achavam, mantida
intencionalmente pelos que nisso tinham interesse, eles erigiram templos
e altares muito lucrativos a tais deuses, ao passo que hoje os
consideramos simples criaturas como nós, mais ou menos perfeitas e
despidas de seus invólucros terrestres. Se estudarmos atentamente os
diversos atributos das divindades pagãs, reconheceremos, sem esforço,
todos os de que vemos dotados os Espíritos nos diferentes graus da
escala espírita, o estado físico em que se encontram nos mundos
superiores, todas as propriedades do perispírito e os papéis que
desempenham nas coisas da Terra. Vindo iluminar o mundo com a sua divina
luz, o Cristianismo não se propôs destruir uma coisa que está na
Natureza. Orientou, porém, a adoração para Aquele a quem é devida.
Quanto aos Espíritos, a lembrança deles se há perpetuado, conforme os
povos, sob diversos nomes, e suas manifestações, que nunca deixaram de
produzir-se, foram interpretadas de maneiras diferentes e muitas vezes
exploradas sob o prestígio do mistério. Enquanto para a religião essas
manifestações eram fenômenos miraculosos, para os incrédulos sempre
foram embustes. Hoje, mercê de um estudo mais sério, feito à luz
meridiana, o Espiritismo, escoimado das idéias supersticiosas que o
ensombraram durante séculos, nos revela um dos maiores e mais sublimes
princípios da Natureza.
SACRIFÍCIOS
669. Remonta à mais alta antiguidade o
uso dos sacrifícios humanos. Como se explica que o homem tenha sido
levado a crer que tais coisas pudessem agradar a Deus?
“Primeiramente, porque não compreendia Deus como sendo a fonte da
bondade. Nos povos primitivos a matéria sobrepuja o espírito; eles se
entregam aos instintos do animal selvagem. Por isso é que, em geral, são
cruéis; é que neles o senso moral ainda não se acha desenvolvido. Em
segundo lugar, é natural que os homens primitivos acreditassem ter uma
criatura animada muito mais valor, aos olhos de Deus, do que um corpo
material. Foi isto que os levou a imolarem, primeiro, animais e, mais
tarde, homens. De conformidade com a falsa crença que possuíam, pensavam
que o valor do sacrifício era proporcional à importância da vítima. Na
vida material, como geralmente a praticais, se houverdes de oferecer a
alguém um presente, escolhê-lo- -eis sempre de tanto maior valor quanto
mais afeto e consideração quiserdes testemunhar a esse alguém. Assim
tinha que ser, com relação a Deus, entre homens ignorantes”. a) — De
modo que os sacrifícios de animais precederam os sacrifícios humanos?
“Sobre isso não pode haver a menor dúvida.”
b) — Então, de acordo com a explicação
que vindes de dar, não foi de um sentimento de crueldade que se
originaram os sacrifícios humanos? “Não; originaram-se de uma idéia
errônea quanto à maneira de agradar a Deus. Considerai o que se deu com
Abraão. Com o correr dos tempos, os homens entraram a abusar dessas
práticas, imolando seus inimigos comuns, até mesmo seus inimigos
particulares. Deus, entretanto, nunca exigiu sacrifícios, nem de homens,
nem, sequer, de animais. Não há como imaginar-se que se lhe possa
prestar culto, mediante a destruição inútil de suas criaturas.”
670. Dar-se-á que alguma vez possam ter
sido agradáveis a Deus os sacrifícios humanos praticados com piedosa
intenção? “Não, nunca. Deus, porém, julga pela intenção. Sendo
ignorantes os homens, natural era que supusessem praticar ato louvável
imolando seus semelhantes. Nesses casos, Deus atentava unicamente na
idéia que presidia ao ato e não neste. À proporção que se foram
melhorando, os homens tiveram que reconhecer o erro em que laboravam e
que reprovar tais sacrifícios, com que não podiam conformar-se as idéias
de Espíritos esclarecidos. Digo — esclarecidos, porque os Espíritos
tinham então a envolvê-los o véu material; mas, por meio do
livre-arbítrio, possível lhes era vislumbrar suas origens e fim, e
muitos, por intuição, já compreendiam o mal que praticavam, se bem que
nem por isso deixassem de praticá-lo, para satisfazer às suas paixões.”
671. Que devemos pensar das chamadas
guerras santas? O sentimento que impele os povos fanáticos, tendo em
vista agradar a Deus, a exterminarem o mais possível os que não
partilham de suas crenças, poderá equiparar-se, quanto à origem, ao
sentimento que os excitava outrora a sacrificarem seus semelhantes? “São
impelidos pelos maus Espíritos e, fazendo a guerra aos seus
semelhantes, contravêm à vontade de Deus, que manda ame cada um o seu
irmão, como a si mesmo. Todas as religiões, ou, antes, todos os povos
adoram um mesmo Deus, qualquer que seja o nome que lhe deem. Por que
então há de um fazer guerra a outro, sob o fundamento de ser a religião
deste diferente da sua, ou por não ter ainda atingido o grau de
progresso da dos povos cultos? Se são desculpáveis os povos de não
crerem na palavra daquele que o Espírito de Deus animava e que Deus
enviou, sobretudo os que não o viram e não lhe testemunharam os atos,
como pretenderdes que creiam nessa palavra de paz, quando lhes ides
levá-la de espada em punho? Eles têm que ser esclarecidos e devemos
esforçar-nos por fazê-los conhecer a doutrina do Salvador, mediante a
persuasão e com brandura, nunca a ferro e fogo. Em vossa maioria, não
acreditais nas comunicações que temos com certos mortais; como
quereríeis que estranhos acreditassem na vossa palavra, quando desmentis
com os atos a doutrina que pregais?”
672. A oferenda feita a Deus, de frutos
da terra, tinha a seus olhos mais mérito do que o sacrifício dos
animais? “Já vos respondi, declarando que Deus julga segundo a intenção e
que para ele pouca importância tinha o fato. Mais agradável
evidentemente era a Deus que lhe oferecessem frutos da terra, em vez do
sangue das vítimas. Como temos dito e sempre repetiremos, a prece
proferida do fundo da alma é cem vezes mais agradável a Deus do que
todas as oferendas que lhe possais fazer. Repito que a intenção é tudo,
que o fato nada vale.” 673. Não seria um meio de tornar essas oferendas
agradáveis a Deus consagrá-las a minorar os sofrimentos daqueles a quem
falta o necessário e, neste caso, o sacrifício dos animais, praticado
com fim útil, não se tornaria meritório, ao passo que era abusivo quando
para nada servia, ou só aproveitava aos que de nada precisavam? Não
haveria qualquer coisa de verdadeiramente piedoso em consagrar-se aos
pobres as primícias dos bens que Deus nos concede na Terra? “Deus
abençoa sempre os que fazem o bem. O melhor meio de honrá-lo consiste em
minorar os sofrimentos dos pobres e dos aflitos. Não quero dizer com
isto que ele desaprove as cerimônias que praticais para lhe dirigirdes
as vossas preces. Muito dinheiro, porém, aí se gasta que poderia ser
empregado mais utilmente do que o é. Deus ama a simplicidade em tudo. O
homem que se atém às exterioridades e não ao coração é um Espírito de
vistas acanhadas. Dizei, em consciência, se Deus deve atender mais à
forma do que ao fundo.”
CAPÍTULO III
Da lei do trabalho
• Necessidade do trabalho
• Limite do trabalho. Repouso
NECESSIDADE DO TRABALHO
674. A necessidade do trabalho é lei da
Natureza? “O trabalho é lei da Natureza, por isso mesmo que constitui
uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque
lhe aumenta as necessidades e os gozos.” 675. Por trabalho só se devem
entender as ocupações materiais? “Não; o Espírito trabalha, assim como o
corpo. Toda ocupação útil é trabalho.”
676. Por que o trabalho se impõe ao
homem? Por ser uma consequência da sua natureza corpórea. É
expiação e, ao mesmo tempo, meio de aperfeiçoamento da sua inteligência.
Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à
inteligência. Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar
dependem do seu trabalho e da sua atividade. Ao extremamente fraco de
corpo outorgou Deus a inteligência, em compensação. Mas é sempre um
trabalho.”
677. Por que provê a Natureza, por si
mesma, a todas as necessidades dos animais? “Tudo em a Natureza
trabalha. Como tu, trabalham os animais, mas o trabalho deles, de acordo
com a inteligência de que dispõem, se limita a cuidarem da própria
conservação. Daí vem que do trabalho não lhes resulta progresso, ao
passo que o do homem visa duplo fim: a conservação do corpo e o
desenvolvimento da faculdade de pensar, o que também é uma necessidade e
o eleva acima de si mesmo. Quando digo que o trabalho dos animais se
cifra no cuidarem da própria conservação, refiro-me ao objetivo com que
trabalham. Entretanto, provendo às suas necessidades materiais, eles se
constituem, inconscientemente, executores dos desígnios do Criador e,
assim, o trabalho que executam também concorre para a realização do
objetivo final da Natureza, se bem quase nunca lhe descubrais o
resultado imediato.”
678. Em os mundos mais aperfeiçoados, os
homens se acham submetidos à mesma necessidade de trabalhar? “A
natureza do trabalho está em relação com a natureza das necessidades.
Quanto menos materiais são estas, menos material é o trabalho. Mas, não
deduzais daí que o homem se conserve inativo e inútil. A ociosidade
seria um suplício, em vez de ser um benefício”.
679. Achar-se-á isento da lei do trabalho
o homem que possua bens suficientes para lhe assegurarem a existência?
“Do trabalho material, talvez; não, porém, da obrigação de tornar-se
útil, conforme aos meios de que disponha, nem de aperfeiçoar a sua
inteligência ou a dos outros, o que também é trabalho. Aquele a quem
Deus facultou a posse de bens suficientes a lhe garantirem a existência
não está, é certo, constrangido a alimentar-se com o suor do seu rosto,
mas tanto maior lhe é a obrigação de ser útil aos seus semelhantes,
quanto mais ocasiões de praticar o bem lhe proporciona o adiantamento
que lhe foi feito.”
680. Não há homens que se encontram
impossibilitados de trabalhar no que quer que seja e cuja existência é,
portanto, inútil? “Deus é justo e, pois, só condena aquele que
voluntariamente tornou inútil a sua existência, porquanto esse vive a
expensas do trabalho dos outros. Ele quer que cada um seja útil, de
acordo com as suas faculdades.” (643)
681.A lei da Natureza impõe aos filhos a
obrigação de trabalharem para seus pais? “Certamente, do mesmo modo que
os pais têm que trabalhar para seus filhos. Foi por isso que Deus fez do
amor filial e do amor paterno um sentimento natural. Foi para que, por
essa afeição recíproca, os membros de uma família se sentissem impelidos
a ajudarem-se mutuamente, o que, aliás, com muita frequência se esquece
na vossa sociedade atual.” (205)
LIMITE DO TRABALHO - REPOUSO
682. Sendo uma necessidade para todo
aquele que trabalha, o repouso não é também uma lei da Natureza? “Sem
dúvida. O repouso serve para a reparação das forças do corpo e também é
necessário para dar um pouco mais de liberdade à inteligência, a fim de
que se eleve acima da matéria.”
683. Qual o limite do trabalho? “O das forças. Em suma, a esse respeito Deus deixa inteiramente livre o homem.”
684. Que se deve pensar dos que abusam de
sua autoridade, impondo a seus inferiores excessivo trabalho? “Isso é
uma das piores ações. Todo aquele que tem o poder de mandar é
responsável pelo excesso de trabalho que imponha a seus inferiores,
porquanto, assim fazendo, transgride a lei de Deus.” (273)
685. Tem o homem o direito de repousar na
velhice? “Sim, que a nada é obrigado, senão de acordo com as suas
forças.” a) — Mas, que há de fazer o velho que precisa trabalhar para
viver e não pode? “O forte deve trabalhar para o fraco. Não tendo este
família, a sociedade deve fazer as vezes desta. É a lei de caridade.”
Não basta se diga ao homem que lhe corre o dever de trabalhar. É preciso
que aquele que tem de prover à sua existência por meio do trabalho
encontre em que se ocupar, o que nem sempre acontece. Quando se
generaliza, a suspensão do trabalho assume as proporções de um flagelo,
qual a miséria. A ciência econômica procura remédio para isso no
equilíbrio entre a produção e o consumo. Mas, esse equilíbrio, dado seja
possível estabelecer-se, sofrerá sempre intermitências, durante as
quais não deixa o trabalhador de ter que viver. Há um elemento, que se
não costuma fazer pesar na balança e sem o qual a ciência econômica não
passa de simples teoria. Esse elemento é a educação, não a educação
intelectual, mas a educação moral. Não nos referimos, porém, à educação
moral pelos livros e sim à que consiste na arte de formar os caracteres,
à que incute hábitos, porquanto a educação é o conjunto dos hábitos
adquiridos. Considerando-se a aluvião de indivíduos que todos os dias
são lançados na torrente da população, sem princípios, sem freio e
entregues a seus próprios instintos, serão de espantar as consequências
desastrosas que daí decorrem? Quando essa arte for conhecida,
compreendida e praticada, o homem terá no mundo hábitos de ordem e de
previdência para consigo mesmo e para com os seus, de respeito a tudo o
que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar menos
penosamente os maus dias inevitáveis. A desordem e a imprevidência são
duas chagas que só uma educação bem entendida pode curar. Esse o ponto
de partida, o elemento real do bem-estar, o penhor da segurança de
todos.
CAPÍ TULO I V
Da lei de reprodução
• População do globo
• Sucessão e aperfeiçoamento das raças
• Obstáculos à reprodução
• Casamento e celibato
• Poligamia
POPULAÇÃO DO GLOBO
686. É lei da Natureza a reprodução dos seres vivos? “Evidentemente. Sem a reprodução, o mundo corporal pereceria.”
687. Indo sempre a população na
progressão crescente que vemos, chegará tempo em que seja excessiva na
Terra? “Não, Deus a isso provê e mantém sempre o equilíbrio. Ele coisa
alguma inútil faz. O homem, que apenas vê um canto do quadro da
Natureza, não pode julgar da harmonia do conjunto.”
SUCESSÃO E APERFEIÇOAMENTO DAS RAÇAS
688. Há, neste momento, raças humanas que
evidentemente decrescem. Virá momento em que terão desaparecido da
Terra? “Assim acontecerá, de fato. É que outras lhes terão tomado o
lugar, como outras um dia tomarão o da vossa.”
689. Os homens atuais formam uma criação
nova, ou são descendentes aperfeiçoados dos seres primitivos? “São os
mesmos Espíritos que voltaram, para se aperfeiçoar em novos corpos, mas
que ainda estão longe da perfeição. Assim, a atual raça humana, que,
pelo seu crescimento, tende a invadir toda a Terra e a substituir as
raças que se extinguem, terá sua fase de decrescimento e de desaparição.
Substituí-la-ão outras raças mais aperfeiçoadas, que descenderão da
atual, como os homens civilizados de hoje descendem dos seres brutos e
selvagens dos tempos primitivos.”
690. Do ponto de vista físico, são de
criação especial os corpos da raça atual, ou procedem dos corpos
primitivos, mediante reprodução? “A origem das raças se perde na noite
dos tempos. Mas, como pertencem todas à grande família humana, qualquer
que tenha sido o tronco de cada uma, elas puderam aliar-se entre si e
produzir tipos novos.”
691. Qual, do ponto de vista físico, o
caráter distintivo e dominante das raças primitivas? “Desenvolvimento da
força bruta, à custa da força intelectual. Agora, dá-se o contrário: o
homem faz mais pela inteligência do que pela força do corpo. Todavia,
faz cem vezes mais, porque soube tirar proveito das forças da Natureza, o
que não conseguem os animais.”
692. Será contrário à lei da Natureza o
aperfeiçoamento das raças animais e vegetais pela Ciência? Seria mais
conforme a essa lei deixar que as coisas seguissem seu curso normal?
“Tudo se deve fazer para chegar à perfeição e o próprio homem é um
instrumento de que Deus se serve para atingir seus fins. Sendo a
perfeição a meta para que tende a Natureza, favorecer essa perfeição é
corresponder às vistas de Deus.” a) — Mas, geralmente, os esforços que o
homem emprega para conseguir a melhoria das raças nascem de um
sentimento pessoal e não objetivam senão o acréscimo de seus gozos. Isto
não lhe diminui o mérito? “Que importa seja nulo o seu merecimento,
desde que o progresso se realize? Cabe-lhe tornar meritório, pela
intenção, o seu trabalho. Demais, mediante esse trabalho, ele exercita e
desenvolve a inteligência e sob este aspecto é que maior proveito
tira.”
OBSTÁCULOS À REPRODUÇÃO
693. São contrários à lei da Natureza as
leis e os costumes humanos que têm por fim ou por efeito criar
obstáculos à reprodução? “Tudo o que embaraça a Natureza em sua marcha é
contrário à lei geral.” a) — Entretanto, há espécies de seres vivos,
animais e plantas, cuja reprodução indefinida seria nociva a outras
espécies e das quais o próprio homem acabaria por ser vítima. Pratica
ele ato repreensível, impedindo essa reprodução?
“Deus concedeu ao homem, sobre todos os
seres vivos, um poder de que ele deve usar, sem abusar. Pode, pois,
regular a reprodução, de acordo com as necessidades. Não deve
opor-se-lhe sem necessidade. A ação inteligente do homem é um contrapeso
que Deus dispôs para restabelecer o equilíbrio entre as forças da
Natureza e é ainda isso o que o distingue dos animais, porque ele obra
com conhecimento de causa. Mas, os mesmos animais também concorrem para a
existência desse equilíbrio, porquanto o instinto de destruição que
lhes foi dado faz com que, provendo à própria conservação, obstem ao
desenvolvimento excessivo, quiçá perigoso, das espécies animais e
vegetais de que se alimentam.”
694. Que se deve pensar dos usos,
cujo efeito consiste em obstar à reprodução, para satisfação da
sensualidade? “Isso prova a predominância do corpo sobre a alma e quanto
o homem é material.”
CASAMENTO E CELIBATO
695. Será contrário à lei da Natureza o
casamento, isto é, a união permanente de dois seres? “É um progresso na
marcha da Humanidade.”
696. Que efeito teria sobre a sociedade
humana a abolição do casamento? “Seria uma regressão à vida dos
animais.” O estado de natureza é o da união livre e fortuita dos sexos. O
casamento constitui um dos primeiros atos de progresso nas sociedades
humanas, porque estabelece a solidariedade fraterna e se observa entre
todos os povos, se bem que em condições diversas. A abolição do
casamento seria, pois, regredir à infância da Humanidade e colocaria o
homem abaixo mesmo de certos animais que lhe dão o exemplo de uniões
constantes.
697. Está na lei da Natureza, ou
somente na lei humana, a indissolubilidade absoluta do casamento? “É uma
lei humana muito contrária à da Natureza. Mas os homens podem modificar
suas leis; só as da Natureza são imutáveis.”
698. O celibato voluntário representa um
estado de perfeição meritório aos olhos de Deus? “Não, e os que assim
vivem, por egoísmo, desagradam a Deus e enganam o mundo.” 699. Da parte
de certas pessoas, o celibato não será um sacrifício que fazem com o fim
de se votarem, de modo mais completo, ao serviço da Humanidade? “Isso é
muito diferente. Eu disse: por egoísmo. Todo sacrifício pessoal é
meritório, quando feito para o bem. Quanto maior o sacrifício, tanto
maior o mérito.” Não é possível que Deus se contradiga, nem que ache mau
o que ele próprio fez. Nenhum mérito, portanto, pode haver na violação
da sua lei. Mas, se o celibato, em si mesmo, não é um estado meritório,
outro tanto não se dá quando constitui, pela renúncia às alegrias da
família, um sacrifício praticado em prol da Humanidade. Todo sacrifício
pessoal, tendo em vista o bem e sem qualquer idéia egoísta, eleva o
homem acima da sua condição material.
POLIGAMIA
700. A igualdade numérica, que mais ou
menos existe entre os sexos, constitui indício da proporção em que devam
unir-se? “Sim, porquanto tudo, em a Natureza, tem um fim.”
701. Qual das duas, a poligamia ou a
monogamia, é mais conforme à lei da Natureza? “A poligamia é lei humana
cuja abolição marca um progresso social. O casamento, segundo as vistas
de Deus, tem que se fundar na afeição dos seres que se unem. Na
poligamia não há afeição real: há apenas sensualidade.” Se a poligamia
fosse conforme à lei da Natureza, devera ter possibilidade de tornar-se
universal, o que seria materialmente impossível, dada a igualdade
numérica dos sexos. Deve ser considerada como um uso ou legislação
especial apropriada a certos costumes e que o aperfeiçoamento social fez
que desaparecesse pouco a pouco.
CAPÍTULO V
Da lei de conservação
• Instinto de conservação
• Meios de conservação
• Gozo dos bens terrenos
• Necessário e supérfluo
• Privações voluntárias. Mortificações
INSTINTO DE CONSERVAÇÃO
702. É lei da Natureza o instinto de
conservação? “Sem dúvida. Todos os seres vivos o possuem, qualquer que
seja o grau de sua inteligência. Nuns, é puramente maquinal, raciocinado
em outros.”
703. Com que fim outorgou Deus a todos os
seres vivos o instinto de conservação? “Porque todos têm que concorrer
para cumprimento dos desígnios da Providência. Por isso foi que Deus
lhes deu a necessidade de viver. Acresce que a vida é necessária ao
aperfeiçoamento dos seres. Eles o sentem instintivamente, sem disso se
aperceberem.”
MEIOS DE CONSERVAÇÃO
704. Tendo dado ao homem a necessidade de
viver, Deus lhe facultou, em todos os tempos, os meios de o conseguir?
“Certo, e se ele os não encontra, é que não os compreende. Não fora
possível que Deus criasse para o homem a necessidade de viver, sem lhe
dar os meios de consegui-lo. Essa a razão por que faz que a Terra
produza de modo a proporcionar o necessário aos que a habitam, visto que
só o necessário é útil. O supérfluo nunca o é.”
705. Por que nem sempre a terra produz
bastante para fornecer ao homem o necessário? “É que, ingrato, o homem a
despreza! Ela, no entanto, é excelente mãe. Muitas vezes, também, ele
acusa a Natureza do que só é resultado da sua imperícia ou da sua
imprevidência. A terra produziria sempre o necessário, se com o
necessário soubesse o homem contentar-se. Se o que ela produz não lhe
basta a todas as necessidades, é que ele emprega no supérfluo o que
poderia ser aplicado no necessário. Olha o árabe no deserto. Acha sempre
de que viver, porque não cria para si necessidades factícias. Desde que
haja desperdiçado a metade dos produtos em satisfazer a fantasias, que
motivos tem o homem para se espantar de nada encontrar no dia seguinte e
para se queixar de estar desprovido de tudo, quando chegam os dias de
penúria? Em verdade vos digo, imprevidente não é a Natureza, é o homem,
que não sabe regrar o seu viver.”
706. Por bens da Terra unicamente se
devem entender os produtos do solo? “O solo é a fonte primacial donde
dimanam todos os outros recursos, pois que, em definitivo, estes
recursos são simples transformações dos produtos do solo. Por bens da
Terra se deve, pois, entender tudo de que o homem pode gozar neste
mundo.”
707. É frequente a certos indivíduos
faltarem os meios de subsistência, ainda quando os cerca a abundância. A
que se deve atribuir isso? “Ao egoísmo dos homens, que nem sempre fazem
o que lhes cumpre. Depois e as mais das vezes, devem-no a si mesmos.
Buscai e achareis; estas palavras não querem dizer que, para achar o que
deseje, basta que o homem olhe para a terra, mas que lhe é preciso
procurá-lo, não com indolência, e sim com ardor e perseverança, sem
desanimar ante os obstáculos, que muito amiúde são simples meios de que
se utiliza a Providência, para lhe experimentar a constância, a
paciência e a firmeza.” (534) Se é certo que a Civilização multiplica as
necessidades, também o é que multiplica as fontes de trabalho e os
meios de viver. Forçoso, porém, é convir em que, a tal respeito, muito
ainda lhe resta por fazer. Quando ela houver concluído a sua obra,
ninguém deverá haver que possa queixar-se de lhe faltar o necessário, a
não ser por sua própria culpa. A desgraça, para muitos, provém de
enveredarem por uma senda diversa da que a Natureza lhes traça. É então
que lhes falece a inteligência para o bom êxito. Para todos há lugar ao
Sol, mas com a condição de que cada um ocupe o seu e não o dos outros. A
Natureza não pode ser responsável pelos defeitos da organização social,
nem pelas consequências da ambição e do amor-próprio. Fora preciso,
entretanto, ser-se cego, para se não reconhecer o progresso que, por
esse lado, têm feito os povos mais adiantados. Graças aos louváveis
esforços que, juntas, a Filantropia e a Ciência não cessam de despender
para melhorar a condição material dos homens e malgrado ao crescimento
incessante das populações, a insuficiência da produção se acha atenuada,
pelo menos em grande parte, e os anos mais calamitosos do presente não
se podem de modo algum comparar aos de outrora. A higiene pública,
elemento tão essencial da força e da saúde, a higiene pública, que
nossos pais não conheceram, é objeto de esclarecida solicitude. O
infortúnio e o sofrimento encontram onde se refugiem. Por toda parte a
Ciência contribui para acrescer o bem-estar. Poder-se-á dizer que já se
haja chegado à perfeição? Oh! não, certamente; mas, o que já se fez
deixa prever o que, com perseverança, se logrará conseguir, se o homem
se mostrar bastante avisado para procurar a sua felicidade nas coisas
positivas e sérias e não em utopias que o levam a recuar em vez de
fazê-lo avançar.
708. Não há situações em as quais os
meios de subsistência de maneira alguma dependem da vontade do homem,
sendo-lhe a privação do de que mais imperiosamente necessita uma
consequência da força mesma das coisas? “É isso uma prova, muitas vezes
cruel, que lhe compete sofrer e à qual sabia ele de antemão que viria a
estar exposto. Seu mérito então consiste em submeter-se à vontade de
Deus, desde que a sua inteligência nenhum meio lhe faculta de sair da
dificuldade. Se a morte vier colhê-lo, cumpre-lhe recebê-la sem
murmurar, ponderando que a hora da verdadeira libertação soou e que o
desespero no derradeiro momento pode ocasionar-lhe a perda do fruto de
toda a sua resignação.”
709. Terão cometido crime os que, em
certas situações críticas, se viram na contingência de sacrificar seus
semelhantes, para matar a fome? Se houve crime, não teve este a
atenuá-lo a necessidade de viver, que resulta do instinto de
conservação? “Já respondi, quando disse que há mais merecimento em
sofrer todas as provações da vida com coragem e abnegação. Em tal caso,
há homicídio e crime de lesa-natureza, falta que é duplamente punida.”
710. Nos mundos de mais apurada
organização, têm os seres vivos necessidade de alimentar-se? “Têm, mas
seus alimentos estão em relação com a sua natureza. Tais alimentos não
seriam bastante substanciosos para os vossos estômagos grosseiros; assim
como os deles não poderiam digerir os vossos alimentos.”
GOZO DOS BENS TERRENOS
711. O uso dos bens da Terra é um direito
de todos os homens? “Esse direito é consequente da necessidade de
viver. Deus não imporia um dever sem dar ao homem o meio de cumpri-lo.”
712. Com que fim pôs Deus atrativos no
gozo dos bens materiais? “Para instigar o homem ao cumprimento da sua
missão e para experimentá-lo por meio da tentação.” a) — Qual o objetivo
dessa tentação? “Desenvolver-lhe a razão, que deve preservá-lo dos
excessos”.
Se o homem só fosse instigado a usar dos
bens terrenos pela utilidade que têm, sua indiferença houvera talvez
comprometido a harmonia do Universo. Deus imprimiu a esse uso o atrativo
do prazer, porque assim é o homem impelido ao cumprimento dos desígnios
providenciais. Mas, além disso, dando àquele uso esse atrativo, quis
Deus também experimentar o homem por meio da tentação, que o arrasta
para o abuso, de que deve a razão defendê-lo.
713. Traçou a Natureza limites aos gozos?
“Traçou, para vos indicar o limite do necessário. Mas, pelos vossos
excessos, chegais à saciedade e vos punis a vós mesmos.”
714. Que se deve pensar do homem que
procura nos excessos de todo gênero o requinte dos gozos? “Pobre
criatura! mais digna é de lástima que de inveja, pois bem perto está da
morte!” a) — Perto da morte física, ou da morte moral? “De ambas.” O
homem, que procura nos excessos de todo gênero o requinte do gozo,
coloca-se abaixo do bruto, pois que este sabe deter-se, quando
satisfeita a sua necessidade. Abdica da razão que Deus lhe deu por guia e
quanto maiores forem seus excessos, tanto maior preponderância confere
ele à sua natureza animal sobre a sua natureza espiritual. As doenças,
as enfermidades e, ainda, a morte, que resultam do abuso, são, ao mesmo
tempo, o castigo à transgressão da lei de Deus.
NECESSÁRIO E SUPÉRFLUO
715. Como pode o homem conhecer o limite
do necessário? “Aquele que é ponderado o conhece por intuição. Muitos só
chegam a conhecê-lo por experiência e à sua própria custa.”
716. Mediante a organização que nos deu,
não traçou a Natureza o limite das nossas necessidades? “Sem dúvida, mas
o homem é insaciável. Por meio da organização que lhe deu, a Natureza
lhe traçou o limite das necessidades; porém, os vícios lhe alteraram a
constituição e lhe criaram necessidades que não são reais.”
717. Que se há de pensar dos que
açambarcam os bens da Terra para se proporcionarem o supérfluo, com
prejuízo daqueles a quem falta o necessário? “Olvidam a lei de Deus e
terão que responder pelas privações que houverem causado aos outros.”
Nada tem de absoluto o limite entre o necessário e o supérfluo. A
Civilização criou necessidades que o selvagem desconhece e os Espíritos
que ditaram os preceitos acima não pretendem que o homem civilizado deva
viver como o selvagem. Tudo é relativo, cabendo à razão regrar as
coisas. A Civilização desenvolve o senso moral e, ao mesmo tempo, o
sentimento de caridade, que leva os homens a se prestarem mútuo apoio.
Os que vivem à custa das privações dos outros exploram, em seu proveito,
os benefícios da Civilização. Desta têm apenas o verniz, como muitos há
que da religião só têm a máscara.
PRIVAÇÕES VOLUNTÁRIAS. MORTIFICAÇÕES
718. A lei de conservação obriga o homem a
prover às necessidades do corpo? “Sim, porque, sem força e saúde,
impossível é o trabalho.”
719. Merece censura o homem, por procurar
o bem-estar? “É natural o desejo do bem-estar. Deus só proíbe o abuso,
por ser contrário à conservação. Ele não condena a procura do bem-estar,
desde que não seja conseguido à custa de outrem e não venha a
diminuir-vos nem as forças físicas, nem as forças morais.”
720. São meritórias aos olhos de Deus as
privações voluntárias, com o objetivo de uma expiação igualmente
voluntária? “Fazei o bem aos vossos semelhantes e mais mérito tereis.”
a) — Haverá privações voluntárias que sejam meritórias? “Há: a privação
dos gozos inúteis, porque desprende da matéria o homem e lhe eleva a
alma. Meritório é resistir à tentação que arrasta ao excesso ou ao gozo
das coisas inúteis; é o homem tirar do que lhe é necessário para dar aos
que carecem do bastante. Se a privação não passar de simulacro, será
uma irrisão.”
721. É meritória, de qualquer ponto
de vista, a vida de mortificações ascéticas que desde a mais remota
antiguidade teve praticantes no seio de diversos povos? “Procurai saber a
quem ela aproveita e tereis a resposta. Se somente serve para quem a
pratica e o impede de fazer o bem, é egoísmo, seja qual for o pretexto
com que entendam de colori-la. Privar-se a si mesmo e trabalhar para os
outros, tal a verdadeira mortificação, segundo a caridade cristã.”
722.
Será racional a abstenção de certos alimentos, prescrita a diversos
povos? “Permitido é ao homem alimentar-se de tudo o que lhe não
prejudique a saúde. Alguns legisladores, porém, com um fim útil,
entenderam de interdizer o uso de certos alimentos e, para maior
autoridade imprimirem às suas leis, apresentaram-nas como emanadas de
Deus.”
723. A alimentação animal é, com relação
ao homem, contrária à lei da Natureza? “Dada a vossa constituição
física, a carne alimenta a carne, do contrário o homem perece. A lei de
conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua
saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se alimentar
conforme o reclame a sua organização.”
724. Será meritório abster-se o homem da
alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação? “Sim, se
praticar essa privação em benefício dos outros. Aos olhos de Deus,
porém, só há mortificação, havendo privação séria e útil. Por isso é que
qualificamos de hipócritas os que apenas aparentemente se privam de
alguma coisa.” (720)
725. Que se deve pensar das
mutilações operadas no corpo do homem ou dos animais? “A que propósito,
semelhante questão? Ainda uma vez: inquiri sempre vós mesmos se é útil
aquilo de que porventura se trate. A Deus não pode agradar o que seja
inútil e o que for nocivo lhe será sempre desagradável. Porque, ficai
sabendo, Deus só é sensível aos sentimentos que elevam para ele a alma.
Obedecendo-lhe à lei e não a violando é que podereis forrar-vos ao jugo
da vossa matéria terrestre.”
726. Visto que os sofrimentos deste mundo
nos elevam, se os suportarmos devidamente, dar-se-á que também nos
elevam os que nós mesmos nos criamos? “Os sofrimentos naturais são os
únicos que elevam, porque vêm de Deus. Os sofrimentos voluntários de
nada servem, quando não concorrem para o bem de outrem. Supões que se
adiantam no caminho do progresso os que abreviam a vida, mediante
rigores sobre-humanos, como o fazem os bonzos, os faquires e alguns
fanáticos de muitas seitas? Por que de preferência não trabalham pelo
bem de seus semelhantes? Vistam o indigente; consolem o que chora;
trabalhem pelo que está enfermo; sofram privações para alívio dos
infelizes e então suas vidas serão úteis e, portanto, agradáveis a Deus.
Sofrer alguém voluntariamente, apenas por seu próprio bem, é egoísmo;
sofrer pelos outros é caridade: tais os preceitos do Cristo.”
727. Uma vez que não devemos criar
sofrimentos voluntários, que nenhuma utilidade tenham para outrem,
deveremos cuidar de preservar-nos dos que prevejamos ou nos ameacem?
“Contra os perigos e os sofrimentos é que o instinto de conservação foi
dado a todos os seres. Fustigai o vosso espírito e não o vosso corpo,
mortificai o vosso orgulho, sufocai o vosso egoísmo, que se assemelha a
uma serpente a vos roer o coração, e fareis muito mais pelo vosso
adiantamento do que infringindo-vos rigores que já não são deste
século.”
CAPÍTULO VI
Da lei de destruição
• Destruição necessária e destruição abusiva
• Flagelos destruidores
• Guerras
• Assassínio
• Crueldade
• Duelo
• Pena de morte
DESTRUIÇÃO NECESSÁRIA E DESTRUIÇÃO ABUSIVA
728. É lei da Natureza a destruição?
“Preciso é que tudo se destrua para renascer e se regenerar. Porque, o
que chamais destruição não passa de uma transformação, que tem por fim a
renovação e melhoria dos seres vivos”. a) — O instinto de
destruição teria sido dado aos seres vivos por desígnios providenciais?
“As criaturas são instrumentos de que Deus se serve para chegar aos fins
que objetiva. Para se alimentarem, os seres vivos reciprocamente se
destroem, destruição esta que obedece a um duplo fim: manutenção do
equilíbrio na reprodução, que poderia tornar-se excessiva, e utilização
dos despojos do invólucro exterior que sofre a destruição. Esse
invólucro é simples acessório e não a parte essencial do ser pensante. A
parte essencial é o princípio inteligente, que não se pode destruir e
se elabora nas metamorfoses diversas por que passa.”
729. Se a regeneração dos seres faz
necessária a destruição, por que os cerca a Natureza de meios de
preservação e conservação? “A fim de que a destruição não se dê antes de
tempo. Toda destruição antecipada obsta ao desenvolvimento do princípio
inteligente. Por isso foi que Deus fez que cada ser experimentasse a
necessidade de viver e de se reproduzir.”
730. Uma vez que a morte nos faz passar a
uma vida melhor, nos livra dos males desta, sendo, pois, mais de
desejar do que de temer, por que lhe tem o homem, instintivamente, tal
horror, que ela lhe é sempre motivo de apreensão? “Já dissemos que o
homem deve procurar prolongar a vida, para cumprir a sua tarefa. Tal o
motivo por que Deus lhe deu o instinto de conservação, instinto que o
sustenta nas provas. A não ser assim, ele muito frequentemente se
entregaria ao desânimo. A voz íntima, que o induz a repelir a morte, lhe
diz que ainda pode realizar alguma coisa pelo seu progresso. A ameaça
de um perigo constitui aviso, para que se aproveite da dilação que Deus
lhe concede. Mas, ingrato, o homem rende graças mais vezes à sua estrela
do que ao seu Criador.”
731. Por que, ao lado dos meios de
conservação, colocou a Natureza os agentes de destruição? “É o remédio
ao lado do mal. Já dissemos: para manter o equilíbrio e servir de
contrapeso.”
732. Será idêntica, em todos os mundos, a
necessidade de destruição? “Guarda proporções com o estado mais ou
menos material dos mundos. Cessa, quando o físico e o moral se acham
mais depurados. Muito diversas são as condições de existência nos mundos
mais adiantados do que o vosso.”
733. Entre os homens da Terra existirá
sempre a necessidade da destruição? “Essa necessidade se enfraquece no
homem, à medida que o Espírito sobrepuja a matéria. Assim é que, como
podeis observar, o horror à destruição cresce com o desenvolvimento
intelectual e moral.”
734. Em seu estado atual, tem o homem
direito ilimitado de destruição sobre os animais? “Tal direito se acha
regulado pela necessidade, que ele tem, de prover ao seu sustento e à
sua segurança. O abuso jamais constituiu direito.”
735. Que se deve pensar da destruição,
quando ultrapassa os limites que as necessidades e a segurança traçam?
Da caça, por exemplo, quando não objetiva senão o prazer de destruir sem
utilidade? “Predominância da bestialidade sobre a natureza espiritual.
Toda destruição que excede os limites da necessidade é uma violação da
lei de Deus. Os animais só destroem para satisfação de suas
necessidades; enquanto que o homem, dotado de livre-arbítrio, destrói
sem necessidade. Terá que prestar contas do abuso da liberdade que lhe
foi concedida, pois isso significa que cede aos maus instintos.”
736. Especial merecimento terão os povos
que levam ao excesso o escrúpulo, quanto à destruição dos animais? “Esse
excesso, no tocante a um sentimento louvável em si mesmo, se torna
abusivo e o seu merecimento fica neutralizado por abusos de muitas
outras espécies. Entre tais povos, há mais temor supersticioso do que
verdadeira bondade.”
FLAGELOS DESTRUIDORES
737. Com que fim fere Deus a Humanidade
por meio de flagelos destruidores? “Para fazê-la progredir mais
depressa. Já não dissemos ser a destruição uma necessidade para a
regeneração moral dos Espíritos, que, em cada nova existência, sobem um
degrau na escala do aperfeiçoamento? Preciso é que se veja o objetivo,
para que os resultados possam ser apreciados. Somente do vosso ponto de
vista pessoal os apreciais; daí vem que os qualificais de flagelos, por
efeito do prejuízo que vos causam. Essas subversões, porém, são
frequentemente necessárias para que mais pronto se dê o advento de uma
melhor ordem de coisas e para que se realize em alguns anos o que teria
exigido muitos séculos.” (744)
738. Para conseguir a melhora da
Humanidade, não podia Deus empregar outros meios que não os flagelos
destruidores? “Pode e os emprega todos os dias, pois que deu a cada um
os meios de progredir pelo conhecimento do bem e do mal. O homem, porém
não se aproveita desses meios. Necessário, portanto, se torna que seja
castigado no seu orgulho e que se lhe faça sentir a sua fraqueza.”
a) — Mas, nesses flagelos, tanto sucumbe o
homem de bem como o perverso. Será justo isso? “Durante a vida, o homem
tudo refere ao seu corpo; entretanto, de maneira diversa pensa depois
da morte. Ora, conforme temos dito, a vida do corpo bem pouca coisa é.
Um século no vosso mundo não passa de um relâmpago na eternidade. Logo,
nada são os sofrimentos de alguns dias ou de alguns meses, de que tanto
vos queixais. Representam um ensino que se vos dá e que vos servirá no
futuro. Os Espíritos, que preexistem e sobrevivem a tudo, formam o mundo
real (85). Esses os filhos de Deus e o objeto de toda a sua solicitude.
Os corpos são meros disfarces com que eles aparecem no mundo. Por
ocasião das grandes calamidades que dizimam os homens, o espetáculo é
semelhante ao de um exército cujos soldados, durante a guerra, ficassem
com seus uniformes estragados, rotos, ou perdidos. O general se preocupa
mais com seus soldados do que com os uniformes deles.” b) — Mas, nem
por isso as vítimas desses flagelos deixam de o ser. “Se considerásseis a
vida qual ela é e quão pouca coisa representa com relação ao infinito,
menos importância lhe daríeis. Em outra vida, essas vítimas acharão
ampla compensação aos seus sofrimentos, se souberem suportá-los sem
murmurar.” Venha por um flagelo a morte, ou por uma causa comum, ninguém
deixa por isso de morrer, desde que haja soado a hora da partida. A
única diferença, em caso de flagelo, é que maior número parte ao mesmo
tempo. Se, pelo pensamento, pudéssemos elevar-nos de maneira a dominar a
Humanidade e a abrangê-la em seu conjunto, esses tão terríveis flagelos
não nos pareceriam mais do que passageiras tempestades no destino do
mundo.
739. Têm os flagelos destruidores
utilidade, do ponto de vista físico, não obstante os males que
ocasionam? “Têm. Muitas vezes mudam as condições de uma região. Mas, o
bem que deles resulta só as gerações vindouras o experimentam.”
740. Não serão os flagelos, igualmente,
provas morais para o homem, por porem-no a braços com as mais aflitivas
necessidades? “Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de
exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua paciência e resignação
ante a vontade de Deus e que lhe oferecem ensejo de manifestar seus
sentimentos de abnegação, de desinteresse e de amor ao próximo, se o não
domina o egoísmo.”
741. Dado é ao homem conjurar os flagelos
que o afligem? “Em parte, é; não, porém, como geralmente o entendem.
Muitos flagelos resultam da imprevidência do homem. À medida que adquire
conhecimentos e experiência, ele os vai podendo conjurar, isto é,
prevenir, se lhes sabe pesquisar as causas. Contudo, entre os males que
afligem a Humanidade, alguns há de caráter geral, que estão nos decretos
da Providência e dos quais cada indivíduo recebe, mais ou menos, o
contragolpe. A esses nada pode o homem opor, a não ser sua submissão à
vontade de Deus. Esses mesmos males, entretanto, ele muitas vezes os
agrava pela sua negligência.”
Na primeira linha dos flagelos
destruidores, naturais e independentes do homem, devem ser colocados a
peste, a fome, as inundações, as intempéries fatais às produções da
terra. Não tem, porém, o homem encontrado na Ciência, nas obras de arte,
no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irriga- ções,
no estudo das condições higiênicas, meios de impedir, ou, quando menos,
de atenuar muitos desastres? Certas regiões, outrora assoladas por
terríveis flagelos, não estão hoje preservadas deles? Que não fará,
portanto, o homem pelo seu bem-estar material, quando souber
aproveitar-se de todos os recursos da sua inteligência e quando, aos
cuidados da sua conservação pessoal, souber aliar o sentimento de
verdadeira caridade para com os seus semelhantes? (707)
GUERRAS
742. Que é o que impele o homem à guerra?
“Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e
transbordamento das paixões. No estado de barbaria, os povos um só
direito conhecem — o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o
de guerra é um estado normal. À medida que o homem progride, menos
frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas, fazendo-a
com humanidade, quando a sente necessária.”
743. Da face da Terra, algum dia, a
guerra desaparecerá? “Sim, quando os homens compreenderem a justiça e
praticarem a lei de Deus. Nessa época, todos os povos serão irmãos.”
744. Que objetivou a Providência, tornando necessária a guerra? “A liberdade e o progresso.”
a) — Desde que a guerra deve ter por
efeito produzir o advento da liberdade, como pode frequentemente ter por
objetivo e resultado a escravização? “Escravização temporária, para
esmagar os povos, a fim de fazê-los progredir mais depressa.”
745. Que se deve pensar daquele que
suscita a guerra para proveito seu? “Grande culpado é esse e muitas
existências lhe serão necessárias para expiar todos os assassínios de
que haja sido causa, porquanto responderá por todos os homens cuja morte
tenha causado para satisfazer à sua ambição.”
ASSASSÍNIO
746. É crime aos olhos de Deus o
assassínio? “Grande crime, pois que aquele que tira a vida ao seu
semelhante corta o fio de uma existência de expiação ou de missão. Aí é
que está o mal.”
747. É sempre do mesmo grau a
culpabilidade em todos os casos de assassínio? “Já o temos dito: Deus é
justo, julga mais pela intenção do que pelo fato.”
748. Em caso de legítima defesa, escusa
Deus o assassínio? “Só a necessidade o pode escusar. Mas, desde que o
agredido possa preservar sua vida, sem atentar contra a de seu agressor,
deve fazê-lo.”
749. Tem o homem culpa dos assassínios
que pratica durante a guerra? “Não, quando constrangido pela força; mas é
culpado das crueldades que cometa, sendo-lhe também levado em conta o
sentimento de humanidade com que proceda.”
750. Qual o mais condenável aos olhos de
Deus, o parricídio ou o infanticídio? “Ambos o são igualmente, porque
todo crime é um crime.”
751. Como se explica que entre alguns
povos, já adiantados sob o ponto de vista intelectual, o infanticídio
seja um costume e esteja consagrado pela legislação? “O desenvolvimento
intelectual não implica a necessidade do bem. Um Espírito, superior em
inteligência, pode ser mau. Isso se dá com aquele que muito tem vivido
sem se melhorar: apenas sabe.”
CRUELDADE
752. Poder-se-á ligar o sentimento de
crueldade ao instinto de destruição? “É o instinto de destruição no que
tem de pior, porquanto, se, algumas vezes, a destruição constitui uma
necessidade, com a crueldade jamais se dá o mesmo. Ela resulta sempre de
uma natureza má.”
753. Por que razão a crueldade forma o
caráter predominante dos povos primitivos? “Nos povos primitivos, como
lhes chamas, a matéria prepondera sobre o Espírito. Eles se entregam aos
instintos do bruto e, como não experimentam outras necessidades além
das da vida do corpo, só da conservação pessoal cogitam e é o que os
torna, em geral, cruéis. Demais, os povos de imperfeito desenvolvimento
se conservam sob o império de Espíritos também imperfeitos, que lhes são
simpáticos, até que povos mais adiantados venham destruir ou
enfraquecer essa influência.”
754. A crueldade não derivará da carência
de senso moral? “Dize — da falta de desenvolvimento do senso moral; não
digas da carência, porquanto o senso moral existe, como princípio, em
todos os homens. É esse senso moral que dos seres cruéis fará mais tarde
seres bons e humanos. Ele, pois, existe no selvagem, mas como o
princípio do perfume no gérmen da flor que ainda não desabrochou.” Em
estado rudimentar ou latente, todas as faculdades existem no homem.
Desenvolvem-se, conforme lhes sejam mais ou menos favoráveis as
circunstâncias. O desenvolvimento excessivo de umas detém ou neutraliza o
das outras. A sobre-excitação dos instintos materiais abafa, por assim
dizer, o senso moral, como o desenvolvimento do senso moral enfraquece
pouco a pouco as faculdades puramente animais.
755. Como pode dar-se que, no seio da
mais adiantada civilização, se encontrem seres às vezes tão cruéis
quanto os selvagens? “Do mesmo modo que numa árvore carregada de bons
frutos se encontram verdadeiros abortos. São, se quiseres, selvagens que
da civilização só têm o exterior, lobos extraviados em meio de
cordeiros. Espíritos de ordem inferior e muito atrasados podem encarnar
entre homens adiantados, na esperança de também se adiantarem. Mas,
desde que a prova é por demais pesada, predomina a natureza primitiva.”
756. A sociedade dos homens de bem se
verá algum dia expurgada dos seres malfazejos? “A Humanidade progride.
Esses homens, em quem o instinto do mal domina e que se acham deslocados
entre pessoas de bem, desaparecerão gradualmente, como o mau grão se
separa do bom, quando este é joeirado. Mas, desaparecerão para renascer
sob outros invólucros. Como então terão mais experiência, compreenderão
melhor o bem e o mal. Tens disso um exemplo nas plantas e nos animais
que o homem há conseguido aperfeiçoar, desenvolvendo neles qualidades
novas. Pois bem, só ao cabo de muitas gerações o desenvolvimento se
torna completo. É a imagem das diversas existências do homem.”
DUELO
757. Pode-se considerar o duelo como um
caso de legítima defesa? “Não; é um assassínio e um costume absurdo,
digno dos bárbaros. Com uma civilização mais adiantada e mais moral, o
homem compreenderá que o duelo é tão ridículo quanto os combates que
outrora se consideravam como o juízo de Deus.”
758. Poder-se-á considerar o duelo como
um assassínio por parte daquele que, conhecendo a sua própria fraqueza,
tem a quase certeza de que sucumbirá? “É um suicídio.” a) — E quando as
probabilidades são as mesmas para ambos os duelistas, haverá assassínio
ou suicídio? “Um e outro.” Em todos os casos, mesmo quando as
probabilidades são idênticas para ambos os combatentes, o duelista
incorre em culpa, primeiro, porque atenta friamente e de propósito
deliberado contra a vida de seu semelhante; depois, porque expõe
inutilmente a sua própria vida, sem proveito para ninguém.
759. Que valor tem o que se chama ponto
de honra, em matéria de duelo? “Orgulho e vaidade: dupla chaga da
Humanidade.” a) — Mas, não há casos em que a honra se acha
verdadeiramente empenhada e em que uma recusa fora covardia? “Isso
depende dos usos e costumes. Cada país e cada século tem a esse respeito
um modo de ver diferente. Quando os homens forem melhores e estiverem
mais adiantados em moral, compreenderão que o verdadeiro ponto de honra
está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando
matar, que repararão agravos.” Há mais grandeza e verdadeira honra em
confessar-se culpado o homem, se cometeu alguma falta, ou em perdoar, se
de seu lado esteja a razão, e, qualquer que seja o caso, em desprezar
os insultos, que o não podem atingir.
PENA DE MORTE
760. Desaparecerá algum dia, da
legislação humana, a pena de morte? “Incontestavelmente desaparecerá e a
sua supressão assinalará um progresso da Humanidade. Quando os homens
estiverem mais esclarecidos, a pena de morte será completamente abolida
na Terra. Não mais precisarão os homens de ser julgados pelos homens.
Refiro-me a uma época ainda muito distante de vós.” Sem dúvida, o
progresso social ainda muito deixa a desejar. Mas, seria injusto para
com a sociedade moderna quem não visse um progresso nas restrições
postas à pena de morte, no seio dos povos mais adiantados, e à natureza
dos crimes a que a sua aplicação se acha limitada. Se compararmos as
garantias de que, entre esses mesmos povos, a justiça procura cercar o
acusado, a humanidade de que usa para com ele, mesmo quando o reconhece
culpado, com o que se praticava em tempos que ainda não vão muito longe,
não poderemos negar o avanço do gênero humano na senda do progresso.
761. A lei de conservação dá ao homem o
direito de preservar sua vida. Não usará ele desse direito, quando
elimina da sociedade um membro perigoso? ‘Há outros meios de ele se
preservar do perigo, que não matando. Demais, é preciso abrir e não
fechar ao criminoso a porta do arrependimento.
762. A pena de morte, que pode vir a ser
banida das sociedades civilizadas, não terá sido de necessidade em
épocas menos adiantadas? “Necessidade não é o termo. O homem julga
necessária uma coisa, sempre que não descobre outra melhor. À proporção
que se instrui, vai compreendendo melhormente o que é justo e o que é
injusto e repudia os excessos cometidos, nos tempos de ignorância, em
nome da justiça.”
763. Será um indício de progresso da
civilização a restrição dos casos em que se aplica a pena de morte?
“Podes duvidar disso? Não se revolta o teu Espírito, quando lês a
narrativa das carnificinas humanas que outrora se faziam em nome da
justiça e, não raro, em honra da Divindade; das torturas que se
infligiam ao condenado e até ao simples acusado, para lhe arrancar, pela
agudeza do sofrimento, a confissão de um crime que muitas vezes não
cometera? Pois bem! Se houvesses vivido nessas épocas, terias achado
tudo isso natural e talvez mesmo, se foras juiz, fizesses outro tanto.
Assim é que o que pareceu justo, numa época, parece bárbaro em outra. Só
as leis divinas são eternas; as humanas mudam com o progresso e
continuarão a mudar, até que tenham sido postas de acordo com aquelas.”
764. Disse Jesus: Quem matou com a
espada, pela espada perecerá. Estas palavras não consagram a pena de
talião e, assim, a morte dada ao assassino não constitui uma aplicação
dessa pena? “Tomai cuidado! Muito vos tendes enganado a respeito dessas
palavras, como acerca de outras. A pena de talião é a justiça de Deus. É
Deus quem a aplica. Todos vós sofreis essa pena a cada instante, pois
que sois punidos naquilo em que haveis pecado, nesta existência ou em
outra. Aquele que foi causa do sofrimento para seus semelhantes virá a
achar-se numa condição em que sofrerá o que tenha feito sofrer. Este o
sentido das palavras de Jesus. Mas, não vos disse ele também: Perdoai
aos vossos inimigos? E não vos ensinou a pedir a Deus que vos perdoe as
ofensas como houverdes vós mesmos perdoado, isto é, na mesma proporção
em que houverdes perdoado, compreendei-o bem?”
765. Que se deve pensar da pena de morte
imposta em nome de Deus? “É tomar o homem o lugar de Deus na
distribuição da justiça. Os que assim procedem mostram quão longe estão
de compreender Deus e que muito ainda têm que expiar. A pena de morte é
um crime, quando aplicada em nome de Deus; e os que a impõem se
sobrecarregam de outros tantos assassínios.”
CAPÍTULO VII
Da lei de sociedade
• Necessidade da vida social
• Vida de insulamento. Voto de silêncio
• Laços de família
NECESSIDADE DA VIDA SOCIAL
766. A vida social está em a Natureza?
“Certamente. Deus fez o homem para viver em sociedade. Não lhe deu
inutilmente a palavra e todas as outras faculdades necessárias à vida de
relação.”
767. É contrário à lei da Natureza o
insulamento absoluto? “Sem dúvida, pois que por instinto os homens
buscam a sociedade e todos devem concorrer para progresso, auxiliando-se
mutuamente.”
768. Procurando a sociedade, não fará o
homem mais do que obedecer a um sentimento pessoal, ou há nesse
sentimento algum providencial objetivo de ordem mais geral? “O homem tem
que progredir. Insulado, não lhe é isso possível, por não dispor de
todas as faculdades. Falta-lhe o contato com os outros homens. No
insulamento, ele se embrutece e estiola.” Homem nenhum possui faculdades
completas. Mediante a união social é que elas umas às outras se
completam, para lhe assegurarem o bem-estar e o progresso. Por isso é
que, precisando uns dos outros, os homens foram feitos para viver em
sociedade e não insulados.
VIDA DE INSULAMENTO. VOTO DE SILÊNCIO
769. Concebe-se que, como princípio
geral, a vida social esteja na Natureza. Mas, uma vez que também todos
os gostos estão na Natureza, por que será condenável o do insulamento
absoluto, desde que cause satisfação ao homem? “Satisfação egoísta.
Também há homens que experimentam satisfação na embriaguez. Merece-te
isso aprovação? Não pode agradar a Deus uma vida pela qual o homem se
condena a não ser útil a ninguém.”
770. Que se deve pensar dos que vivem em
absoluta reclusão, fugindo ao pernicioso contato do mundo? “Duplo
egoísmo.” a) — Mas, não será meritório esse retraimento, se tiver por
fim uma expiação, impondo-se aquele que o busca uma privação penosa?
“Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação.
Evitando um mal, aquele que por tal motivo se insula cai noutro, pois
esquece a lei de amor e de caridade.”
771. Que pensar dos que fogem do mundo
para se votarem ao mister de socorrer os desgraçados? “Esses se elevam,
rebaixando-se. Têm o duplo mérito de se colocarem acima dos gozos
materiais e de fazerem o bem, obedecendo à lei do trabalho.” a) — E dos
que buscam no retiro a tranquilidade que certos trabalhos reclamam?
“Isso não é retraimento absoluto do egoísta. Esses não se insulam da
sociedade, porquanto para ela trabalham.”
772. Que pensar do voto de silêncio
prescrito por algumas seitas, desde a mais remota antiguidade?
“Perguntai, antes, a vós mesmos se a palavra é faculdade natural e por
que Deus a concedeu ao homem. Deus condena o abuso e não o uso das
faculdades que lhe outorgou. Entretanto, o silêncio é útil, pois no
silêncio pões em prática o recolhimento; teu espírito se torna mais
livre e pode entrar em comunicação conosco. Mas o voto de silêncio é uma
tolice. Sem dúvida obedecem a boa intenção os que consideram essas
privações como atos de virtude. Enganam-se, no entanto, porque não
compreendem suficientemente as verdadeiras leis de Deus.” O voto de
silêncio absoluto, do mesmo modo que o voto de insulamento, priva o
homem das relações sociais que lhe podem facultar ocasiões de fazer o
bem e de cumprir a lei do progresso.
LAÇOS DE FAMÍLIA
773. Por que é que, entre os animais, os
pais e os filhos deixam de reconhecer-se, desde que estes não mais
precisam de cuidados?
774. Há pessoas que, do fato de os
animais ao cabo de certo tempo abandonarem suas crias, deduzem não serem
os laços de família, entre os homens, mais do que resultado dos
costumes sociais e não efeito de uma lei da Natureza. Que devemos pensar
a esse respeito? “Diverso do dos animais é o destino do homem. Por que,
então, quererem identificá-lo com estes? Há no homem alguma coisa mais,
além das necessidades físicas: há a necessidade de progredir. Os laços
sociais são necessários ao progresso e os de família mais apertados
tornam os primeiros. Eis por que os segundos constituem uma lei da
Natureza. Quis Deus que, por essa forma, os homens aprendessem a amar-se
como irmãos.” (205)
775. Qual seria, para a sociedade, o resultado do relaxamento dos laços de família? “Uma recrudescência do egoísmo.”
CAPÍTULO VIII
Da lei do progresso
• Estado de natureza
• Marcha do progresso
• Povos degenerados
• Civilização
• Progresso da legislação humana
• Influência do Espiritismo no progresso
ESTADO DE NATUREZA
776. Serão coisas idênticas o estado de
natureza e a lei natural? “Não, o estado de natureza é o estado
primitivo. A civilização é incompatível com o estado de natureza, ao
passo que a lei natural contribui para o progresso da Humanidade.” O
estado de natureza é a infância da Humanidade e o ponto de partida do
seu desenvolvimento intelectual e moral. Sendo perfectível e trazendo em
si o gérmen do seu aperfeiçoamento, o homem não foi destinado a viver
perpetuamente no estado de natureza, como não o foi a viver eternamente
na infância. Aquele estado é transitório para o homem, que dele sai por
virtude do progresso e da civilização. A lei natural, ao contrário, rege
a Humanidade inteira e o homem se melhora à medida que melhor a
compreende e pratica.
777. Tendo o homem, no estado de
natureza, menos necessidades, isento se acha das tribulações que para si
mesmo cria, quando num estado de maior adiantamento. Diante disso, que
se deve pensar da opinião dos que consideram aquele estado como o da
mais perfeita felicidade na Terra? “Que queres! é a felicidade do bruto.
Há pessoas que não compreendem outra. É ser feliz à maneira dos
animais. As crianças também são mais felizes do que os homens feitos.”
778. Pode o homem retrogradar para o
estado de natureza? “Não, o homem tem que progredir incessantemente e
não pode volver ao estado de infância. Desde que progride, é porque Deus
assim o quer. Pensar que possa retrogradar à sua primitiva condição
fora negar a lei do progresso.”
MARCHA DO PROGRESSO
779. A força para progredir, haure-a o
homem em si mesmo, ou o progresso é apenas fruto de um ensinamento? “O
homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente. Mas, nem todos progridem
simultaneamente e do mesmo modo. Dá-se então que os mais adiantados
auxiliam o progresso dos outros, por meio do contato social.”
780. O progresso moral acompanha sempre o
progresso intelectual? “Decorre deste, mas nem sempre o segue
imediatamente.” (l92-365) a) — Como pode o progresso intelectual
engendrar o progresso moral? “Fazendo compreensíveis o bem e o mal. O
homem, desde então, pode escolher. O desenvolvimento do livre-arbítrio
acompanha o da inteligência e aumenta a responsabilidade dos atos.” b) —
Como é, nesse caso, que, muitas vezes, sucede serem os povos mais
instruídos os mais pervertidos também? “O progresso completo constitui o
objetivo. Os povos, porém, como os indivíduos, só passo a passo o
atingem. Enquanto não se lhes haja desenvolvido o senso moral, pode
mesmo acontecer que se sirvam da inteligência para a prática do mal. O
moral e a inteligência são duas forças que só com o tempo chegam a
equilibrar-se.” (365-751)
781. Tem o homem o poder de paralisar a
marcha do progresso? “Não, mas tem, às vezes, o de embaraçá-la.” a) —
Que se deve pensar dos que tentam deter a marcha do progresso e fazer
que a Humanidade retrograde? “Pobres seres, que Deus castigará! Serão
levados de roldão pela torrente que procuram deter.” Sendo o progresso
uma condição da natureza humana, não está no poder do homem opor-se-lhe.
É uma força viva, cuja ação pode ser retardada, porém não anulada, por
leis humanas más. Quando estas se tornam incompatíveis com ele,
despedaça-as juntamente com os que se esforcem por mantê-las. Assim
será, até que o homem tenha posto suas leis em concordância com a
justiça divina, que quer que todos participem do bem e não a vigência de
leis feitas pelo forte em detrimento do fraco.
782. Não há homens que de boa-fé obstam
ao progresso, acreditando favorecê-lo, porque, do ponto de vista em que
se colocam, o veem onde ele não existe? “Assemelham-se a pequeninas
pedras que, colocadas debaixo da roda de uma grande viatura, não a
impedem de avançar.”
783. Segue sempre marcha progressiva e
lenta o aperfeiçoamento da Humanidade? “Há o progresso regular e lento,
que resulta da força das coisas. Quando, porém, um povo não progride tão
depressa quanto devera, Deus o sujeita, de tempos a tempos, a um abalo
físico ou moral que o transforma.” O homem não pode conservar-se
indefinidamente na ignorância, porque tem de atingir a finalidade que a
Providência lhe assinou. Ele se instrui pela força das coisas. As
revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram nas idéias
pouco a pouco; germinam durante séculos; depois, irrompem subitamente e
produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que deixou
de estar em harmonia com as necessidades novas e com as novas
aspirações. Nessas comoções, o homem quase nunca percebe senão a
desordem e a confusão momentâneas que o ferem nos seus interesses
materiais. Aquele, porém, que eleva o pensamento acima da sua própria
personalidade, admira os desígnios da Providência, que do mal faz sair o
bem. São a procela, a tempestade que saneiam a atmosfera, depois de a
terem agitado violentamente.
784. Bastante grande é a perversidade do
homem. Não parece que, pelo menos do ponto de vista moral, ele, em vez
de avançar, caminha aos recuos? “Enganas-te. Observa bem o conjunto e
verás que o homem se adianta, pois que melhor compreende o que é mal, e
vai dia a dia reprimindo os abusos. Faz-se mister que o mal chegue ao
excesso, para tornar compreensível a necessidade do bem e das reformas.
785. Qual o maior obstáculo ao progresso?
“O orgulho e o egoísmo. Refiro-me ao progresso moral, porquanto o
intelectual se efetua sempre. À primeira vista, parece mesmo que o
progresso intelectual reduplica a atividade daqueles vícios,
desenvolvendo a ambição e o gosto das riquezas, que, a seu turno,
incitam o homem a empreender pesquisas que lhe esclarecem o Espírito.
Assim é que tudo se prende, no mundo moral, como no mundo físico, e que
do próprio mal pode nascer o bem. Curta, porém, é a duração desse estado
de coisas, que mudará à proporção que o homem compreender melhor que,
além da que o gozo dos bens terrenos proporciona, uma felicidade existe
maior e infinitamente mais duradoura.” (Vide: Egoísmo, cap. XII.) Há
duas espécies de progresso, que uma a outra se prestam mútuo apoio, mas
que, no entanto, não marcham lado a lado: o progresso intelectual e o
progresso moral. Entre os povos civilizados, o primeiro tem recebido, no
correr deste século, todos os incentivos. Por isso mesmo atingiu um
grau a que ainda não chegara antes da época atual. Muito falta para que o
segundo se ache no mesmo nível. Entretanto, comparando-se os costumes
sociais de hoje com os de alguns séculos atrás, só um cego negaria o
progresso realizado. Ora, sendo assim, por que haveria essa marcha
ascendente de parar, com relação, de preferência, ao moral, do que com
relação ao intelectual? Por que será impossível que entre o século
dezenove e o vigésimo quarto século haja, a esse respeito, tanta
diferença quanta entre o décimo quarto século e o século dezenove?
Duvidar fora pretender que a Humanidade está no apogeu da perfeição, o
que seria absurdo, ou que ela não é perfectível moralmente, o que a
experiência desmente.
POVOS DEGENERADOS
786. Mostra-nos a História que muitos
povos, depois de abalos que os revolveram profundamente, recaíram na
barbaria. Onde, neste caso, o progresso? “Quando tua casa ameaça ruína,
mandas demoli-la e constróis outra mais sólida e mais cômoda. Mas,
enquanto esta não se apronta, há perturbação e confusão na tua morada.
“Compreende mais o seguinte: eras pobre e habitavas um casebre;
tornando-te rico, deixaste-o, para habitar um palácio. Então, um pobre
diabo, como eras antes, vem tomar o lugar que ocupavas e fica muito
contente, porque estava sem ter onde se abrigar. Pois bem! aprende que
os Espíritos que, encarnados, constituem o povo degenerado não são os
que o constituíam ao tempo do seu esplendor. Os de então, tendo-se
adiantado, passaram para habita- ções mais perfeitas e progrediram,
enquanto os outros, menos adiantados, tomaram o lugar que ficara vago e
que também, a seu turno, terão um dia que deixar.”
787. Não há raças rebeldes, por sua
natureza, ao progresso? “Há, mas vão aniquilando-se corporalmente, todos
os dias.” a) — Qual será a sorte futura das almas que animam essas
raças? “Chegarão, como todas as demais, à perfeição, passando por outras
existências. Deus a ninguém deserda.” b) — Assim, pode dar-se que os
homens mais civilizados tenham sido selvagens e antropófagos? “Tu mesmo o
foste mais de uma vez, antes de seres o que és.”
788. Os povos são individualidades
coletivas que como os indivíduos, passam pela infância, pela idade da
madureza e pela decrepitude. Esta verdade, que a História comprova, não
será de molde a fazer supor que os povos mais adiantados deste século
terão seu declínio e sua extinção, como os da antiguidade? “Os povos,
que apenas vivem a vida do corpo, aqueles cuja grandeza unicamente
assenta na força e na extensão territorial, nascem, crescem e morrem,
porque a força de um povo se exaure, como a de um homem. Aqueles, cujas
leis egoísticas obstam ao progresso das luzes e da caridade, morrem,
porque a luz mata as trevas e a caridade mata o egoísmo. Mas, para os
povos, como para os indivíduos, há a vida da alma. Aqueles, cujas leis
se harmonizam com as leis eternas do Criador, viverão e servirão de
farol aos outros povos.”
789. O progresso fará que todos os povos
da Terra se achem um dia reunidos, formando uma só nação? “Uma nação
única, não; seria impossível, visto que da diversidade dos climas se
originam costumes e necessidades diferentes, que constituem as
nacionalidades, tornando indispensáveis sempre leis apropriadas a esses
costumes e necessidades. A caridade, porém, desconhece latitudes e não
distingue a cor dos homens. Quando, por toda parte, a lei de Deus servir
de base à lei humana, os povos praticarão entre si a caridade, como os
indivíduos. Então, viverão felizes e em paz, porque nenhum cuidará de
causar dano ao seu vizinho, nem de viver a expensas dele.” A Humanidade
progride, por meio dos indivíduos que pouco a pouco se melhoram e
instruem. Quando estes preponderam pelo número, tomam a dianteira e
arrastam os outros. De tempos a tempos, surgem no seio dela homens de
gênio que lhe dão um impulso; vêm depois, como instrumentos de Deus, os
que têm autoridade e, nalguns anos, fazem-na adiantar-se de muitos
séculos. O progresso dos povos também realça a justiça da reencarnação.
Louváveis esforços empregam os homens de bem para conseguir que uma
nação se adiante, moral e intelectualmente. Transformada, a nação será
mais ditosa neste mundo e no outro, concebe-se. Mas, durante a sua
marcha lenta através dos séculos, milhares de indivíduos morrem todos os
dias. Qual a sorte de todos os que sucumbem ao longo do trajeto?
Privá-los-á, a sua relativa inferioridade, da felicidade reservada aos
que chegam por último? Ou também relativa será a felicidade que lhes
cabe? Não é possível que a justiça divina haja consagrado semelhante
injustiça. Com a pluralidade das existências, é igual para todos o
direito à felicidade, porque ninguém fica privado do progresso. Podendo,
os que viveram ao tempo da barbaria, voltar, na época da civilização, a
viver no seio do mesmo povo, ou de outro, é claro que todos tiram
proveito da marcha ascensional. Outra dificuldade, no entanto, apresenta
aqui o sistema da unicidade das existências. Segundo este sistema, a
alma é criada no momento em que nasce o ser humano. Então, se um homem é
mais adiantado do que outro, é que Deus criou para ele uma alma mais
adiantada. Por que esse favor? Que merecimento tem esse homem, que não
viveu mais do que outro, que talvez haja vivido menos, para ser dotado
de uma alma superior? Esta, porém, não é a dificuldade principal. Se os
homens vivessem um milênio, conceber-se-ia que, nesse período milenar,
tivessem tempo de progredir. Mas, diariamente morrem criaturas em todas
as idades; incessantemente se renovam na face do planeta, de tal sorte
que todos os dias aparece uma multidão delas e outra desaparece. Ao cabo
de mil anos, já não há naquela nação vestígio de seus antigos
habitantes. Contudo, de bárbara, que era, ela se tornou policiada. Que
foi o que progrediu? Foram os indivíduos outrora bárbaros? Mas, esses
morreram há muito tempo. Teriam sido os recém-chegados? Mas, se suas
almas foram criadas no momento em que eles nasceram, essas almas não
existiam na época da barbaria e forçoso será então admitir-se que os
esforços que se despendem para civilizar um povo têm o poder, não de
melhorar almas imperfeitas, porém de fazer que Deus crie almas mais
perfeitas. Comparemos esta teoria do progresso com a que os Espíritos
apresentaram. As almas vindas no tempo da civilização tiveram sua
infância, como todas as outras, mas já tinham vivido antes e vêm
adiantadas por efeito do progresso realizado anteriormente. Vêm atraídas
por um meio que lhes é simpático e que se acha em relação com o estado
em que atualmente se encontram. De sorte que, os cuidados dispensados à
civilização de um povo não têm como consequência fazer que, de futuro,
se criem almas mais perfeitas; têm, sim, o de atrair as que já
progrediram, quer tenham vivido no seio do povo que se figura, ao tempo
da sua barbaria, quer venham de outra parte. Aqui se nos depara
igualmente a chave do progresso da Humanidade inteira. Quando todos os
povos estiverem no mesmo nível, no tocante ao sentimento do bem, a Terra
será ponto de reunião exclusivamente de bons Espíritos, que viverão
fraternalmente unidos. Os maus, sentindo-se aí repelidos e deslocados,
irão procurar, em mundos inferiores, o meio que lhes convém, até que
sejam dignos de volver ao nosso, então transformado. Da teoria vulgar
ainda resulta que os trabalhos de melhoria social só às gerações
presentes e futuras aproveitam, sendo de resultados nulos para as
gerações passadas, que cometeram o erro de vir muito cedo e que ficam
sendo o que podem ser, sobrecarregadas com o peso de seus atos de
barbaria. Segundo a doutrina dos Espíritos, os progressos ulteriores
aproveitam igualmente às gerações pretéritas, que voltam a viver em
melhores condições e podem assim aperfeiçoar-se no foco da civilização.
(222)
CIVILIZAÇÃO
790. É um progresso a civilização ou,
como o entendem alguns filósofos, uma decadência da Humanidade?
“Progresso incompleto. O homem não passa subitamente da infância à
madureza.” a) — Será racional condenar-se a civilização? “Condenai antes
os que dela abusam e não a obra de Deus.”
791. Apurar-se-á algum dia a civilização,
de modo a fazer que desapareçam os males que haja produzido? “Sim,
quando o moral estiver tão desenvolvido quanto a inteligência. O fruto
não pode surgir antes da flor.”
792. Por que não efetua a civilização,
imediatamente, todo o bem que poderia produzir? “Porque os homens ainda
não estão aptos nem dispostos a alcançá-lo.” a) — Não será também
porque, criando novas necessidades, suscita paixões novas? “É, e ainda
porque não progridem simultaneamente todas as faculdades do Espírito.
Tempo é preciso para tudo. De uma civilização incompleta não podeis
esperar frutos perfeitos.” (751-780)
793. Por que indícios se pode reconhecer
uma civilização completa? “Reconhecê-la-eis pelo desenvolvimento moral.
Credes que estais muito adiantados, porque tendes feito grandes
descobertas e obtido maravilhosas invenções; porque vos alojais e vestis
melhor do que os selvagens. Todavia, não tereis verdadeiramente o
direito de dizer-vos civilizados, senão quando de vossa sociedade
houverdes banido os vícios que a desonram e quando viverdes como irmãos,
praticando a caridade cristã. Até então, sereis apenas povos
esclarecidos, que hão percorrido a primeira fase da civilização.” A
civilização, como todas as coisas, apresenta gradações diversas. Uma
civilização incompleta é um estado transitório, que gera males
especiais, desconhecidos do homem no estado primitivo. Nem por isso,
entretanto, constitui menos um progresso natural, necessário, que traz
consigo o remédio para o mal que causa. À medida que a civilização se
aperfeiçoa, faz cessar alguns dos males que gerou, males que
desaparecerão todos com o progresso moral. De duas nações que tenham
chegado ao ápice da escala social, somente pode considerar-se a mais
civilizada, na legítima acepção do termo, aquela onde exista menos
egoísmo, menos cobiça e menos orgulho; onde os hábitos sejam mais
intelectuais e morais do que materiais; onde a inteligência se puder
desenvolver com maior liberdade; onde haja mais bondade, boa-fé,
benevolência e generosidade recíprocas; onde menos enraizados se mostrem
os preconceitos de casta e de nascimento, por isso que tais
preconceitos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; onde as
leis nenhum privilégio consagrem e sejam as mesmas, assim para o
último, como para o primeiro; onde com menos parcialidade se exerça a
justiça; onde o fraco encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida
do homem, suas crenças e opiniões sejam melhormente respeitadas; onde
exista menor número de desgraçados; enfim, onde todo homem de boa
vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário.
PROGRESSO DA LEGISLAÇÃO HUMANA
794. Poderia a sociedade reger-se
unicamente pelas leis naturais, sem o concurso das leis humanas?
“Poderia, se todos as compreendessem bem. Se os homens as quisessem
praticar, elas bastariam. A sociedade, porém, tem suas exigências.
São-lhe necessárias leis especiais.”
795. Qual a causa da instabilidade das
leis humanas? “Nas épocas de barbaria, são os mais fortes que fazem as
leis e eles as fizeram para si. À proporção que os homens foram
compreendendo melhor a justiça, indispensável se tornou a modificação
delas. Quanto mais se aproximam da vera justiça, tanto menos instáveis
são as leis humanas, isto é, tanto mais estáveis se vão tornando,
conforme vão sendo feitas para todos e se identificam com a lei
natural.” A civilização criou necessidades novas para o homem,
necessidades relativas à posição social que ele ocupe. Tem-se então que
regular, por meio de leis humanas, os direitos e deveres dessa posição.
Mas, influenciado pelas suas paixões, ele não raro há criado direitos e
deveres imaginários, que a lei natural condena e que os povos riscam de
seus códigos à medida que progridem. A lei natural é imutável e a mesma
para todos; a lei humana é variável e progressiva. Na infância das
sociedades, esta só pôde consagrar o direito do mais forte.
796. No estado atual da sociedade, a
severidade das leis penais não constitui uma necessidade? “Uma sociedade
depravada certamente precisa de leis severas. Infelizmente, essas leis
mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a
fonte. Só a educação poderá reformar os homens, que, então, não
precisarão mais de leis tão rigorosas.”
797. Como poderá o homem ser levado a
reformar suas leis? “Isso ocorre naturalmente, pela força mesma das
coisas e da influência das pessoas que o guiam na senda do progresso.
Muitas já ele reformou e muitas outras reformará. Espera!”
INFLUÊNCIA DO ESPIRITISMO NO PROGRESSO
798. O Espiritismo se tornará crença
comum, ou ficará sendo partilhado, como crença, apenas por algumas
pessoas? “Certamente que se tornará crença geral e marcará nova era na
história da humanidade, porque está na natureza e chegou o tempo em que
ocupará lugar entre os conhecimentos humanos. Terá, no entanto, que
sustentar grandes lutas, mais contra o interesse, do que contra a
convicção, porquanto não há como dissimular a existência de pessoas
interessadas em combatê-lo, umas por amor-próprio, outras por causas
inteiramente materiais. Porém, como virão a ficar insulados, seus
contraditores se sentirão forçados a pensar como os demais, sob pena de
se tornarem ridículos.” As idéias só com o tempo se transformam; nunca
de súbito. De geração em geração, elas se enfraquecem e acabam por
desaparecer, paulatinamente, com os que as professavam, os quais vêm a
ser substituídos por outros indivíduos imbuídos de novos princípios,
como sucede com as idéias políticas. Vede o paganismo. Não há hoje mais
quem professe as idéias religiosas dos tempos pagãos. Todavia, muitos
séculos após o advento do Cristianismo, delas ainda restavam vestígios,
que somente a completa renovação das raças conseguiu apagar. Assim será
com o Espiritismo. Ele progride muito; mas, durante duas ou três
gerações, ainda haverá um fermento de incredulidade, que unicamente o
tempo aniquilará. Sua marcha, porém, será mais célere que a do
Cristianismo, porque o próprio Cristianismo é quem lhe abre o caminho e
serve de apoio. O Cristianismo tinha que destruir; o Espiritismo só tem
que edificar.
799. De que maneira pode o Espiritismo
contribuir para o progresso? “Destruindo o materialismo, que é uma das
chagas da sociedade, ele faz que os homens compreendam onde se encontram
seus verdadeiros interesses. Deixando a vida futura de estar velada
pela dúvida, o homem perceberá melhor que, por meio do presente, lhe é
dado preparar o seu futuro. Abolindo os prejuízos de seitas, castas e
cores, ensina aos homens a grande solidariedade que os há de unir como
irmãos.”
800. Não será de temer que o Espiritismo
não consiga triunfar da negligência dos homens e do seu apego às coisas
materiais? “Conhece bem pouco os homens quem imagine que uma causa
qualquer os possa transformar como que por encanto. As idéias só pouco a
pouco se modificam, conforme os indivíduos, e preciso é que algumas
gerações passem, para que se apaguem totalmente os vestígios dos velhos
hábitos. A transformação, pois, somente com o tempo, gradual e
progressivamente, se pode operar. Para cada geração uma parte do véu se
dissipa. O Espiritismo vem rasgá-lo de alto a baixo. Entretanto,
conseguisse ele unicamente corrigir num homem um único defeito que fosse
e já o haveria forçado a dar um passo. Ter-lhe-ia feito, só com isso,
grande bem, pois esse primeiro passo lhe facilitará os outros.”
801. Por que não ensinaram os Espíritos,
em todos os tempos, o que ensinam hoje? “Não ensinais às crianças o que
ensinais aos adultos e não dais ao recém-nascido um alimento que ele não
possa digerir. Cada coisa tem seu tempo. Eles ensinaram muitas coisas
que os homens não compreenderam ou adulteraram, mas que podem
compreender agora. Com seus ensinos, embora incompletos, prepararam o
terreno para receber a semente que vai frutificar.”
802. Visto que o Espiritismo tem que
marcar um progresso da Humanidade, por que não apressam os Espíritos
esse progresso, por meio de manifestações tão generalizadas e patentes,
que a convicção penetre até nos mais incrédulos? “Desejaríeis milagres;
mas, Deus os espalha a mancheias diante dos vossos passos e, no entanto,
ainda há homens que o negam. Conseguiu, porventura, o próprio Cristo
convencer os seus contemporâneos, mediante os prodígios que operou? Não
conheceis presentemente alguns que negam os fatos mais patentes,
ocorridos às suas vistas? Não há os que dizem que não acreditariam,
mesmo que vissem? Não; não é por meio de prodígios que Deus quer
encaminhar os homens. Em sua bondade, ele lhes deixa o mérito de se
convencerem pela razão.”
CAPÍTULO I X
Da lei de igualdade
• Igualdade natural
• Desigualdade das aptidões
• Desigualdades sociais
• Desigualdade das riquezas
• As provas de riqueza e de miséria
• Igualdade dos direitos do homem e da mulher
• Igualdade perante o túmulo
IGUALDADE NATURAL
803. Perante Deus, são iguais todos os
homens? “Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez suas leis para
todos. Dizeis frequentemente: ‘O Sol luz para todos’ e enunciais assim
uma verdade maior e mais geral do que pensais.” Todos os homens estão
submetidos às mesmas leis da Natureza. Todos nascem igualmente fracos,
acham-se sujeitos às mesmas dores e o corpo do rico se destrói como o do
pobre. Deus a nenhum homem concedeu superioridade natural, nem pelo
nascimento, nem pela morte: todos, aos seus olhos, são iguais.
DESIGUALDADE DAS APTIDÕES
804. Por que não outorgou Deus as mesmas
aptidões a todos os homens? “Deus criou iguais todos os Espíritos, mas
cada um destes vive há mais ou menos tempo, e, conseguintemente, tem
feito maior ou menor soma de aquisições. A diferença entre eles está na
diversidade dos graus da experiência alcançada e da vontade com que
obram, vontade que é o livre-arbítrio. Daí o se aperfeiçoarem uns mais
rapidamente do que outros, o que lhes dá aptidões diversas. Necessá- ria
é a variedade das aptidões, a fim de que cada um possa concorrer para a
execução dos desígnios da Providência, no limite do desenvolvimento de
suas forças físicas e intelectuais. O que um não faz, fá-lo outro. Assim
é que cada qual tem seu papel útil a desempenhar. Demais, sendo
solidários entre si todos os mundos, necessário se torna que os
habitantes dos mundos superiores, que, na sua maioria, foram criados
antes do vosso, venham habitá-lo, para vos dar o exemplo.” (361)
805. Passando de um mundo superior a
outro inferior, conserva o Espírito, integralmente, as faculdades
adquiridas? “Sim, já temos dito que o Espírito que progrediu não
retrocede. Poderá escolher, no estado de Espírito livre, um invólucro
mais grosseiro, ou posição mais precária do que as que já teve, porém
tudo isso para lhe servir de ensinamento e ajudá-lo a progredir.” (180)
Assim, a diversidade das aptidões entre os homens não deriva da natureza
íntima da sua criação, mas do grau de aperfeiçoamento a que tenham
chegado os Espíritos encarnados neles. Deus, portanto, não criou
faculdades desiguais; permitiu, porém, que os Espíritos em graus
diversos de desenvolvimento estivessem em contato, para que os mais
adiantados pudessem auxiliar o progresso dos mais atrasados e também
para que os homens, necessitando uns dos outros, compreendessem a lei de
caridade que os deve unir.
DESIGUALDADES SOCIAIS
806. É lei da natureza a desigualdade das
condições sociais? “Não; é obra do homem e não de Deus.” a) — Algum dia
essa desigualdade desaparecerá? “Eternas somente as leis de Deus o são.
Não vês que dia a dia ela gradualmente se apaga? Desaparecerá quando o
egoísmo e o orgulho deixarem de predominar. Restará apenas a
desigualdade do merecimento. Dia virá em que os membros da grande
família dos filhos de Deus deixarão de considerar-se como de sangue mais
ou menos puro. Só o Espírito é mais ou menos puro e isso não depende da
posição social.”
807. Que se deve pensar dos que abusam da
superioridade de suas posições sociais, para, em proveito próprio,
oprimir os fracos? “Merecem anátema! Ai deles! Serão, a seu turno,
oprimidos: renascerão numa existência em que terão de sofrer tudo o que
tiverem feito sofrer aos outros.” (684)
DESIGUALDADE DAS RIQUEZAS
808. A desigualdade das riquezas não se
originará das faculdades, em virtude da qual uns dispõem de mais meios
de adquirir bens do que outros? “Sim e não. Da velhacaria e do roubo,
que dizes?” a) — Mas, a riqueza herdada, essa não é fruto de paixões
más. “Que sabes a esse respeito? Busca a fonte de tal riqueza e verás
que nem sempre é pura. Sabes, porventura, se não se originou de uma
espoliação ou de uma injustiça? Mesmo, porém, sem falar da origem, que
pode ser má, acreditas que a cobiça da riqueza, ainda quando bem
adquirida, os desejos secretos de possuí-la o mais depressa possível,
sejam sentimentos louváveis? Isso o que Deus julga e eu te asseguro que o
seu juízo é mais severo que o dos homens.”
809. Aos que, mais tarde, herdam uma
riqueza inicialmente mal adquirida, alguma responsabilidade cabe por
esse fato? “É fora de dúvida que não são responsáveis pelo mal que
outros hajam feito, sobretudo se o ignoram, como é possível que
aconteça. Mas, fica sabendo que, muitas vezes, a riqueza só vem ter às
mãos de um homem, para lhe proporcionar ensejo de reparar uma injustiça.
Feliz dele, se assim o compreende! Se a fizer em nome daquele que
cometeu a injustiça, a ambos será a reparação levada em conta,
porquanto, não raro, é este último quem a provoca.”
810. Sem quebra da legalidade, quem quer
que seja pode dispor de seus bens de modo mais ou menos equitativo.
Aquele que assim proceder será responsável, depois da morte, pelas
disposições que haja tomado? “Toda ação produz seus frutos; doces são os
das boas ações, amargos sempre os das outras. Sempre, entendei-o bem.”
811. Será possível e já terá existido a
igualdade absoluta das riquezas? “Não; nem é possível. A isso se opõe a
diversidade das faculdades e dos caracteres.” a) — Há, no entanto,
homens que julgam ser esse o remédio aos males da sociedade. Que pensais
a respeito? “São sistemáticos esses tais, ou ambiciosos cheios de
inveja. Não compreendem que a igualdade com que sonham seria à curto
prazo desfeita pela força das coisas. Combatei o egoísmo, que é a vossa
chaga social, e não corrais atrás de quimeras.”
812. Por não ser possível a igualdade das
riquezas, o mesmo se dará com o bem-estar? “Não, mas o bem-estar é
relativo e todos poderiam dele gozar, se se entendessem
convenientemente, porque o verdadeiro bem-estar consiste em cada um
empregar o seu tempo como lhe apraza e não na execução de trabalhos
pelos quais nenhum gosto sente. Como cada um tem aptidões diferentes,
nenhum trabalho útil ficaria por fazer”. “Em tudo existe o equilíbrio; o
homem é quem o perturba”. a) — Será possível que todos se entendam? “Os
homens se entenderão quando praticarem a lei de justiça.”
813. Há pessoas que, por culpa sua, caem
na miséria. Nenhuma responsabilidade caberá disso à sociedade? “Mas,
certamente. Já dissemos que a sociedade é muitas vezes a principal
culpada de semelhante coisa. Demais, não tem ela que velar pela educação
moral dos seus membros? Quase sempre, é a má-educação que lhes falseia o
critério, ao invés de sufocar-lhes as tendências perniciosas.”
(685) AS PROVAS DE RIQUEZA E DE MISÉRIA
814. Por que Deus a uns concedeu as
riquezas e o poder, e a outros, a miséria? “Para experimentá-los de
modos diferentes. Além disso, como sabeis, essas provas foram escolhidas
pelos próprios Espíritos, que nelas, entretanto, sucumbem com
frequência.”
815. Qual das duas provas é mais terrível
para o homem, a da desgraça ou a da riqueza? “São-no tanto uma quanto
outra. A miséria provoca as queixas contra a Providência, a riqueza
incita a todos os excessos.” 816. Estando o rico sujeito a maiores
tentações, também não dispõe, por outro lado, de mais meios de fazer o
bem? “Mas, é justamente o que nem sempre faz. Torna-se egoísta,
orgulhoso e insaciável. Com a riqueza, suas necessidades aumentam e ele
nunca julga possuir o bastante para si unicamente.” A alta posição do
homem neste mundo e o ter autoridade sobre os seus semelhantes são
provas tão grandes e tão escorregadias como a desgraça, porque, quanto
mais rico e poderoso é ele, tanto mais obrigações tem que cumprir e
tanto mais abundantes são os meios de que dispõe para fazer o bem e o
mal. Deus experimenta o pobre pela resignação e o rico pelo emprego que
dá aos seus bens e ao seu poder. A riqueza e o poder fazem nascer todas
as paixões que nos prendem à matéria e nos afastam da perfeição
espiritual. Por isso foi que Jesus disse: “Em verdade vos digo que mais
fácil é passar um camelo por um fundo de agulha do que entrar um rico no
reino dos céus.” (266)
IGUALDADE DOS DIREITOS DO HOMEM E DA MULHER
817. São iguais perante Deus o homem e a
mulher e têm os mesmos direitos? “Não outorgou Deus a ambos a
inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?”
818. Donde provém a inferioridade moral
da mulher em certos países? “Do predomínio injusto e cruel que sobre ela
assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da
força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a
força faz o direito.”
819. Com que fim mais fraca fisicamente
do que o homem é a mulher? “Para lhe determinar funções especiais. Ao
homem, por ser o mais forte, os trabalhos rudes; à mulher, os trabalhos
leves; a ambos o dever de se ajudarem mutuamente a suportar as provas de
uma vida cheia de amargor.”
820. A fraqueza física da mulher não a
coloca naturalmente sob a dependência do homem? “Deus a uns deu a força,
para protegerem o fraco e não para o escravizarem.” Deus apropriou a
organização de cada ser às funções que lhe cumpre desempenhar. Tendo
dado à mulher menor força física, deu-lhe ao mesmo tempo maior
sensibilidade, em relação com a delicadeza das funções maternais e com a
fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados.
821. As funções a que a mulher é
destinada pela Natureza terão importância tão grande quanto as deferidas
ao homem? “Sim, maior até. É ela quem lhe dá as primeiras noções da
vida.”
822. Sendo iguais perante a lei de Deus,
devem os homens ser iguais também perante as leis humanas? “O primeiro
princípio de justiça é este: Não façais aos outros o que não quereríeis
que vos fizessem.” a) — Assim sendo, uma legislação, para ser
perfeitamente justa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e
da mulher? “Dos direitos, sim; das funções, não. Preciso é que cada um
esteja no lugar que lhe compete. Ocupe-se do exterior o homem e do
interior a mulher, cada um de acordo com a sua aptidão. A lei humana,
para ser equitativa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e
da mulher. Todo privilégio a um ou a outro concedido é contrário à
justiça. A emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização.
Sua escravização marcha de par com a barbaria. Os sexos, além disso, só
existem na organização física. Visto que os Espíritos podem encarnar num
e noutro, sob esse aspecto nenhuma diferença há entre eles. Devem, por
conseguinte, gozar dos mesmos direitos.”
IGUALDADE PERANTE O TÚMULO
823. Donde nasce o desejo que o homem
sente de perpetuar sua memória por meio de monumentos fúnebres? “Último
ato de orgulho.” a) — Mas a suntuosidade dos monumentos fúnebres não é
antes devida, as mais das vezes, aos parentes do defunto, que lhe querem
honrar a memória, do que ao próprio defunto? “Orgulho dos parentes,
desejosos de se glorificarem a si mesmos. Oh! sim, nem sempre é pelo
morto que se fazem todas essas demonstrações. Elas são feitas por amor
próprio e para o mundo, bem como por ostentação de riqueza. Supões,
porventura, que a lembrança de um ser querido dure menos no coração do
pobre, que não lhe pode colocar sobre o túmulo senão uma singela flor?
Supões que o mármore salva do esquecimento aquele que na Terra foi
inútil?”
824. Reprovais então, de modo
absoluto, a pompa dos funerais? “Não; quando se tenha em vista honrar a
memória de um homem de bem, é justo e de bom exemplo.” O túmulo é o
ponto de reunião de todos os homens. Aí terminam inelutavelmente todas
as distinções humanas. Em vão tenta o rico perpetuar a sua memória,
mandando erigir faustosos monumentos. O tempo os destruirá, como
lhe consumirá o corpo. Assim o quer a Natureza. Menos perecível do que o
seu túmulo será a lembrança de suas ações boas e más. A pompa dos
funerais não o limpará das suas torpezas, nem o fará subir um degrau que
seja na hierarquia espiritual. (320 e seguintes).
CAPÍTULO X
Da lei de liberdade
• Liberdade natural
• Escravidão
• Liberdade de pensar
• Liberdade de consciência
• Livre-arbítrio
• Fatalidade
• Conhecimento do futuro
• Resumo teórico do móvel das ações humanas
LIBERDADE NATURAL
825. Haverá no mundo posições em que o
homem possa jactar-se de gozar de absoluta liberdade? “Não, porque todos
precisais uns dos outros, assim os pequenos como os grandes.”
826. Em que condições poderia o homem
gozar de absoluta liberdade? “Nas do eremita no deserto. Desde que
juntos estejam dois homens, há entre eles direitos recíprocos que lhes
cumpre respeitar; não mais, portanto, qualquer deles goza de liberdade
absoluta.”
827. A obrigação de respeitar os direitos
alheios tira ao homem o de pertencer-se a si mesmo? “De modo algum,
porquanto este é um direito que lhe vem da natureza.”
828. Como se podem conciliar as opiniões
liberais de certos homens com o despotismo que costumam exercer no seu
lar e sobre os seus subordinados? “Eles têm a compreensão da lei
natural, mas contrabalançada pelo orgulho e pelo egoísmo. Quando não
representam calculadamente uma comédia, sustentando princípios liberais,
compreendem como as coisas devem ser, mas não as fazem assim.” a) —
Ser-lhes-ão, na outra vida, levados em conta os princípios que
professaram neste mundo? “Quanto mais inteligência tem o homem para
compreender um princípio, tanto menos escusável é de o não aplicar a si
mesmo. Em verdade vos digo que o homem simples, porém sincero, está mais
adiantado no caminho de Deus, do que um que pretenda parecer o que não
é.”
ESCRAVIDÃO
829. Haverá homens que estejam, por
natureza, destinados a ser propriedades de outros homens? “É contrária à
lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a outro homem. A
escravidão é um abuso da força. Desaparece com o progresso, como
gradativamente desaparecerão todos os abusos.” É contrária à Natureza a
lei humana que consagra a escravidão, pois que assemelha o homem ao
irracional e o degrada física e moralmente.
830. Quando a escravidão faz parte dos
costumes de um povo, são censuráveis os que dela aproveitam, embora só o
façam conformando-se com um uso que lhes parece natural? “O mal é
sempre o mal e não há sofisma que faça se torne boa uma ação má. A
responsabilidade, porém, do mal é relativa aos meios de que o homem
disponha para compreendê-lo. Aquele que tira proveito da lei da
escravidão é sempre culpado de violação da lei da Natureza. Mas, aí,
como em tudo, a culpabilidade é relativa. Tendo-se a escravidão
introduzida nos costumes de certos povos, possível se tornou que, de
boa-fé, o homem se aproveitasse dela como de uma coisa que lhe parecia
natural. Entretanto, desde que, mais desenvolvida e, sobretudo,
esclarecida pelas luzes do Cristianismo, sua razão lhe mostrou que o
escravo era um seu igual perante Deus, nenhuma desculpa mais ele tem.”
831. A desigualdade natural das aptidões
não coloca certas raças humanas sob a dependência das raças mais
inteligentes? “Sim, mas para que estas as elevem, não para embrutecê-las
ainda mais pela escravização. Durante longo tempo, os homens consideram
certas raças humanas como animais de trabalho, munidos de braços e
mãos, e se julgaram com o direito de vender os dessas raças como bestas
de carga. Consideram-se de sangue mais puro os que assim procedem.
Insensatos! nada veem senão a matéria. Mais ou menos puro não é o
sangue, porém o Espírito.” (361-803)
832. Há, no entanto, homens que tratam
seus escravos com humanidade; que não deixam lhes falte nada e acreditam
que a liberdade os exporia a maiores privações. Que dizeis disso? “Digo
que esses compreendem melhor os seus interesses. Igual cuidado
dispensam aos seus bois e cavalos, para que obtenham bom preço no
mercado. Não são tão culpados como os que maltratam os escravos, mas,
nem por isso deixam de dispor deles como de uma mercadoria, privando-os
do direito de se pertencerem a si mesmos.”
LIBERDADE DE PENSAR
833. Haverá no homem alguma coisa que
escape a todo constrangimento e pela qual goze ele de absoluta
liberdade? “No pensamento goza o homem de ilimitada liberdade, pois que
não há como pôr-lhe peias. Pode-se-lhe deter o voo, porém, não
aniquilá-lo.”
834. É responsável o homem pelo seu
pensamento? “Perante Deus, é. Somente a Deus sendo possível conhecê-lo,
ele o condena ou absolve, segundo a sua justiça.”
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA
835. Será a liberdade de consciência uma
consequência da de pensar? “A consciência é um pensamento íntimo, que
pertence ao homem, como todos os outros pensamentos.”
836. Tem o homem direito de pôr
embaraços à liberdade de consciência? “Falece-lhe tanto esse direito,
quanto com referência à liberdade de pensar, por isso que só a Deus cabe
o de julgar a consciência. Assim como os homens, pelas suas leis,
regulam as relações de homem para homem, Deus, pelas leis da natureza,
regula as relações entre ele e o homem.”
837. Que é o que resulta dos embaraços
que se oponham à liberdade de consciência? “Constranger os homens a
procederem em desacordo com o seu modo de pensar, fazê-los hipócritas. A
liberdade de consciência é um dos caracteres da verdadeira civilização e
do progresso.”
838. Será respeitável toda e qualquer
crença, ainda quando notoriamente falsa? “Toda crença é respeitável,
quando sincera e conducente à prática do bem. Condenáveis são as crenças
que conduzam ao mal.”
839. Será repreensível aquele que
escandalize com a sua crença um outro que não pensa como ele? “Isso é
faltar com a caridade e atentar contra a liberdade de pensamento.”
840. Será atentar contra a liberdade de
consciência pôr óbices a crenças capazes de causar perturbações à
sociedade? “Podem reprimir-se os atos, mas a crença íntima é
inacessível.” Reprimir os atos exteriores de uma crença, quando
acarretam qualquer prejuízo a terceiros, não é atentar contra a
liberdade de consciência, pois que essa repressão em nada tira à crença a
liberdade, que ela conserva integral.
841. Para respeitar a liberdade de
consciência, dever-se-á deixar que se propaguem doutrinas perniciosas,
ou poder-se-á, sem atentar contra aquela liberdade, procurar trazer ao
caminho da verdade os que se transviaram obedecendo a falsos princípios?
“Certamente que podeis e até deveis; mas, ensinai, a exemplo de Jesus,
servindo-vos da brandura e da persuasão e não da força, o que seria pior
do que a crença daquele a quem desejaríeis convencer. Se alguma coisa
se pode impor, é o bem e a fraternidade. Mas não cremos que o melhor
meio de fazê-los admitidos seja obrar com violência. A convicção não se
impõe.”
842. Por que indícios se poderá
reconhecer, entre todas as doutrinas que alimentam a pretensão de ser a
expressão única da verdade, a que tem o direito de se apresentar como
tal? “Será aquela que mais homens de bem e menos hipó- critas fizer,
isto é, pela prática da lei de amor na sua maior pureza e na sua mais
ampla aplicação. Esse o sinal por que
reconhecereis que uma doutrina é boa, visto que toda doutrina que tiver
por efeito semear a desunião e estabelecer uma linha de separação entre
os filhos de Deus não pode deixar de ser falsa e perniciosa.
LIVRE-ARBÍTRIO
843. Tem o homem o livre-arbítrio de seus
atos? “Pois que tem a liberdade de pensar, tem igualmente a de obrar.
Sem o livre-arbítrio, o homem seria máquina.”
844. Do livre-arbítrio goza o homem desde
o seu nascimento? “Há liberdade de agir, desde que haja vontade de
fazê-lo. Nas primeiras fases da vida, quase nula é a liberdade, que se
desenvolve e muda de objeto com o desenvolvimento das faculdades.
Estando seus pensamentos em concordância com o que a sua idade reclama, a
criança aplica o seu livre- -arbítrio àquilo que lhe é necessário.”
845. Não constituem obstáculos ao
exercício do livre-arbítrio as predisposições instintivas que o homem já
traz consigo ao nascer? “As predisposições instintivas são as do
Espírito antes de encarnar. Conforme seja este mais ou menos adiantado,
elas podem arrastá-lo à prática de atos repreensíveis, no que será
secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições. Não há,
porém, arrastamento irresistível, uma vez que se tenha a vontade de
resistir. Lembrai-vos de que querer é poder.” (361)
846. Sobre os atos da vida nenhuma
influência exerce o organismo? E, se essa influência existe, não será
exercida com prejuízo do livre-arbítrio? É inegável que sobre o Espírito
exerce influência a matéria, que pode embaraçar-lhe as manifestações.
Daí vem que, nos mundos onde os corpos são menos materiais do que na
Terra, as faculdades se desdobram mais livremente. Porém, o instrumento
não dá a faculdade. Além disso, cumpre se distingam as faculdades morais
das intelectuais. Tendo um homem o instinto do assassínio, seu próprio
Espírito é, indubitavelmente, quem possui esse instinto e quem lho dá;
não são seus órgãos que lho dão. Semelhante ao bruto, e ainda pior do
que este, se torna aquele que nulifica o seu pensamento, para só se
ocupar com a matéria, pois que não cuida mais de se premunir contra o
mal. Nisto é que incorre em falta, porquanto assim procede por vontade
sua.” (Vede nos 367 e seguintes — “Influência do organismo”.)
847. A aberração das faculdades tira ao
homem o livre- -arbítrio? “Já não é senhor do seu pensamento aquele cuja
inteligência se ache turbada por uma causa qualquer e, desde então, já
não tem liberdade. Essa aberração constitui muitas vezes uma punição
para o Espírito que, porventura, tenha sido, noutra existência, fútil e
orgulhoso, ou tenha feito mau uso de suas faculdades. Pode esse
Espírito, em tal caso, renascer no corpo de um idiota, como o déspota no
de um escravo e o mau rico no de um mendigo. O Espírito, porém, sofre
por efeito desse constrangimento, de que tem perfeita consciência. Está
aí a ação da matéria.” (371 e seguintes)
848. Servirá de escusa aos atos
reprováveis o ser devida à embriaguez a aberração das faculdades
intelectuais? “Não, porque foi voluntariamente que o ébrio se privou da
sua razão, para satisfazer a paixões brutais. Em vez de uma falta,
comete duas.”
849. Qual a faculdade predominante no
homem em estado de selvageria: o instinto, ou o livre-arbítrio? “O
instinto, o que não o impede de agir com inteira liberdade, no tocante a
certas coisas. Mas, aplica, como a criança, essa liberdade às suas
necessidades e ela se amplia com a inteligência. Conseguintemente, tu,
que és mais esclarecido do que um selvagem, também és mais responsável
pelo que fazes do que um selvagem o é pelos seus atos.”
850. A posição social não constitui às
vezes, para o homem, obstáculo à inteira liberdade de seus atos? “É fora
de dúvida que o mundo tem suas exigências. Deus é justo e tudo leva em
conta. Deixa-vos, entretanto, a responsabilidade de nenhum esforço
empregardes para vencer os obstáculos.”
FATALIDADE
851. Haverá fatalidade nos acontecimentos
da vida, conforme ao sentido que se dá a este vocábulo? Quer dizer:
todos os acontecimentos são predeterminados? E, neste caso, que vem a
ser do livre-arbítrio? “A fatalidade existe unicamente pela escolha que o
Espírito fez, ao encarnar, desta ou daquela prova para sofrer.
Escolhendo-a, instituiu para si uma espécie de destino, que é a
consequência mesma da posição em que vem a achar-se colocado. Falo das
provas físicas, pois, pelo que toca às provas morais e às tentações, o
Espírito, conservando o livre-arbítrio quanto ao bem e ao mal, é sempre
senhor de ceder ou de resistir. Ao vê-lo fraquear, um bom Espírito pode
vir-lhe em auxílio, mas não pode influir sobre ele de maneira a
dominar-lhe a vontade. Um Espírito mau, isto é, inferior, mostrando-lhe,
exagerando aos seus olhos um perigo físico, o poderá abalar e
amedrontar. Nem por isso, entretanto, a vontade do Espírito encarnado
deixa de se conservar livre de quaisquer peias.”
852. Há pessoas que parecem perseguidas
por uma fatalidade, independente da maneira por que procedem. Não lhes
estará no destino o infortúnio? “São, talvez, provas que lhes caiba
sofrer e que elas escolheram. Porém, ainda aqui lançais à conta do
destino o que as mais das vezes é apenas consequência de vossas próprias
faltas. Trata de ter pura a consciência em meio dos males que te
afligem e já bastante consolado te sentirás.” As idéias exatas ou falsas
que fazemos das coisas nos levam a ser bem ou malsucedidos, de acordo
com o nosso caráter e a nossa posição social. Achamos mais simples e
menos humilhante para o nosso amor-próprio atribuir antes à sorte ou ao
destino os insucessos que experimentamos, do que à nossa própria falta. É
certo que para isso contribui algumas vezes a influência dos Espíritos,
mas também o é que podemos sempre forrar-nos a essa influência,
repelindo as idéias que eles nos sugerem, quando más.
853. Algumas pessoas só escapam de um
perigo mortal para cair em outro. Parece que não podiam escapar da
morte. Não há nisso fatalidade? “Fatal, no verdadeiro sentido da
palavra, só o instante da morte o é. Chegado esse momento, de uma forma
ou doutra, a ele não podeis furtar-vos.” a) — Assim, qualquer que seja o
perigo que nos ameace, se a hora da morte ainda não chegou, não
morreremos? “Não; não perecerás e tens disso milhares de exemplos.
Quando, porém, soe a hora da tua partida, nada poderá impedir que
partas. Deus sabe de antemão de que gênero será a morte do homem e
muitas vezes seu Espírito também o sabe, por lhe ter sido isso revelado,
quando escolheu tal ou qual existência.”
854. Do fato de ser infalível a hora da
morte, poder-se-á deduzir que sejam inúteis as precauções que tomemos
para evitá-la? “Não, visto que as precauções que tomais vos são
sugeridas com o fito de evitardes a morte que vos ameaça. São um dos
meios empregados para que ela não se dê.”
855. Com que fim nos faz a Providência
correr perigos que nenhuma consequência devem ter? “O fato de ser a tua
vida posta em perigo constitui um aviso que tu mesmo desejaste, a fim de
te desviares do mal e te tornares melhor. Se escapas desse perigo,
quando ainda sob a impressão do risco que correste, cogitas, mais ou
menos seriamente, de te melhorares, conforme seja mais ou menos forte
sobre ti a influência dos Espíritos bons. Sobrevindo o mau Espírito
(digo mau, subentendendo o mal que ainda existe nele), entras a pensar
que do mesmo modo escaparás a outros perigos e deixas que de novo tuas
paixões se desencadeiem. Por meio dos perigos que correis, Deus vos
lembra a vossa fraqueza e a fragilidade da vossa existência. Se
examinardes a causa e a natureza do perigo, verificareis que, quase
sempre, suas consequências teriam sido a punição de uma falta cometida
ou da negligência no cumprimento de um dever. Deus, por essa forma,
exorta o Espírito a cair em si e a se emendar.” (526-532).
856. Sabe o Espírito
antecipadamente de que gênero será sua morte? “Sabe que o gênero de vida
que escolheu o expõe mais a morrer desta do que daquela maneira. Sabe
igualmente quais as lutas que terá de sustentar para evitá-lo e que, se
Deus o permitir, não sucumbirá.”
857. Há homens que afrontam os perigos
dos combates, persuadidos, de certo modo, de que a hora não lhes chegou.
Haverá algum fundamento para essa confiança? “Muito amiúde tem o homem o
pressentimento do seu fim, como pode ter o de que ainda não morrerá.
Esse pressentimento lhe vem dos Espíritos seus protetores, que assim o
advertem para que esteja pronto a partir, ou lhe fortalecem a coragem
nos momentos em que mais dela necessita. Pode vir-lhe também da intuição
que tem da existência que escolheu, ou da missão que aceitou e que sabe
ter que cumprir.” (411-522)
858. Por que razão os que pressentem a
morte a temem geralmente menos do que os outros? “Quem teme a morte é o
homem, não o Espírito. Aquele que a pressente pensa mais como Espírito
do que como homem. Compreende ser ela a sua libertação e espera-a.”
859. Com todos os acidentes, que nos
sobrevêm no curso da vida, se dá o mesmo que com a morte, que não pode
ser evitada, quando tem de ocorrer? “São de ordinário coisas muito
insignificantes, de sorte que vos podemos prevenir deles e fazer que os
eviteis algumas vezes, dirigindo o vosso pensamento, pois nos desagradam
os sofrimentos materiais. Isso, porém, nenhuma importância tem na vida
que escolhestes. A fatalidade, verdadeiramente, só existe quanto ao
momento em que deveis aparecer e desaparecer deste mundo.”
a) — Haverá fatos que forçosamente devam
dar-se e que os Espíritos não possam conjurar, embora o queiram? “Há,
mas que tu viste e pressentiste quando, no estado de Espírito, fizeste a
tua escolha. Não creias, entretanto, que tudo o que sucede esteja
escrito, como costumam dizer. Um acontecimento qualquer pode ser a
consequência de um ato que praticaste por tua livre vontade, de tal
sorte que, se não o houvesses praticado, o acontecimento não se teria
dado. Imagina que queimas o dedo. Isso nada mais é senão resultado da
tua imprudência e efeito da matéria. Só as grandes dores, os fatos
importantes e capazes de influir no moral, Deus os prevê, porque são
úteis à tua depuração e à tua instrução.”
860. Pode o homem, pela sua vontade e por
seus atos, fazer que se não deem acontecimentos que deveriam
verificar-se e reciprocamente? “Pode-o, se essa aparente mudança na
ordem dos fatos tiver cabimento na sequência da vida que ele escolheu.
Acresce que, para fazer o bem, como lhe cumpre, pois que isso constitui o
objetivo único da vida, facultado lhe é impedir o mal, sobretudo aquele
que possa concorrer para a produção de um mal maior.”
861. Ao escolher a sua existência, o
Espírito daquele que comete um assassínio sabia que viria a ser
assassino? “Não. Escolhendo uma vida de lutas, sabe que terá ensejo de
matar um de seus semelhantes, mas não sabe se o fará, visto que ao crime
precederá quase sempre, de sua parte, a deliberação de praticá-lo. Ora,
aquele que delibera sobre uma coisa é sempre livre de fazê-la, ou não.
Se soubesse previamente que, como homem, teria que cometer um crime, o
Espírito estaria a isso predestinado. Ficai, porém, sabendo que ninguém
há predestinado ao crime e que todo crime, como qualquer outro ato,
resulta sempre da vontade e do livre-arbítrio. Demais, sempre confundis
duas coisas muito distintas: os sucessos materiais da vida e os atos da
vida moral. A fatalidade, que algumas vezes há, só existe com relação
àqueles sucessos materiais, cuja causa reside fora de vós e que
independem da vossa vontade. Quanto aos atos da vida moral, esses emanam
sempre do próprio homem que, por conseguinte, tem sempre a liberdade de
escolher. No tocante, pois, a esses atos, nunca há fatalidade.”
862. Pessoas existem que nunca logram bom
êxito em coisa alguma, que parecem perseguidas por um mau gênio em
todos os seus empreendimentos. Não se pode chamar a isso fatalidade?
“Será uma fatalidade, se lhe quiseres dar esse nome, mas que decorre do
gênero da existência escolhida”. É que essas pessoas quiseram ser
provadas por uma vida de decepções, a fim de exercitarem a paciência e a
resignação. Entretanto, não creias seja absoluta essa fatalidade.
Resulta muitas vezes do caminho falso que tais pessoas tomam, em
discordância com suas inteligências e aptidões. Grandes probabilidades
têm de se afogar quem pretender atravessar a nado um rio, sem saber
nadar. O mesmo se dá relativamente à maioria dos acontecimentos da vida.
Quase sempre obteria o homem bom êxito, se só tentasse o que estivesse
em relação com as suas faculdades. O que o perde são o seu amor-próprio e
a sua ambição, que o desviam da senda que lhe é própria e o fazem
considerar vocação o que não passa de desejo de satisfazer a certas
paixões. Fracassa por sua culpa. Mas, em vez de culpar-se a si mesmo,
prefere queixar-se da sua estrela. Um, por exemplo, que seria bom
operário e ganharia honestamente a vida, mete-se a ser mau poeta e morre
de fome. Para todos haveria lugar no mundo, desde que cada um soubesse
colocar-se no lugar que lhe compete.”
863. Os costumes sociais não obrigam
muitas vezes o homem a enveredar por um caminho de preferência a outro e
não se acha ele submetido à direção da opinião geral, quanto à escolha
de suas ocupações? O que se chama respeito humano não constitui óbice ao
exercício do livre-arbítrio? “São os homens e não Deus quem faz os
costumes sociais. Se eles a estes se submetem, é porque lhes convêm. Tal
submissão, portanto, representa um ato de livre- -arbítrio, pois que,
se o quisessem, poderiam libertar-se de semelhante jugo. Por que, então,
se queixam? Falece-lhes razão para acusarem os costumes sociais. A
culpa de tudo devem lançá-la ao tolo amor-próprio de que vivem cheios e
que os faz preferirem morrer de fome a infringi-los. Ninguém lhes leva
em conta esse sacrifício feito à opinião pública, ao passo que Deus lhes
levará em conta o sacrifício que fizerem de suas vaidades. Não quer
isto dizer que o homem deva afrontar sem necessidade aquela opinião,
como fazem alguns em quem há mais originalidade do que verdadeira
filosofia. Tanto desatino há em procurar alguém ser apontado a dedo, ou
considerado animal curioso, quanto acerto em descer voluntariamente e
sem murmurar, desde que não possa manter-se no alto da escala.”
864. Assim como há pessoas a quem a sorte
em tudo é contrária, outras parecem favorecidas por ela, pois que tudo
lhes sai bem. A que atribuir isso? “De ordinário, é que essas pessoas
sabem conduzir-se melhor nas suas empresas. Mas, também pode ser um
gênero de prova. O bom êxito as embriaga; fiam-se no seu destino e
muitas vezes pagam mais tarde esse bom êxito, mediante revezes cruéis,
que a prudência as teria feito evitar.
865. Como se explica que a boa sorte
favoreça a algumas pessoas em circunstâncias com as quais nada têm que
ver a vontade, nem a inteligência: no jogo, por exemplo? “Alguns
Espíritos hão escolhido previamente certas espe- cies de prazer. A
fortuna que os favorece é uma tentação. Aquele que, como homem, ganha;
perde como Espírito. É uma prova para o seu orgulho e para a sua
cupidez.”
866. Então, a fatalidade que parece
presidir aos destinos materiais de nossa vida também é resultante do
nosso livre-arbítrio? “Tu mesmo escolheste a tua prova. Quanto mais rude
ela for e melhor a suportares, tanto mais te elevarás. Os que passam a
vida na abundância e na ventura humana são Espíritos pusilânimes, que
permanecem estacionários. Assim, o número dos desafortunados é muito
superior ao dos felizes deste mundo, atento que os Espíritos, na sua
maioria, procuram as provas que lhes sejam mais proveitosas. Eles veem
perfeitamente bem a futilidade das vossas grandezas e gozos. Acresce que
a mais ditosa existência é sempre agitada, sempre perturbada, quando
mais não seja, pela ausência da dor.” (525 e seguintes)
867. Donde vem a expressão: Nascer sob
uma boa estrela? “Antiga superstição, que prendia às estrelas os
destinos dos homens. Alegoria que algumas pessoas fazem a tolice de
tomar ao pé da letra.”
CONHECIMENTO DO FUTURO
868. Pode o futuro ser revelado ao
homem? “Em princípio, o futuro lhe é oculto e só em casos raros e
excepcionais permite Deus que seja revelado.”
869. Com que fim o futuro se conserva
oculto ao homem? “Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria do
presente e não obraria com a liberdade com que o faz, porque o dominaria
a idéia de que, se uma coisa tem que acontecer, inútil será ocupar-se
com ela, ou então procuraria obstar a que acontecesse. Não quis Deus que
assim fosse, a fim de que cada um concorra para a realização das
coisas, até daquelas a que desejaria opor-se. Assim é que tu mesmo
preparas muitas vezes os acontecimentos que hão de sobrevir no curso da
tua existência.”
870. Mas, se convém que o futuro
permaneça oculto, por que permite Deus que seja revelado algumas vezes?
“Permite-o, quando o conhecimento prévio do futuro facilite a execução
de uma coisa, em vez de a estorvar, obrigando o homem a agir
diversamente do modo por que agiria, se lhe não fosse feita a revelação.
Não raro, também é uma prova. A perspectiva de um acontecimento pode
sugerir pensamentos mais ou menos bons. Se um homem vem a saber, por
exemplo, que vai receber uma herança, com que não conta, pode dar-se que
a revelação desse fato desperte nele o sentimento da cobiça, pela
perspectiva de se lhe tornarem possíveis maiores gozos terrenos, pela
ânsia de possuir mais depressa a herança, desejando talvez, para que tal
se dê, a morte daquele de quem herdará. Ou, então, essa perspectiva lhe
inspirará bons sentimentos e pensamentos generosos. Se a predição não
se cumpre, aí está outra prova, consistente na maneira por que suportará
a decepção. Nem por isso, entretanto, lhe caberá menos o mé- rito ou o
demérito dos pensamentos bons ou maus que a crença na ocorrência daquele
fato lhe fez nascer no íntimo.”
871. Pois que Deus tudo sabe, não ignora
se um homem sucumbirá ou não em determinada prova. Assim sendo, qual a
necessidade dessa prova, uma vez que nada acrescentará ao que Deus já
sabe a respeito desse homem? “Isso equivale a perguntar por que não
criou Deus o homem perfeito e acabado (119); por que passa o homem pela
infância, antes de chegar à condição de adulto (379). A prova não tem
por fim dar a Deus esclarecimentos sobre o homem, pois que Deus sabe
perfeitamente o que ele vale, mas dar ao homem toda a responsabilidade
de sua ação, uma vez que tem a liberdade de fazer ou não fazer. Dotado
da faculdade de escolher entre o bem e o mal, a prova tem por efeito
pô-lo em luta com as tentações do mal e conferir-lhe todo o mérito da
resistência. Ora, conquanto saiba de antemão se ele se sairá bem ou não,
Deus não o pode, em sua justiça, punir, nem recompensar, por um ato
ainda não praticado.” (258).
Assim sucede entre os homens. Por muito
capaz que seja um estudante, por grande que seja a certeza que se tenha
de que alcançará bom êxito, ninguém lhe confere grau algum sem exame,
isto é, sem prova. Do mesmo modo, o juiz não condena um acusado, senão
com fundamento num ato consumado e não na previsão de que ele possa ou
deva consumar esse ato. Quanto mais se reflete nas consequências que
teria para o homem o conhecimento do futuro, melhor se vê quanto foi
sábia a Providência em lho ocultar. A certeza de um acontecimento
venturoso o lançaria na inação. A de um acontecimento infeliz o encheria
de desânimo. Em ambos os casos, suas forças ficariam paralisadas. Daí o
não lhe ser mostrado o futuro, senão como meta que lhe cumpre atingir
por seus esforços, mas ignorando os trâmites por que terá de passar para
alcançá-la. O conhecimento de todos os incidentes da jornada lhe
tolheria a iniciativa e o uso do livre-arbítrio. Ele se deixaria
resvalar pelo declive fatal dos acontecimentos, sem exercer suas
faculdades. Quando o feliz êxito de uma coisa está assegurado, ninguém
mais com ela se preocupa.
RESUMO TEÓRICO DO MÓVEL DAS AÇÕES HUMANAS
872. A questão do livre-arbítrio se pode
resumir assim: O homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que
pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não
resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação,
escolher uma existência em que seja arrastado ao crime, quer pelo meio
onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que sobrevenham, mas
será sempre livre de agir ou não agir. Assim, o livre-arbítrio existe
para ele, quando no estado de Espírito, ao fazer a escolha da existência
e das provas e, como encarnado, na faculdade de ceder ou de resistir
aos arrastamentos a que todos nos temos voluntariamente submetido.
Cabe à educação combater essas más
tendências. Fá-lo-á utilmente, quando se basear no estudo aprofundado da
natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa
natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a
inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene. Desprendido
da matéria e no estado de erraticidade, o Espírito procede à escolha de
suas futuras existências corporais, de acordo com o grau de perfeição a
que haja chegado e é nisto, como temos dito, que consiste, sobretudo, o
seu livre-arbítrio.
Esta liberdade, a encarnação não a anula.
Se ele cede à influência da matéria, é que sucumbe nas provas que por
si mesmo escolheu. Para ter quem o ajude a vencê-las, concedido lhe é
invocar a assistência de Deus e dos bons Espíritos. (337) Sem o
livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem
mérito em praticar o bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no
mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade.
Ora, quem diz vontade diz liberdade. Nenhuma desculpa poderá, portanto, o
homem buscar, para os seus delitos, na sua organização física, sem
abdicar da razão e da sua condição de ser humano, para se equiparar ao
bruto. Se fora assim quanto ao mal, assim não poderia deixar de ser
relativamente ao bem.
Mas, quando o homem pratica o bem, tem
grande cuidado de averbar o fato à sua conta, como mérito, e não cogita
de por ele gratificar os seus órgãos, o que prova que, por instinto, não
renuncia, malgrado à opinião de alguns sistemáticos, ao mais belo
privilégio de sua espécie: a liberdade de pensar. A fatalidade, como
vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos
os sucessos da vida, qualquer que seja a importância deles. Se tal fosse
a ordem das coisas, o homem seria qual máquina sem vontade. De que lhe
serviria a inteligência, desde que houvesse de estar invariavelmente
dominado, em todos os seus atos, pela for- ça do destino? Semelhante
doutrina, se verdadeira, conteria a destruição de toda liberdade moral;
já não haveria para o homem responsabilidade, nem, por conseguinte, bem,
nem mal, crimes ou virtudes. Não seria possível que Deus, soberanamente
justo, castigasse suas criaturas por faltas cujo cometimento não
dependera delas, nem que as recompensasse por virtudes de que nenhum
mérito teriam.
Demais, tal lei seria a negação da do
progresso, porquanto o homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria
para melhorar a sua posição, visto que não conseguiria ser mais nem
menos. Contudo, a fatalidade não é uma palavra vã. Existe na posição que
o homem ocupa na Terra e nas funções que aí desempenha, em consequência
do gênero de vida que seu Espírito escolheu como prova, expiação ou
missão. Ele sofre fatalmente todas as vicissitudes dessa existência e
todas as tendências boas ou más, que lhe são inerentes. Aí, porém, acaba
a fatalidade, pois da sua vontade depende ceder ou não a essas
tendências.
Os pormenores dos acontecimentos,
esses ficam subordinados às circunstâncias que ele próprio cria pelos
seus atos, sendo que nessas circunstâncias podem os Espíritos influir
pelos pensamentos que sugiram. (459) Há fatalidade, portanto, nos
acontecimentos que se apresentam, por serem estes consequência da
escolha que o Espírito fez da sua existência de homem.
Pode deixar de haver fatalidade no
resultado de tais acontecimentos, visto ser possível ao homem, pela sua
prudência, mundificar-lhes o curso. Nunca há fatalidade nos atos da vida
moral. No que concerne à morte é que o homem se acha submetido, em
absoluto, à inexorável lei da fatalidade, por isso que não pode escapar à
sentença que lhe marca o termo da existência, nem ao gênero de morte
que haja de cortar a esta o fio.
Segundo a doutrina vulgar, de si mesmo
tiraria o homem todos os seus instintos, que, então, proviriam, ou da
sua organização física, pela qual nenhuma responsabilidade lhe toca, ou
da sua própria natureza, caso em que lícito lhe fora procurar
desculpar-se consigo mesmo, dizendo não lhe pertencer a culpa de ser
feito como é. Muito mais moral se mostra, indiscutivelmente, a Doutrina
Espírita. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude
e, se lhe diz que, praticando o mal, ele cede a uma sugestão estranha e
má, em nada lhe diminui a responsabilidade, pois lhe reconhece o poder
de resistir, o que evidentemente lhe é muito mais fácil do que lutar
contra a sua própria natureza. Assim, de acordo com a Doutrina Espírita,
não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar ouvidos à
voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindo-o ao mal, como pode
cerrá-los à voz material daquele que lhe fale ostensivamente.
Pode-o pela ação da sua vontade, pedindo a
Deus a força necessária e reclamando, para tal fim, a assistência dos
bons Espíritos. Foi o que Jesus nos ensinou por meio da sublime prece
que é a Oração dominical, quando manda que digamos: “Não nos deixes
sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal.” Essa teoria da causa
determinante dos nossos atos ressalta com evidência de todo o ensino que
os Espíritos hão dado. Não só é sublime de moralidade, mas também,
acrescentaremos, eleva o homem aos seus próprios olhos. Mostra-o livre
de subtrair-se a um jugo obsessor, como livre é de fechar sua casa aos
importunos. Ele deixa de ser simples máquina, atuando por efeito de uma
impulsão independente da sua vontade, para ser um ente racional, que
ouve, julga e escolhe livremente de dois conselhos um. Aditemos que,
apesar disto, o homem não se acha privado de iniciativa, não deixa de
agir por impulso próprio, pois que, em definitivo, ele é apenas um
Espírito encarnado que conserva, sob o envoltório corporal, as
qualidades e os defeitos que tinha como Espírito.
Conseguintemente, as faltas que
cometemos têm por fonte primária a imperfeição do nosso próprio
Espírito, que ainda não conquistou a superioridade moral que um dia
alcançará, mas que, nem por isso, carece de livre-arbítrio. A vida
corpórea lhe é dada para se expungir de suas imperfeições, mediante as
provas por que passa, imperfeições que, precisamente, o tornam mais
fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que
delas se aproveitam para tentar fazê-lo sucumbir na luta em que se
empenhou. Se dessa luta sai vencedor, ele se eleva; se fracassa,
permanece o que era, nem pior, nem melhor. Será uma prova que lhe cumpre
recomeçar, podendo suceder que longo tempo gaste nessa alternativa.
Quanto mais se depura, tanto mais
diminuem os seus pontos fracos e tanto menos acesso oferece aos que
procurem atraí-lo para o mal. Na razão de sua elevação, cresce-lhe a
força moral, fazendo que dele se afastem os maus Espíritos. Todos os
Espíritos, mais ou menos bons, quando encarnados, constituem a espécie
humana e, como o nosso mundo é um dos menos adiantados, nele se conta
maior número de Espíritos maus do que de bons. Tal a razão por que aí
vemos tanta perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para a este
planeta não voltarmos, após a presente estada, e para merecermos ir
repousar em mundo melhor, em um desses mundos privilegiados, onde não
nos lembraremos da nossa passagem por aqui, senão como de um exílio
temporário.
CAPÍTULO X I
Da lei de justiça, de amor e de caridade
• Justiça e direitos naturais
• Direito de propriedade. Roubo
• Caridade e amor do próximo
• Amor materno e filial
JUSTIÇA E DIREITOS NATURAIS
873. O sentimento da justiça está em a
natureza, ou é resultado de idéias adquiridas? “Está de tal modo em a
natureza, que vos revoltais à simples idéia de uma injustiça. É fora de
dúvida que o progresso moral desenvolve esse sentimento, mas não o dá.
Deus o pôs no coração do homem. Daí vem que, frequentemente, em homens
simples e incultos se vos deparam noções mais exatas da justiça do que
nos que possuem grande cabedal de saber.”
874. Sendo a justiça uma lei da Natureza,
como se explica que os homens a entendam de modos tão diferentes,
considerando uns justo o que a outros parece injusto? “É porque a esse
sentimento se misturam paixões que o alteram, como sucede à maior parte
dos outros sentimentos naturais, fazendo que os homens vejam as coisas
por um prisma falso.”
875. Como se pode definir a justiça? “A
justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais.” a) — Que é
o que determina esses direitos? “Duas coisas: a lei humana e a lei
natural. Tendo os homens formulado leis apropriadas a seus costumes e
caracteres, elas estabeleceram direitos mutáveis com o progresso das
luzes. Vede se hoje as vossas leis, aliás imperfeitas, consagram os
mesmos direitos que as da Idade Média. Entretanto, esses direitos
antiquados, que agora se vos afiguram monstruosos, pareciam justos e
naturais naquela época. Nem sempre, pois, é acorde com a justiça o
direito que os homens prescrevem. Demais, este direito regula apenas
algumas relações sociais, quando é certo que, na vida particular, há uma
imensidade de atos unicamente da alçada do tribunal da consciência.”
876. Posto de parte o direito que a lei
humana consagra, qual a base da justiça, segundo a lei natural? “Disse o
Cristo: Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo. No
coração do homem imprimiu Deus a regra da verdadeira justiça, fazendo
que cada um deseje ver respeitados os seus direitos. Na incerteza de
como deva proceder com o seu semelhante, em dada circunstância, trate o
homem de saber como quereria que com ele procedessem, em circunstância
idêntica. Guia mais seguro do que a própria consciência não lhe podia
Deus haver dado.”
Efetivamente, o critério da verdadeira
justiça está em querer cada um para os outros o que para si mesmo
quereria e não em querer para si o que quereria para os outros, o que
absolutamente não é a mesma coisa. Não sendo natural que haja quem
deseje o mal para si, desde que cada um tome por modelo o seu desejo
pessoal, é evidente que nunca ninguém desejará para o seu semelhante
senão o bem. Em todos os tempos e sob o império de todas as crenças,
sempre o homem se esforçou para que prevalecesse o seu direito pessoal. A
sublimidade da religião cristã está em que ela tomou o direito pessoal
por base do direito do próximo.
877. Da necessidade que o homem tem de
viver em sociedade, nascem-lhe obrigações especiais? “Certo e a primeira
de todas é a de respeitar os direitos de seus semelhantes. Aquele que
respeitar esses direitos procederá sempre com justiça. Em o vosso mundo,
porque a maioria dos homens não pratica a lei de justiça, cada um usa
de represálias. Essa a causa da perturbação e da confusão em que vivem
as sociedades humanas. A vida social outorga direitos e impõe deveres
recíprocos.”
878. Podendo o homem enganar-se quanto à
extensão do seu direito, que é o que lhe fará conhecer o limite desse
direito? “O limite do direito que, com relação a si mesmo, reconhecer ao
seu semelhante, em idênticas circunstâncias e reciprocamente.” a) —
Mas, se cada um atribuir a si mesmo direitos iguais aos de seu
semelhante, que virá a ser da subordinação aos superiores? Não será isso
a anarquia de todos os poderes? “Os direitos naturais são os mesmos
para todos os homens, desde os de condição mais humilde até os de
posição mais elevada. Deus não fez uns de limo mais puro do que o de que
se serviu para fazer os outros, e todos, aos seus olhos, são iguais.
Esses direitos são eternos. Os que o homem estabeleceu perecem com as
suas instituições. Demais, cada um sente bem a sua força ou a sua
fraqueza e saberá sempre ter uma certa deferência para com os que o
mereçam por suas virtudes e sabedoria. É importante acentuar isto, para
que os que se julgam superiores conheçam seus deveres, a fim de merecer
essas deferências. A subordinação não se achará comprometida, quando a
autoridade for deferida à sabedoria.”
879. Qual seria o caráter do homem que
praticasse a justiça em toda a sua pureza? “O do verdadeiro justo, a
exemplo de Jesus, porquanto praticaria também o amor do próximo e a
caridade, sem os quais não há verdadeira justiça.”
DIREITO DE PROPRIEDADE. ROUBO
880. Qual o primeiro de todos os direitos
naturais do homem? “O de viver. Por isso é que ninguém tem o de atentar
contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa
comprometer-lhe a existência corporal.”
881. O direito de viver dá ao homem o de
acumular bens que lhe permitam repousar quando não mais possa trabalhar?
“Dá, mas ele deve fazê-lo em família, como a abelha, por meio de um
trabalho honesto, e não como egoísta. Há mesmo animais que lhe dão o
exemplo de previdência.”
882. Tem o homem o direito de defender os
bens que haja conseguido juntar pelo seu trabalho? “Não disse Deus:
‘Não roubarás?’ E Jesus não disse: ‘Dai a César o que é de César?’ O
que, por meio do trabalho honesto, o homem junta constitui legítima
propriedade sua, que ele tem o direito de defender, porque a propriedade
que resulta do trabalho é um direito natural, tão sagrado quanto o de
trabalhar e de viver.
883. É natural o desejo de possuir? “Sim,
mas quando o homem deseja possuir para si somente e para sua satisfação
pessoal, o que há é egoísmo.” a) — Não será, entretanto, legítimo o
desejo de possuir, uma vez que aquele que tem de que viver a ninguém é
pesado? “Há homens insaciáveis, que acumulam bens sem utilidade para
ninguém, ou apenas para saciar suas paixões. Julgas que Deus vê isso com
bons olhos? Aquele que, ao contrário, junta pelo trabalho, tendo em
vista socorrer os seus semelhantes, pratica a lei de amor e caridade, e
Deus abençoa o seu trabalho.”
884. Qual o caráter da legítima
propriedade? “Propriedade legítima só é a que foi adquirida sem prejuízo
de outrem.” (808) Proibindo-nos que façamos aos outros o que não
desejáramos que nos fizessem, a lei de amor e de justiça nos proíbe,
ipso facto, a aquisição de bens por quaisquer meios que lhe sejam
contrários.
885. Será ilimitado o direito de
propriedade? “É fora de dúvida que tudo o que legitimamente se adquire
constitui uma propriedade. Mas, como havemos dito, a legislação dos
homens, porque imperfeita, consagra muitos direitos convencionais, que a
lei de justiça reprova. Essa a razão por que eles reformam suas leis, à
medida que o progresso se efetua e que melhor compreendem a justiça. O
que num século parece perfeito, afigura-se bárbaro no século seguinte.”
(795)
CARIDADE E AMOR DO PRÓXIMO
886. Qual o verdadeiro sentido da palavra
caridade, como a entendia Jesus? “Benevolência para com todos,
indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.” O amor
e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é
fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejáramos nos fosse
feito. Tal o sentido destas palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros
como irmãos. A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola,
abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos semelhantes,
sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores. Ela
nos prescreve a indulgência, porque de indulgência precisamos nós
mesmos, e nos proíbe que humilhemos os desafortunados, contrariamente ao
que se costuma fazer. Apresente-se uma pessoa rica e todas as atenções e
deferências lhe são dispensadas. Se for pobre, toda gente como que
entende que não precisa preocupar-se com ela. No entanto, quanto mais
lastimosa seja a sua posição, tanto maior cuidado devemos pôr em lhe não
aumentarmos o infortúnio pela humilhação. O homem verdadeiramente bom
procura elevar, aos seus próprios olhos, aquele que lhe é inferior,
diminuindo a distância que os separa.
887. Jesus também disse: Amai mesmo os
vossos inimigos. Ora, o amor aos inimigos não será contrário às nossas
tendências naturais e a inimizade não provirá de uma falta de simpatia
entre os Espíritos? “Certo ninguém pode votar aos seus inimigos um amor
terno e apaixonado. Não foi isso o que Jesus entendeu de dizer. Amar os
inimigos é perdoar-lhes e lhes retribuir o mal com o bem. O que assim
procede se torna superior aos seus inimigos, ao passo que abaixo deles
se coloca, se procura tomar vingança.”
888. Que se deve pensar da esmola?
“Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente:
embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na justiça
deve prover à vida do fraco, sem que haja para ele humilhação. Deve
assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a
vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns”. a) — Dar-se-á
reproveis a esmola? Não; o que merece reprovação não é a esmola, mas a
maneira por que habitualmente é dada. O homem de bem, que compreende a
caridade de acordo com Jesus, vai ao encontro do desgraçado, sem esperar
que este lhe estenda a mão. “A verdadeira caridade é sempre bondosa e
benévola; está tanto no ato, como na maneira por que é praticado. Duplo
valor tem um serviço prestado com delicadeza. Se o for com altivez, pode
ser que a necessidade obrigue quem o recebe a aceitá-lo, mas o seu
coração pouco se comoverá. “Lembrai-vos também de que, aos olhos de
Deus, a ostentação tira o mérito ao benefício. Disse Jesus: ‘Ignore a
vossa mão esquerda o que a direita der.’ Por essa forma, ele vos ensinou
a não tisnardes a caridade com o orgulho. “Deve-se distinguir a esmola,
propriamente dita, da beneficência. Nem sempre o mais necessitado é o
que pede. O temor de uma humilhação detém o verdadeiro pobre, que muita
vez sofre sem se queixar. A esse é que o homem verdadeiramente humano
sabe ir procurar, sem ostentação. “Amai-vos uns aos outros, eis toda a
lei, lei divina, mediante a qual governa Deus os mundos. O amor é a lei
de atração para os seres vivos e organizados. A atração é a lei de amor
para a matéria inorgânica. “Não esqueçais nunca que o Espírito, qualquer
que sejam o grau de seu adiantamento, sua situação como reencarnado, ou
na erraticidade, está sempre colocado entre um superior, que o guia e
aperfeiçoa, e um inferior, para com o qual tem que cumprir esses mesmos
deveres. Sede, pois, caridosos, praticando, não só a caridade que vos
faz dar friamente o óbolo que tirais do bolso ao que vo-lo ousa pedir,
mas a que vos leve ao encontro das misérias ocultas. Sede indulgentes
com os defeitos dos vossos semelhantes. Em vez de votardes desprezo à
ignorância e ao vício, instruí os ignorantes e moralizai os viciados.
Sede brandos e benevolentes para com tudo o que vos seja inferior.
Sede-o para com os seres mais ínfimos da criação e tereis obedecido à
lei de Deus.”
SÃO VICENTE DE PAULO
889. Não há homens que se veem condenados
a mendigar por culpa sua? “Sem dúvida; mas, se uma boa educação moral
lhes houvera ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos
excessos causadores da sua perdição. Disso, sobretudo, é que depende a
melhoria do vosso planeta.” (707)
AMOR MATERNO E FILIAL
890. Será uma virtude o amor materno, ou
um sentimento instintivo, comum aos homens e aos animais? “Uma e outra
coisa. A Natureza deu à mãe o amor a seus filhos no interesse da
conservação deles. No animal, porém, esse amor se limita às necessidades
materiais; cessa quando desnecessários se tornam os cuidados. No homem,
persiste pela vida inteira e comporta um devotamento e uma abnegação
que são virtudes. Sobrevive mesmo à morte e acompanha o filho até no
além-túmulo. Bem vedes que há nele coisa diversa do que há no amor do
animal.” (205-385)
891. Estando em a Natureza o amor
materno, como é que há mães que odeiam os filhos e, não raro, desde a
infância destes? Às vezes, é uma prova que o Espírito do filho escolheu,
ou uma expiação, se aconteceu ter sido mau pai, ou mãe perversa, ou mau
filho, noutra existência (392). Em todos os casos, a mãe má não pode
deixar de ser animada por um mau Espírito que procura criar embaraços ao
filho, a fim de que sucumba na prova que buscou. Mas, essa violação das
leis da Natureza não ficará impune e o Espírito do filho será
recompensado pelos obstáculos de que haja triunfado.”
892. Quando os filhos causam desgostos
aos pais, não têm estes desculpa para o fato de lhes não dispensarem a
ternura de que os fariam objeto, em caso contrário? “Não, porque isso
representa um encargo que lhes é confiado e a missão deles consiste em
se esforçarem por encaminhar os filhos para o bem (582-583). Demais,
esses desgostos são, amiúde, a consequência do mau feitio que os pais
deixaram que seus filhos tomassem desde o berço. Colhem o que semearam.”
CAPÍTULO XII
Da perfeição moral
• As virtudes e os vícios
• Paixões • O egoísmo
• Caracteres do homem de bem
• Conhecimento de si mesmo
AS VIRTUDES E OS VÍCIOS
893. Qual a mais meritória de todas as
virtudes? “Toda virtude tem seu mérito próprio, porque todas indicam
progresso na senda do bem. Há virtude sempre que há resistência
voluntária ao arrastamento dos maus pendores. A sublimidade da virtude,
porém, está no sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem
pensamento oculto. A mais meritória é a que assenta na mais
desinteressada caridade.”
894. Há pessoas que fazem o bem
espontaneamente, sem que precisem vencer quaisquer sentimentos que lhes
sejam opostos. Terão tanto mérito, quanto as que se veem na contingência
de lutar contra a natureza que lhes é própria e a vencem? “Só não têm
que lutar aqueles em quem já há progresso realizado. Esses lutaram
outrora e triunfaram. Por isso é que os bons sentimentos nenhum esforço
lhes custam e suas ações lhes parecem simplíssimas. O bem se lhes tornou
um hábito. Devidas lhes são as honras que se costuma tributar a velhos
guerreiros que conquistaram seus altos postos. Como ainda estais longe
da perfeição, tais exemplos vos espantam pelo contraste com o que tendes
à vista e tanto mais os admirais, quanto mais raros são. Ficai sabendo,
porém, que, nos mundos mais adiantados do que o vosso, constitui a
regra o que entre vós representa a exceção. Em todos os pontos desses
mundos, o sentimento do bem é espontâneo, porque somente bons Espíritos
os habitam. Lá, uma só intenção maligna seria monstruosa exceção. Eis
por que neles os homens são ditosos. O mesmo se dará na Terra, quando a
Humanidade se houver transformado, quando compreender e praticar a
caridade na sua verdadeira acepção.”
895. Postos de lado os defeitos e os
vícios acerca dos quais ninguém se pode equivocar, qual o sinal mais
característico da imperfeição? O interesse pessoal. Frequentemente, as
qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que não
resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir qualidades reais, que
levem o mundo a considerá-lo homem de bem. Mas, essas qualidades,
conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e às
vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo
fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na
Terra que, quando se patenteia, todos o admiram como se fora um
fenômeno.
“O apego às coisas materiais constitui
sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens
deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu destino. Pelo
desinteresse, ao contrário, demonstra que encara de um ponto mais
elevado o futuro.”
896. Há pessoas desinteressadas, mas sem
discernimento, que prodigalizam seus haveres sem utilidade real, por
lhes não saberem dar emprego criterioso. Têm algum merecimento essas
pessoas? “Têm o do desinteresse, porém não o do bem que poderiam fazer. O
desinteresse é uma virtude, mas a prodigalidade irrefletida constitui
sempre, pelo menos, falta de juízo. A riqueza, assim como não é dada a
uns para ser aferrolhada num cofre forte, também não o é a outros para
ser dispersada ao vento. Representa um depósito de que uns e outros
terão de prestar contas, porque terão de responder por todo o bem que
podiam fazer e não fizeram, por todas as lágrimas que podiam ter
estancado com o dinheiro que deram aos que dele não precisavam.”
897. Merecerá reprovação aquele que faz o
bem, sem visar a qualquer recompensa na Terra, mas esperando que lhe
seja levado em conta na outra vida e que lá venha a ser melhor a sua
situação? E essa preocupação lhe prejudicará o progresso? “O bem deve
ser feito caritativamente, isto é, com desinteresse.” a) — Contudo,
todos alimentam o desejo muito natural de progredir, para forrar-se à
penosa condição desta vida. Os próprios Espíritos nos ensinam a praticar
o bem com esse objetivo. Será, então, um mal pensarmos que, praticando o
bem, podemos esperar coisa melhor do que temos na Terra? “Não,
certamente; mas aquele que faz o bem, sem idéia preconcebida, pelo só
prazer de ser agradável a Deus e ao seu próximo que sofre, já se acha
num certo grau de progresso, que lhe permitirá alcançar a felicidade
muito mais depressa do que seu irmão que, mais positivo, faz o bem por
cálculo e não impelido pelo ardor natural do seu coração.” (894) b) —
Não haverá aqui uma distinção a estabelecer-se entre o bem que podemos
fazer ao nosso próximo e o cuidado que pomos em corrigir-nos dos nossos
defeitos? Concebemos que seja pouco meritório fazermos o bem com a idéia
de que nos seja levado em conta na outra vida; mas será igualmente
indício de inferioridade emendarmo-nos, vencermos as nossas paixões,
corrigirmos o nosso caráter, com o propósito de nos aproximarmos dos
bons Espíritos e de nos elevarmos? “Não, não. Quando dizemos — fazer o
bem, queremos significar — ser caridoso. Procede como egoísta todo
aquele que calcula o que lhe possa cada uma de suas boas ações render na
vida futura, tanto quanto na vida terrena. Nenhum egoísmo, porém, há em
querer o homem melhorar-se, para se aproximar de Deus, pois que é o fim
para o qual devem todos tender.”
898. Sendo a vida corpórea apenas uma
estada temporária neste mundo e devendo o futuro constituir objeto da
nossa principal preocupação, será útil nos esforcemos por adquirir
conhecimentos científicos que só digam respeito às coisas e às
necessidades materiais? “Sem dúvida. Primeiramente, isso vos põe em
condições de auxiliar os vossos irmãos; depois, o vosso Espírito subirá
mais depressa, se já houver progredido em inteligência. Nos intervalos
das encarnações, aprendereis numa hora o que na Terra vos exigiria anos
de aprendizado. Nenhum conhecimento é inútil; todos mais ou menos
contribuem para o progresso, porque o Espírito, para ser perfeito, tem
que saber tudo, e porque, cumprindo que o progresso se efetue em todos
os sentidos, todas as idéias adquiridas ajudam o desenvolvimento do
Espírito.”
899. Qual o mais culpado de dois homens
ricos que empregam exclusivamente em gozos pessoais suas riquezas, tendo
um nascido na opulência e desconhecido sempre a necessidade, devendo o
outro ao seu trabalho os bens que possui? “Aquele que conheceu os
sofrimentos, porque sabe o que é sofrer. A dor, a que nenhum alívio
procura dar, ele a conhece; porém, como frequentemente sucede, já dela
se não lembra.”
900. Aquele que incessantemente acumula
haveres, sem fazer o bem a quem quer que seja, achará desculpa, que
valha, na circunstância de acumular com o fito de maior soma legar aos
seus herdeiros? “É um compromisso com a consciência má.”
901. Figuremos dois avarentos, um dos
quais nega a si mesmo o necessário e morre de miséria sobre o seu
tesouro, ao passo que o segundo só o é para os outros, mostrando-se
pródigo para consigo mesmo; enquanto recua ante o mais ligeiro
sacrifício para prestar um serviço ou fazer qualquer coisa útil, nunca
julga demasiado o que despenda para satisfazer aos seus gostos ou às
suas paixões. Peça-se-lhe um obséquio e estará sempre em dificuldade
para fazê-lo; imagine, porém, realizar uma fantasia e terá sempre o
bastante para isso. Qual o mais culpado e qual o que se achará em pior
situação no mundo dos Espíritos? “O que goza, porque é mais egoísta do
que avarento. O outro já recebeu parte do seu castigo.”
892. Quando os filhos causam desgostos
aos pais, não têm estes desculpa para o fato de lhes não dispensarem a
ternura de que os fariam objeto, em caso contrário? “Não, porque isso
representa um encargo que lhes é confiado e a missão deles consiste em
se esforçarem por encaminhar os filhos para o bem (582-583). Demais,
esses desgostos são, amiúde, a consequência do mau feitio que os pais
deixaram que seus filhos tomassem desde o berço. Colhem o que semearam.”
903. Incorre em culpa o homem, por
estudar os defeitos alheios? “Incorrerá em grande culpa, se o fizer para
os criticar e divulgar, porque será faltar com a caridade. Se o fizer,
para tirar daí proveito, para evitá-los, tal estudo poderá ser-lhe de
alguma utilidade. Importa, porém, não esquecer que a indulgência para
com os defeitos de outrem é uma das virtudes contidas na caridade. Antes
de censurardes as imperfeições dos outros, vede se de vós não poderão
dizer o mesmo. Tratai, pois, de possuir as qualidades opostas aos
defeitos que criticais no vosso semelhante. Esse o meio de vos tornardes
superiores a ele. Se lhe censurais o ser avaro, sede generosos; se o
ser orgulhoso, sede humildes e modestos; se o ser áspero, sede brandos;
se o proceder com pequenez, sede grandes em todas as vossas ações. Numa
palavra, fazei por maneira que se não vos possam aplicar estas palavras
de Jesus: Vê o argueiro no olho do seu vizinho e não vê a trave no seu
próprio.”
904. Incorrerá em culpa aquele que sonda
as chagas da sociedade e as expõe em público? “Depende do sentimento que
o mova. Se o escritor apenas visa produzir escândalo, não faz mais do
que proporcionar a si mesmo um gozo pessoal, apresentando quadros que
constituem antes mau do que bom exemplo. O Espírito aprecia isso, mas
pode vir a ser punido por essa espécie de prazer que encontra em revelar
o mal.” a) — Como, em tal caso, julgar da pureza das intenções e da
sinceridade do escritor? “Nem sempre há nisso utilidade. Se ele escrever
boas coisas, aproveitai-as. Se proceder mal, é uma questão de
consciência que lhe diz respeito, exclusivamente. Demais, se o escritor
tem empenho em provar a sua sinceridade, apoie o que disser nos exemplos
que dê.”
905. Alguns autores hão publicado
belíssimas obras de grande moral, que auxiliam o progresso da
Humanidade, das quais, porém, nenhum proveito tiraram eles. Ser-lhes-á
levado em conta, como Espíritos, o bem a que suas obras hajam dado
lugar? “A moral sem as ações é o mesmo que a semente sem o trabalho. De
que vos serve a semente, se não a fazeis dar frutos que vos alimentem?
Grave é a culpa desses homens, porque dispunham de inteligência para
compreender. Não praticando as máximas que ofereciam aos outros,
renunciaram a colher-lhes os frutos.”
906. Será passível de censura o
homem, por ter consciência do bem que faz e por confessá-lo a si mesmo?
“Pois que pode ter consciência do mal que pratica, do bem igualmente
deve tê-la, a fim de saber se andou bem ou mal. Pesando todos os seus
atos na balança da lei de Deus e, sobretudo, na da lei de justiça, amor e
caridade, é que poderá dizer a si mesmo se suas obras são boas ou más,
que as poderá aprovar ou desaprovar. Não se lhe pode, portanto, censurar
que reconheça haver triunfado dos maus pendores e que se sinta
satisfeito, desde que de tal não se envaideça, porque então cairia
noutra falta.” (919)
PAIXÕES
907. Será substancialmente mau o
princípio originário das paixões, embora esteja na natureza? “Não; a
paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o
princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as
paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas
se faz é que causa o mal.”
908. Como se poderá determinar o limite
onde as paixões deixam de ser boas para se tornarem más? “As paixões são
como um corcel, que só tem utilidade quando governado e que se torna
perigoso desde que passe a governar. Uma paixão se torna perigosa a
partir do momento em que deixais de poder governá-la e que dá em
resultado um prejuízo qualquer para vós mesmos, ou para outrem.” As
paixões são alavancas que decuplicam as forças do homem e o auxiliam na
execução dos desígnios da Providência. Mas, se, em vez de às dirigir,
deixa que elas o dirijam, cai o homem nos excessos e a própria força
que, manejada pelas suas mãos, poderia produzir o bem, contra ele se
volta e o esmaga. Todas as paixões têm seu princípio num sentimento, ou
numa necessidade natural. O princípio das paixões não é, assim, um mal,
pois que assenta numa das condições providenciais da nossa existência. A
paixão propriamente dita é a exageração de uma necessidade ou de um
sentimento. Está no excesso e não na causa e este excesso se torna um
mal, quando tem como consequência um mal qualquer. Toda paixão que
aproxima o homem da natureza animal afasta-o da natureza espiritual.
Todo sentimento que eleva o homem acima da natureza animal denota
predominância do Espírito sobre a matéria e o aproxima da perfeição.
909. Poderia sempre o homem, pelos seus
esforços, vencer as suas más inclinações? “Sim, e, frequentemente,
fazendo esforços muito insignificantes. O que lhe falta é a vontade. Ah!
quão poucos dentre vós fazem esforços!”
910. Pode o homem achar nos Espíritos
eficaz assistência para triunfar de suas paixões? “Se o pedir a Deus e
ao seu bom gênio, com sinceridade, os bons Espíritos lhe virão
certamente em auxílio, porquanto é essa a missão deles.” (459)
911. Não haverá paixões tão vivas e
irresistíveis, que a vontade seja impotente para dominá-las? “Há muitas
pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem,
porém muito satisfeitas ficam que não seja como ‘querem’. Quando o
homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se
compraz nelas, em consequência da sua inferioridade. Compreende a sua
natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para
ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria.”
912. Qual o meio mais eficiente de combater-se o predomínio da natureza corpórea? “Praticar a abnegação.”
O EGOÍSMO
913. Dentre os vícios, qual o que se pode
considerar radical? “Temo-lo dito muitas vezes: o egoísmo. Daí deriva
todo mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos há
egoísmo. Por mais que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los,
enquanto não atacardes o mal pela raiz, enquanto não lhe houverdes
destruído a causa. Tendam, pois, todos os esforços para esse efeito,
porquanto aí é que está a verdadeira chaga da sociedade. Quem quiser,
desde esta vida, ir aproximando-se da perfeição moral, deve expurgar o
seu coração de todo sentimento de egoísmo, visto ser o egoísmo
incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Ele neutraliza todas as
outras qualidades.”
914. Fundando-se o egoísmo no sentimento
do interesse pessoal, bem difícil parece extirpá-lo inteiramente do
coração humano. Chegar-se-á a consegui-lo? “À medida que os homens se
instruem acerca das coisas espirituais, menos valor dão às coisas
materiais. Depois, necessário é que se reformem as instituições humanas
que o entretêm e excitam. Isso depende da educação.”
915. Por ser inerente à espécie humana, o
egoísmo não constituirá sempre um obstáculo ao reinado do bem absoluto
na Terra? “É exato que no egoísmo tendes o vosso maior mal, porém ele se
prende à inferioridade dos Espíritos encarnados na Terra e não à
Humanidade mesma. Ora, depurando-se por encarnações sucessivas, os
Espíritos se despojam do egoísmo, como de suas outras impurezas. Não
existirá na Terra nenhum homem isento de egoísmo e praticante da
caridade? Há muito mais homens assim do que supondes. Apenas, não os
conheceis, porque a virtude foge à viva claridade do dia. Desde que haja
um, por que não haverá dez? havendo dez, por que não haverá mil e assim
por diante?”
916. Longe de diminuir, o egoísmo
cresce com a civilização, que, até, parece, o excita e mantém. Como
poderá a causa destruir o efeito? “Quanto maior é o mal, mais hediondo
se torna”. Era preciso que o egoísmo produzisse muito mal, para que
compreensível se fizesse a necessidade de extirpá-lo. Os homens, quando
se houverem despojado do egoísmo que os domina, viverão como irmãos, sem
se fazerem mal algum, auxiliando-se reciprocamente, impelidos pelo
sentimento mútuo da solidariedade. Então, o forte será o amparo e não o
opressor do fraco e não mais serão vistos homens a quem falte o
indispensável, porque todos praticarão a lei de justiça. Esse o reinado
do bem, que os Espíritos estão incumbidos de preparar.” (784)
917. Qual o meio de destruir-se o
egoísmo? “De todas as imperfeições humanas, o egoísmo é a mais difícil
de desenraizar-se porque deriva da influência da matéria, influência de
que o homem, ainda muito próximo de sua origem, não pôde libertar-se e
para cujo entretenimento tudo concorre: suas leis, sua organização
social, sua educação. O egoísmo se enfraquecerá à proporção que a vida
moral for predominando sobre a vida material e, sobretudo, com a
compreensão, que o Espiritismo vos faculta, do vosso estado futuro, real
e não desfigurado por ficções alegóricas. Quando, bem compreendido, se
houver identificado com os costumes e as crenças, o Espiritismo
transformará os hábitos, os usos, as relações sociais. O egoísmo assenta
na importância da personalidade. Ora, o Espiritismo, bem compreendido,
repito, mostra as coisas de tão alto que o sentimento da personalidade
desaparece, de certo modo, diante da imensidade. Destruindo essa
importância, ou, pelo menos, reduzindo-a às suas legítimas proporções,
ele necessariamente combate o egoísmo. “O choque, que o homem
experimenta, do egoísmo dos outros é o que muitas vezes o faz egoísta,
por sentir a necessidade de colocar-se na defensiva. Notando que os
outros pensam em si próprios e não nele, ei-lo levado a ocupar-se
consigo, mais do que com os outros. Sirva de base às instituições
sociais, às relações legais de povo a povo e de homem a homem o
princípio da caridade e da fraternidade e cada um pensará menos na sua
pessoa, assim veja que outros nela pensaram. Todos experimentarão a
influência moralizadora do exemplo e do contato. Em face do atual
extravasamento de egoísmo, grande virtude é verdadeiramente necessária,
para que alguém renuncie à sua personalidade em proveito dos outros,
que, de ordinário, absolutamente lhe não agradecem. Principalmente para
os que possuem essa virtude, é que o reino dos céus se acha aberto. “A
esses, sobretudo, é que está reservada a felicidade dos eleitos, pois em
verdade vos digo que, no dia da justiça, será posto de lado e sofrerá
pelo abandono, em que se há de ver, todo aquele que em si somente houver
pensado.” (785) FÉNELON
Louváveis esforços indubitavelmente se
empregam para fazer que a Humanidade progrida. Os bons sentimentos são
animados, estimulados e honrados mais do que em qualquer outra época.
Entretanto, o egoísmo, verme roedor, continua a ser a chaga social. É um
mal real, que se alastra por todo o mundo e do qual cada homem é mais
ou menos vítima. Cumpre, pois, combatê-lo, como se combate uma
enfermidade epidêmica. Para isso, deve-se proceder como procedem os
médicos: ir à origem do mal. Procurem-se em todas as partes do organismo
social, da família aos povos, da choupana ao palácio, todas as causas,
todas as influências que, ostensiva ou ocultamente, excitam, alimentam e
desenvolvem o sentimento do egoísmo. Conhecidas as causas, o remédio se
apresentará por si mesmo. Só restará então destruí-las, senão
totalmente, de uma só vez, ao menos parcialmente, e o veneno pouco a
pouco será eliminado. Poderá ser longa a cura, porque numerosas são as
causas, mas não é impossível. Contudo, ela só se obterá se o mal for
atacado em sua raiz, isto é, pela educação, não por essa educação que
tende a fazer homens instruídos, mas pela que tende a fazer homens de
bem. A educação, convenientemente entendida, constitui a chave do
progresso moral. Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres,
como se conhece a de manejar as inteligências, conseguir-se-á
corrigi-los, do mesmo modo que se aprumam plantas novas. Essa arte,
porém, exige muito tato, muita experiência e profunda observação. É
grave erro pensar-se que, para exercê-la com proveito, baste o
conhecimento da Ciência. Quem acompanhar, assim o filho do rico, como o
do pobre, desde o instante do nascimento, e observar todas as
influências perniciosas que sobre eles atuam, em consequência da
fraqueza, da incúria e da ignorância dos que os dirigem, observando
igualmente com quanta frequência falham os meios empregados para
moralizá-los, não poderá espantar-se de encontrar pelo mundo tantas
esquisitices. Faça-se com o moral o que se faz com a inteligência e
ver-se-á que, se há naturezas refratárias, muito maior do que se julga é
o número das que apenas reclamam boa cultura, para produzir bons
frutos. (872) O homem deseja ser feliz e natural é o sentimento que dá
origem a esse desejo. Por isso é que trabalha incessantemente para
melhorar a sua posição na Terra, que pesquisa as causas de seus males,
para remediá-los. Quando compreender bem que no egoísmo reside uma
dessas causas, a que gera o orgulho, a ambição, a cupidez, a inveja, o
ódio, o ciúme, que a cada momento o magoam, a que perturba todas as
relações sociais, provoca as dissensões, aniquila a confiança, a que o
obriga a se manter constantemente na defensiva contra o seu vizinho,
enfim a que do amigo faz inimigo, ele compreenderá também que esse vício
é incompatível com a sua felicidade e, podemos mesmo acrescentar, com a
sua própria segurança. E quanto mais haja sofrido por efeito desse
vício, mais sentirá a necessidade de combatê-lo, como se combatem a
peste, os animais nocivos e todos os outros flagelos. O seu próprio
interesse a isso o induzirá. (784) O egoísmo é a fonte de todos os
vícios, como a caridade o é de todas as virtudes. Destruir um e
desenvolver a outra, tal deve ser o alvo de todos os esforços do homem,
se quiser assegurar a sua felicidade neste mundo, tanto quanto no
futuro.
CARACTERES DO HOMEM DE BEM
918. Por que indícios se pode reconhecer
em um homem o progresso real que lhe elevará o Espírito na hierarquia
espírita? “O Espírito prova a sua elevação, quando todos os atos de sua
vida corporal representam a prática da lei de Deus e quando
antecipadamente compreende a vida espiritual.” Verdadeiramente, homem de
bem é o que pratica a lei de justiça, amor e caridade, na sua maior
pureza. Se interrogar a própria consciência sobre os atos que praticou,
perguntará se não transgrediu essa lei, se não fez o mal, se fez todo
bem que podia, se ninguém tem motivos para dele se queixar, enfim se fez
aos outros o que desejara que lhe fizessem. Possuído do sentimento de
caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem contar com
qualquer retribuição, e sacrifica seus interesses à justiça. É bondoso,
humanitário e benevolente para com todos, porque vê irmãos em todos os
homens, sem distinção de raças, nem de crenças. Se Deus lhe outorgou o
poder e a riqueza, considera essas coisas como UM DEPÓSITO, de que lhe
cumpre usar para o bem. Delas não se envaidece, por saber que Deus, que
lhas deu, também lhas pode retirar. Se sob a sua dependência a ordem
social colocou outros homens, trata-os com bondade e complacência,
porque são seus iguais perante Deus. Usa da sua autoridade para lhes
levantar o moral e não para os esmagar com o seu orgulho. É indulgente
para com as fraquezas alheias, porque sabe que também precisa da
indulgência dos outros e se lembra destas palavras do Cristo: Atire a
primeira pedra aquele que estiver sem pecado. Não é vingativo. A exemplo
de Jesus, perdoa as ofensas, para só se lembrar dos benefícios, pois
não ignora que, como houver perdoado, assim perdoado lhe será. Respeita,
enfim, em seus semelhantes, todos os direitos que as leis da Natureza
lhes concedem, como quer que os mesmos direitos lhe sejam respeitados.
CONHECIMENTO DE SI MESMO
919. Qual o meio prático mais eficaz que
tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?
“Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo.” a) —
Conhecemos toda a sabedoria desta máxima, porém a dificuldade está
precisamente em cada um conhecer- -se a si mesmo. Qual o meio de
consegui-lo? “Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia,
interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e
perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera
motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a
ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites,
evocasse todas as ações que praticara durante o dia e inquirisse de si
mesmo o bem ou o mal que houvera feito, rogando a Deus e ao seu
anjo-de-guarda que o esclarecessem, grande força adquiriria para se
aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria. Dirigi, pois, a vós
mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que
objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes
alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes
alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: ‘Se
aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de
alguém, ao entrar de novo no mundo dos Espíritos, onde nada pode ser
ocultado?’
“Examinai o que pudestes ter obrado
contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós
mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência,
ou a indicação de um mal que precise ser curado. O conhecimento de si
mesmo é, portanto, a chave do progresso individual. Mas, direis, como há
de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor-próprio
para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera
apenas econômico e previdente; o orgulhoso julga que em si só há
dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não
pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de
vossas ações, inquiri como a qualificaríeis, se praticada por outra
pessoa. Se a censurais noutrem, não podereis ter por legítima
quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na
aplicação de sua justiça. Procurai também saber o que dela pensam os
vossos semelhantes e não desprezeis a opinião dos vossos inimigos,
porquanto esses nenhum interesse têm em mascarar a verdade e Deus muitas
vezes os coloca ao vosso lado como um espelho, a fim de que sejais
advertidos com mais franqueza do que o faria um amigo. Perscrute,
conseguintemente, a sua consciência aquele que se sinta possuído do
desejo sério de melhorar-se, a fim de extirpar de si os maus pendores,
como do seu jardim arranca as ervas daninhas; dê balanço no seu dia
moral para, a exemplo do comerciante, avaliar suas perdas e seus lucros e
eu vos asseguro que a conta destes será mais avultada que a daquelas.
Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em paz e aguardar
sem receio o despertar na outra vida. “Formulai, pois, de vós para
convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. Justo
é que se gastem alguns minutos para conquistar uma felicidade eterna.
Não trabalhais todos os dias com o fito de juntar haveres que vos
garantam repouso na velhice? Não constitui esse repouso o objeto de
todos os vossos desejos, o fim que vos faz suportar fadigas e privações
temporárias? Pois bem! que é esse descanso de alguns dias, turbado
sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o
homem de bem? Não valerá este outro a pena de alguns esforços? Sei haver
muitos que dizem ser positivo o presente e incerto o futuro. “Ora, esta
exatamente a idéia que estamos encarregados de eliminar do vosso
íntimo, visto desejarmos fazer que compreendais esse futuro, de modo a
não restar nenhuma dúvida em vossa alma. Por isso foi que primeiro
chamamos a vossa atenção por meio de fenô- menos capazes de ferir-vos os
sentidos e que agora vos damos instruções, que cada um de vós se acha
encarregado de espalhar. Com este objetivo é que ditamos O Livro dos
Espíritos.”
SANTO AGOSTINHO
Muitas faltas que cometemos nos passam
despercebidas. Se, efetivamente, seguindo o conselho de Santo Agostinho,
interrogássemos mais amiúde a nossa consciência, veríamos quantas vezes
falimos sem que o suspeitemos, unicamente por não perscrutarmos a
natureza e o móvel dos nossos atos. A forma interrogativa tem alguma
coisa de mais preciso do que qualquer máxima, que muitas vezes deixamos
de aplicar a nós mesmos. Aquela exige respostas categóricas, por um sim
ou um não, que não abrem lugar para qualquer alternativa e que não
outros tantos argumentos pessoais. E, pela soma que derem as respostas,
poderemos computar a soma de bem ou de mal que existe em nós.
PARTE QUARTA
Das esperanças e consolações
CAPÍTULO I – DAS PENAS E GOZOS TERRESTRES
CAPÍTULO II – DAS PENAS E GOZOS FUTUROS
CAPÍTULO I
Das penas e gozos terrestres
• Felicidade e infelicidade relativas
• Perda dos entes queridos
• Decepções. Ingratidão. Afeições destruídas
• Uniões antipáticas
• Temor da morte
• Desgosto da vida. Suicídio
FELICIDADE E INFELICIDADE RELATIVAS
920. Pode o homem gozar de completa
felicidade na Terra? “Não, por isso que a vida lhe foi dada como prova
ou expiação. Dele, porém, depende a suavização de seus males e o ser tão
feliz quanto possível na Terra.”
921. Concebe-se que o homem será feliz na
Terra, quando a Humanidade estiver transformada. Mas, enquanto isso se
não verifica, poderá conseguir uma felicidade relativa? “O homem é quase
sempre o obreiro da sua própria infelicidade. Praticando a lei de Deus,
a muitos males se forrará e proporcionará a si mesmo felicidade tão
grande quanto o comporte a sua existência grosseira.” Aquele que se acha
bem compenetrado de seu destino futuro não vê na vida corporal mais do
que uma estação temporária, uma como parada momentânea em péssima
hospedaria. Facilmente se consola de alguns aborrecimentos passageiros
de uma viagem que o levará a tanto melhor posição, quanto melhor tenha
cuidado dos preparativos para empreendê-la. Já nesta vida somos punidos
pelas infrações, que cometemos, das leis que regem a existência
corpórea, sofrendo os males consequentes dessas mesmas infrações e dos
nossos próprios excessos. Se, gradativamente, remontarmos à origem do
que chamamos as nossas desgraças terrenas, veremos que, na maioria dos
casos, elas são a consequência de um primeiro afastamento nosso do
caminho reto. Desviando-nos deste, enveredamos por outro, mau, e, de
consequência em consequência, caímos na desgraça.
922. A felicidade terrestre é relativa à
posição de cada um. O que basta para a felicidade de um, constitui a
desgraça de outro. Haverá, contudo, alguma soma de felicidade comum a
todos os homens? “Com relação à vida material, é a posse do necessário.
Com relação à vida moral, a consciência tranquila e a fé no futuro.”
923. O que para um é supérfluo não
representará, para outro, o necessário, e reciprocamente, de acordo com
as posições respectivas? “Sim, conformemente às vossas idéias materiais,
aos vossos preconceitos, à vossa ambição e às vossas ridículas
extravagâncias, a que o futuro fará justiça, quando compreenderdes a
verdade”. Não há dúvida de que aquele que tinha cinquenta mil libras de
renda, vendo-se reduzido a só ter dez mil, se considera muito
desgraçado, por não mais poder fazer a mesma figura, conservar o que
chama a sua posição, ter cavalos, lacaios, satisfazer a todas as
paixões, etc. Acredita que lhe falta o necessário. Mas, francamente,
achas que seja digno de lástima, quando ao seu lado muitos há, morrendo
de fome e frio, sem um abrigo onde repousem a cabeça? O homem
criterioso, a fim de ser feliz, olha sempre para baixo e não para cima, a
não ser para elevar sua alma ao infinito (715)
924. Há males que independem da maneira
de proceder do homem e que atingem mesmo os mais justos. Nenhum meio
terá ele de os evitar? “Deve resignar-se e sofrê-los sem murmurar, se
quer progredir. Sempre, porém, lhe é dado haurir consolação na própria
consciência, que lhe proporciona a esperança de melhor futuro, se fizer o
que é preciso para obtê-lo.
925. Por que favorece Deus, com os dons
da riqueza, a certos homens que não parecem tê-los merecido? “Isso
significa um favor aos olhos dos que apenas veem o presente. Mas, fica
sabendo, a riqueza é, de ordinário, prova mais perigosa do que a
miséria.” (814 e seguintes)
926. Criando novas necessidades, a
civilização não constitui uma fonte de novas aflições? “Os males deste
mundo estão na razão das necessidades factícias que vos criais. A muitos
desenganos se poupa nesta vida aquele que sabe restringir seus desejos e
olha sem inveja para o que esteja acima de si. O que menos necessidades
tem, esse o mais rico. Invejais os gozos dos que vos parecem os felizes
do mundo. Sabeis, porventura, o que lhes está reservado? Se os seus
gozos são todos pessoais, pertencem eles ao número dos egoístas: o
reverso então virá. Deveis, de preferência, lastimá-los. Deus algumas
vezes permite que o mau prospere, mas a sua felicidade não é de causar
inveja, porque com lágrimas amargas a pagará. Quando um justo é infeliz,
isso representa uma prova que lhe será levada em conta, se a suportar
com coragem. Lembrai-vos destas palavras de Jesus: Bem-aventurados os
que sofrem, pois que serão consolados.
927. Não há dúvida que, à felicidade, o
supérfluo não é forçosamente indispensável, porém o mesmo não se dá com o
necessário. Ora, não será real a infelicidade daqueles a quem falta o
necessário? Verdadeiramente infeliz o homem só o é quando sofre da falta
do necessário à vida e à saúde do corpo. Todavia, pode acontecer que
essa privação seja de sua culpa. Então, só tem que se queixar de si
mesmo. Se for ocasionada por outrem, a responsabilidade recairá sobre
aquele que lhe houver dado causa.
928. Evidentemente, por meio da
especialidade das aptidões naturais, Deus indica a nossa vocação neste
mundo. Muitos dos nossos males não advirão de não seguirmos essa
vocação? “Assim é, de fato, e muitas vezes são os pais que, por orgulho
ou avareza, desviam seus filhos da senda que a Natureza lhes traçou,
comprometendo-lhes a felicidade, por efeito desse desvio. Responderão
por ele”. a) — Acharíeis então justo que o filho de um homem altamente
colocado na sociedade fabricasse tamancos, por exemplo, desde que para
isso tivesse aptidão?
“Cumpre não cair no absurdo, nem exagerar
coisa alguma: a civilização tem suas exigências. Por que haveria de
fabricar tamancos o filho de um homem altamente colocado, como dizes, se
pode fazer outra coisa? Poderá sempre tornar-se útil na medida de suas
faculdades, desde que não as aplique às avessas. Assim, por exemplo, em
vez de mau advogado, talvez desse bom mecânico, etc.” No afastarem-se os
homens da sua esfera intelectual reside indubitavelmente uma das mais
frequentes causas de decepção. A inaptidão para a carreira abraçada
constitui fonte inesgotável de reveses. Depois, o amor-próprio,
sobrevindo a tudo isso, impede que o que fracassou recorra a uma
profissão mais humilde e lhe mostra o suicídio como remédio para escapar
ao que se lhe afigura humilhação. Se uma educação moral o houvesse
colocado acima dos tolos preconceitos do orgulho, jamais se teria
deixado apanhar desprevenido.
929. Pessoas há, que, baldas de todos os
recursos, embora no seu derredor reine a abundância, só têm diante de si
a perspectiva da morte. Que partido devem tomar? Devem deixar-se morrer
de fome? “Nunca ninguém deve ter a idéia de deixar-se morrer de fome. O
homem acharia sempre meio de se alimentar, se o orgulho não se
colocasse entre a necessidade e o trabalho. Costuma-se dizer: ‘Não há
ofício desprezível; o seu estado não é o que desonra o homem.’ Isso,
porém, cada um diz para os outros e não para si.”
930. É evidente que, se não fossem
os preconceitos sociais, pelos quais se deixa o homem dominar, ele
sempre acharia um trabalho qualquer, que lhe proporcionasse meio de
viver, embora deslocando-se da sua posição. Mas, entre os que não têm
preconceitos ou os põem de lado, não há pessoas que se veem na
impossibilidade de prover às suas necessidades, em consequência de
moléstias ou outras causas independentes da vontade delas? “Numa
sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de
fome.” Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só
por culpa sua pode faltar o necessário. Porém, suas próprias faltas são
frequentemente resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a
lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na
solidariedade e ele próprio também será melhor. (793)
931. Por que são mais numerosas, na
sociedade, as classes sofredoras do que as felizes? “Nenhuma é
perfeitamente feliz e o que julgais ser a felicidade muitas vezes oculta
pungentes aflições. O sofrimento está por toda parte. Entretanto, para
responder ao teu pensamento, direi que as classes a que chamas
sofredoras são mais numerosas, por ser a Terra lugar de expiação. Quando
a houver transformado em morada do bem e de Espíritos bons, o homem
deixará de ser infeliz aí e ela lhe será o paraíso terrestre.”
932. Por que, no mundo, tão amiúde, a
influência dos maus sobrepuja a dos bons? “Por fraqueza destes. Os maus
são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o
quiserem, preponderarão.”
933. Assim como, quase sempre, é o homem o
causador de seus sofrimentos materiais, também o será de seus
sofrimentos morais? “Mais ainda, porque os sofrimentos materiais algumas
vezes independem da vontade; mas, o orgulho ferido, a ambição
frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme, todas as paixões,
numa palavra, são torturas da alma. “A inveja e o ciúme! Felizes os que
desconhecem estes dois vermes roedores! Para aquele que a inveja e o
ciúme atacam, não há calma, nem repouso possíveis. À sua frente, como
fantasmas que lhe não dão tréguas e o perseguem até durante o sono, se
levantam os objetos de sua cobiça, do seu ódio, do seu despeito. O
invejoso e o ciumento vivem ardendo em contínua febre. Será essa uma
situação desejável e não compreendeis que, com as suas paixões, o homem
cria para si mesmo suplícios voluntários, tornando-se-lhe a Terra
verdadeiro inferno?” Muitas expressões pintam energicamente o efeito de
certas paixões. Diz-se: ímpar de orgulho, morrer de inveja, secar de
ciúme ou de despeito, não comer nem beber de ciúmes, etc. Este quadro é
sumamente real. Acontece até não ter o ciúme objeto determinado. Há
pessoas ciumentas, por natureza, de tudo o que se eleva, de tudo o que
sai da craveira vulgar, embora nenhum interesse direto tenham, mas
unicamente porque não podem conseguir outro tanto. Ofusca-as tudo o que
lhes parece estar acima do horizonte e, se constituíssem maioria na
sociedade, trabalhariam para reduzir tudo ao nível em que se acham. É o
ciúme aliado à mediocridade. De ordinário, o homem só é infeliz pela
importância que liga às coisas deste mundo. Fazem-lhe a infelicidade a
vaidade, a ambição e a cobiça desiludidas. Se se colocar fora do círculo
acanhado da vida material, se elevar seus pensamentos para o infinito,
que é seu destino, mesquinhas e pueris lhe parecerão as vicissitudes da
Humanidade, como o são as tristezas da criança que se aflige pela perda
de um brinquedo, que resumia a sua felicidade suprema. Aquele que só vê
felicidade na satisfação do orgulho e dos apetites grosseiros é infeliz,
desde que não os pode satisfazer, ao passo que aquele que nada pede ao
supérfluo é feliz com os que outros consideram calamidades. Referimo-nos
ao homem civilizado, porquanto, o selvagem, sendo mais limitadas as
suas necessidades, não tem os mesmos motivos de cobiça e de angústias.
Diversa é a sua maneira de ver as coisas. Como civilizado, o homem
raciocina sobre a sua infelicidade e a analisa. Por isso é que esta o
fere. Mas, também, lhe é facultado raciocinar sobre os meios de obter
consolação e de analisá-los. Essa consolação ele a encontra no
sentimento cristão, que lhe dá a esperança de melhor futuro, e no
Espiritismo que lhe dá a certeza desse futuro.
PERDA DOS ENTES QUERIDOS
934. A perda dos entes que nos são caros
não constitui para nós legítima causa de dor, tanto mais legítima quanto
é irreparável e independente da nossa vontade? “Essa causa de dor
atinge assim o rico, como o pobre: representa uma prova, ou expiação, e
comum é a lei. Tendes, porém, uma consolação em poderdes comunicar-vos
com os vossos amigos pelos meios que vos estão ao alcance, enquanto não
dispondes de outros mais diretos e mais acessíveis aos vossos sentidos.”
935. Que se deve pensar da opinião dos
que consideram profanação as comunicações com o além-túmulo? “Não pode
haver nisso profanação, quando haja recolhimento e quando a evocação
seja praticada respeitosa e convenientemente. A prova de que assim é
tendes no fato de que os Espíritos que vos consagram afeição acodem com
prazer ao vosso chamado. Sentem-se felizes por vos lembrardes deles e
por se comunicarem convosco. Haveria profanação, se isso fosse feito
levianamente.” A possibilidade de nos pormos em comunicação com os
Espíritos é uma dulcíssima consolação, pois que nos proporciona meio de
conversarmos com os nossos parentes e amigos, que deixaram antes de nós a
Terra. Pela evocação, aproximamo-los de nós, eles vêm colocar-se ao
nosso lado, nos ouvem e respondem. Cessa assim, por bem dizer, toda
separação entre eles e nós. Auxiliam-nos com seus conselhos,
testemunham-nos o afeto que nos guardam e a alegria que experimentam por
nos lembrarmos deles. Para nós, grande satisfação é sabê-los ditosos,
informar-nos, por seu intermédio, dos pormenores da nova existência a
que passaram e adquirir a certeza de que um dia nos iremos a eles
juntar. 936. Como é que as dores inconsoláveis dos que sobrevivem se
refletem nos Espíritos que as causam? “O Espírito é sensível à lembrança
e às saudades dos que lhe eram caros na Terra; mas, uma dor incessante e
desarrazoada o toca penosamente, porque, nessa dor excessiva, ele vê
falta de fé no futuro e de confiança em Deus e, por conseguinte, um
obstáculo ao adiantamento dos que o choram e talvez à sua reunião com
estes.” Estando o Espírito mais feliz no Espaço que na Terra, lamentar
que ele tenha deixado a vida corpórea é deplorar que seja feliz.
Figuremos dois amigos que se achem metidos na mesma prisão. Ambos
alcançarão um dia a liberdade, mas um a obtém antes do outro. Seria
caridoso que o que continuou preso se entristecesse porque o seu amigo
foi libertado primeiro? Não haveria, de sua parte, mais egoísmo do que
afeição em querer que do seu cativeiro e do seu sofrer partilhasse o
outro por igual tempo? O mesmo se dá com dois seres que se amam na
Terra.
O que parte primeiro é o que
primeiro se liberta e só nos cabe felicitá-lo, aguardando com paciência o
momento em que a nosso turno também o seremos. Façamos ainda, a este
propósito, outra comparação. Tendes um amigo que, junto de vós, se
encontra em penosíssima situação. Sua saúde ou seus interesses exigem
que vá para outro país, onde estará melhor a todos os respeitos. Deixará
temporariamente de se achar ao vosso lado, mas com ele vos
correspondereis sempre: a separação será apenas material.
Desgostar-vos-ia o seu afastamento, embora para bem dele? Pelas provas
patentes, que ministra, da vida futura, da presença, em torno de nós,
daqueles a quem amamos, da continuidade da afeição e da solicitude que
nos dispensavam; pelas relações que nos faculta manter com eles, a
Doutrina Espírita nos oferece suprema consolação, por ocasião de uma das
mais legítimas dores. Com o Espiritismo, não mais solidão, não mais
abandono: o homem, por muito insulado que esteja, tem sempre perto de si
amigos com quem pode comunicar-se. Impacientemente suportamos as
tribulações da vida. Tão intoleráveis nos parecem, que não compreendemos
possamos sofrê-las. Entretanto, se as tivermos suportado corajosamente,
se soubermos impor silêncio às nossas murmurações, felicitar-nos-emos,
quando fora desta prisão terrena, como o doente que sofre se felicita,
quando curado, por se haver submetido a um tratamento doloroso.
DECEPÇÕES. INGRATIDÃO. AFEIÇÕES DESTRUÍDAS
937. Para o homem de coração, as
decepções oriundas da ingratidão e da fragilidade dos laços da amizade
não são também uma fonte de amarguras? “São; porém, deveis
lastimar os ingratos e os infiéis; serão muito mais infelizes do que
vós. A ingratidão é filha do egoísmo e o egoísta topará mais tarde com
corações insensíveis, como o seu próprio o foi. Lembrai-vos de todos os
que hão feito mais bem do que vós, que valeram muito mais do que vós e
que tiveram por paga a ingratidão. Lembrai-vos de que o próprio Jesus
foi, quando no mundo, injuriado e menosprezado, tratado de velhaco e
impostor, e não vos admireis de que o mesmo vos suceda. Seja o bem que
houverdes feito a vossa recompensa na Terra e não atenteis no que dizem
os que hão recebido os vossos benefícios. A ingratidão é uma prova para a
vossa perseverança na prática do bem; ser-vos-á levada em conta e os
que vos forem ingratos serão tanto mais punidos, quanto maior lhes tenha
sido a ingratidão.”
938. As decepções oriundas da ingratidão
não serão de molde a endurecer o coração e a fechá-lo à sensibilidade?
“Fora um erro, porquanto o homem de coração, como dizes, se sente sempre
feliz pelo bem que faz. Sabe que, se esse bem for esquecido nesta vida,
será lembrado em outra e que o ingrato se envergonhará e terá remorsos
da sua ingratidão.” a) — Mas, isso não impede que se lhe ulcere o
coração. Ora, daí não poderá nascer-lhe a idéia de que seria mais feliz,
se fosse menos sensível? Pode, se preferir a felicidade do egoísta.
Triste felicidade essa! Saiba, pois, que os amigos ingratos que o
abandonam não são dignos de sua amizade e que se enganou a respeito
deles. Assim sendo, não há de que lamentar o tê-los perdido. Mais tarde
achará outros, que saberão compreendê-lo melhor. Lastimai os que usam
para convosco de um procedimento que não tenhais merecido, pois bem
triste se lhes apresentará o reverso da medalha. Não vos aflijais,
porém, com isso: será o meio de vos colocardes acima deles. A Natureza
deu ao homem a necessidade de amar e de ser amado. Um dos maiores gozos
que lhe são concedidos na Terra é o de encontrar corações que com o seu
simpatizem. Dá-lhe ela, assim, as primícias da felicidade que o aguarda
no mundo dos Espíritos perfeitos, onde tudo é amor e benignidade. Desse
gozo está excluído o egoísta.
UNIÕES ANTIPÁTICAS
939. Uma vez que os Espíritos simpáticos
são induzidos a unir-se, como é que, entre os encarnados, frequentemente
só de um lado há afeição e que o mais sincero amor se vê acolhido com
indiferença e, até, com repulsão? Como é, além disso, que a mais viva
afeição de dois seres pode mudar-se em antipatia e mesmo em ódio? “Não
compreendes então que isso constitui uma punição, se bem que passageira?
Depois, quantos não são os que acreditam amar perdidamente, porque
apenas julgam pelas aparências, e que, obrigados a viver com as pessoas
amadas, não tardam a reconhecer que só experimentaram um encantamento
material! Não basta uma pessoa estar enamorada de outra que lhe agrada e
em quem supõe belas qualidades. Vivendo realmente com ela é que poderá
apreciá- la. Tanto assim que, em muitas uniões, que a princípio parecem
destinadas a nunca ser simpáticas, acabam os que as constituíram, depois
de se haverem estudado bem e de bem se conhecerem, por votar-se,
reciprocamente, duradouro e terno amor, porque assente na estima! Cumpre
não se esqueça de que é o Espírito quem ama e não o corpo, de sorte
que, dissipada a ilusão material, o Espírito vê a realidade. “Duas
espécies há de afeição: a do corpo e a da alma, acontecendo com
frequência tomar-se uma pela outra. Quando pura e simpática, a afeição
da alma é duradoura; efêmera a do corpo. Daí vem que, muitas vezes, os
que julgavam amar-se com eterno amor passam a odiar-se, desde que a
ilusão se desfaça.
940. Não constitui igualmente fonte de
dissabores, tanto mais amargos quanto envenenam toda a existência, a
falta de simpatia entre seres destinados a viver juntos? Amaríssimos,
com efeito. Essa, porém, é uma das infelicidades de que sois, as mais
das vezes, a causa principal. Em primeiro lugar, o erro é das vossas
leis. Julgas, porventura, que Deus te constranja a permanecer junto dos
que te desagradam? Depois, nessas uniões, ordinariamente buscais a
satisfação do orgulho e da ambição, mais do que a ventura de uma afeição
mútua. Sofreis então as consequências dos vossos prejuízos. a) — Mas,
nesse caso, não há quase sempre uma vítima inocente? Há e para ela é uma
dura expiação. Mas, a responsabilidade da sua desgraça recairá sobre os
que lhe tiverem sido os causadores. Se a luz da verdade já lhe houver
penetrado a alma, em sua fé no futuro haurirá consolação. Todavia, à
medida que os preconceitos se enfraquecerem, as causas dessas desgraças
íntimas também desaparecerão.
TEMOR DA MORTE
941. Para muitas pessoas, o temor da
morte é uma causa de perplexidade. Donde lhes vêm esse temor, tendo elas
diante de si o futuro? “Falece-lhes fundamento para semelhante temor.
Mas, que queres! se procuram persuadi-las, quando crianças, de que há um
inferno e um paraíso e que mais certo é irem para o inferno, visto que
também lhes disseram que o que está na Natureza constitui pecado mortal
para a alma! Sucede então que, tornadas adultas, essas pessoas, se algum
juízo têm, não podem admitir tal coisa e se fazem ateias, ou
materialistas. São assim levadas a crer que, além da vida presente, nada
mais há. Quanto aos que persistiram nas suas crenças da infância, esses
temem aquele fogo eterno que os queimará sem os consumir. “Ao justo,
nenhum temor inspira a morte, porque, com a fé, tem ele a certeza do
futuro. A esperança fá-lo contar com uma vida melhor; e a caridade, a
cuja lei obedece, lhe dá a segurança de que, no mundo para onde terá de
ir, nenhum ser encontrará cujo olhar lhe seja de temer. (730)
O homem carnal, mais preso à vida
corpórea do que à vida espiritual, tem, na Terra, penas e gozos
materiais. Sua felicidade consiste na satisfação fugaz de todos os seus
desejos. Sua alma, constantemente preocupada e angustiada pelas
vicissitudes da vida, se conserva numa ansiedade e numa tortura
perpétuas. A morte o assusta, porque ele duvida do futuro e porque tem
de deixar no mundo todas as suas afeições e esperanças. O homem moral,
que se colocou acima das necessidades factícias criadas pelas paixões,
já neste mundo experimenta gozos que o homem material desconhece. A
moderação de seus desejos lhe dá ao Espírito calma e serenidade. Ditoso
pelo bem que faz, não há para ele decepções e as contrariedades lhe
deslizam por sobre a alma, sem nenhuma impressão dolorosa deixarem.
942. Pessoas não haverá que achem um
tanto banais esses conselhos para ser-se feliz na Terra; que neles vejam
o que chamam lugares comuns, cediças verdades; e que digam, que,
afinal, o segredo para ser-se feliz consiste em saber cada um suportar a
sua desgraça? “Há as que isso dizem e em grande número. Mas, muitas se
parecem com certos doentes a quem o médico prescreve a dieta; desejariam
curar-se sem remédios e continuando a apanhar indigestões.”
DESGOSTO DA VIDA. SUICÍDIO
943. Donde nasce o desgosto da vida, que,
sem motivos plausíveis, se apodera de certos indivíduos? “Efeito da
ociosidade, da falta de fé e, também, da saciedade. “Para aquele que usa
de suas faculdades com fim útil e de acordo com as suas aptidões
naturais, o trabalho nada tem de árido e a vida se escoa mais
rapidamente. Ele lhe suporta as vicissitudes com tanto mais paciência e
resignação, quanto obra com o fito da felicidade mais sólida e mais
durável que o espera”.
944. Tem o homem o direito de dispor da
sua vida? “Não; só a Deus assiste esse direito. O suicídio voluntário
importa numa transgressão desta lei.”
a) — Não é sempre voluntário o suicídio? “O louco que se mata não sabe o que faz.”
45. Que se deve pensar do suicídio que
tem como causa o desgosto da vida? “Insensatos! Por que não trabalhavam?
A existência não lhes teria sido tão pesada.”
946. E do suicídio cujo fim é fugir,
aquele que o comete, às misérias e às decepções deste mundo? “Pobres
Espíritos, que não têm a coragem de suportar as misérias da existência!
Deus ajuda aos que sofrem e não aos que carecem de energia e de coragem.
As tribulações da vida são provas ou expiações. Felizes os que as
suportam sem se queixar, porque serão recompensados! Ai, porém, daqueles
que esperam a salvação do que, na sua impiedade, chamam acaso, ou
fortuna! O acaso, ou a fortuna, para me servir da linguagem deles,
podem, com efeito, favorecê-los por um momento, mas para lhes fazer
sentir mais tarde, cruelmente, a vacuidade dessas palavras”. a) — Os que
hajam conduzido o desgraçado a esse ato de desespero sofrerão as
consequências de tal proceder? “Oh! esses, ai deles! Responderão como
por um assassínio.”
947. Pode ser considerado suicida aquele
que, a braços com a maior penúria, se deixa morrer de fome? “É um
suicídio, mas os que lhe foram causa, ou que teriam podido impedi-lo,
são mais culpados do que ele, a quem a indulgência espera. Todavia, não
penseis que seja totalmente absolvido, se lhe faltaram firmeza e
perseveran- ça e se não usou de toda a sua inteligência para sair do
atoleiro. Ai dele, sobretudo, se o seu desespero nasce do orgulho. Quero
dizer: se for quais homens em quem o orgulho anula os recursos da
inteligência, que corariam de dever a existência ao trabalho de suas
mãos e que preferem morrer de fome a renunciar ao que chamam sua posição
social! Não haverá mil vezes mais grandeza e dignidade em lutar contra a
adversidade, em afrontar a crítica de um mundo fútil e egoísta, que só
tem boa vontade para com aqueles a quem nada falta e que vos volta as
costas assim precisais dele? Sacrificar a vida à consideração desse
mundo é estultícia, porquanto ele a isso nenhum apreço dá.”
948. É tão reprovável, como o que tem por
causa o desespero, o suicídio daquele que procura escapar à vergonha de
uma ação má? “O suicídio não apaga a falta. Ao contrário, em vez de
uma, haverá duas. Quando se teve a coragem de praticar o mal, é preciso
ter-se a de lhe sofrer as consequências. Deus, que julga, pode, conforme
a causa, abrandar os rigores de sua justiça.”
949. Será desculpável o suicídio, quando
tenha por fim obstar a que a vergonha caia sobre os filhos, ou sobre a
família? “O que assim procede não faz bem. Mas, como pensa que o faz,
Deus lhe leva isso em conta, pois que é uma expiação que ele se impõe a
si mesmo. A intenção lhe atenua a falta; entretanto, nem por isso deixa
de haver falta. Demais, eliminai da vossa sociedade os abusos e os
preconceitos e deixará de haver desses suicídios.” Aquele que tira a si
mesmo a vida, para fugir à vergonha de uma ação má, prova que dá mais
apreço à estima dos homens do que à de Deus, visto que volta para a vida
espiritual carregado de suas iniquidades, tendo-se privado dos meios de
repará-las durante a vida corpórea. Deus, geralmente, é menos
inexorável do que os homens. Perdoa aos que sinceramente se arrependem e
atende à reparação. O suicida nada repara.
950. Que pensar daquele que se mata, na
esperança de chegar mais depressa a uma vida melhor? “Outra loucura! Que
faça o bem e mais certo estará de lá chegar, pois, matando-se, retarda a
sua entrada num mundo melhor e terá que pedir lhe seja permitido
voltar, para concluir a vida a que pôs termo sob o influxo de uma idéia
falsa. Uma falta, seja qual for, jamais abre a ninguém o santuário dos
eleitos.”
951. Não é, às vezes, meritório o
sacrifício da vida, quando aquele que o faz visa salvar a de outrem, ou
ser útil aos seus semelhantes? “Isso é sublime, conforme a intenção, e,
em tal caso, o sacrifício da vida não constitui suicídio. Mas, Deus se
opõe a todo sacrifício inútil e não o pode ver de bom grado, se tem o
orgulho a manchá-lo. Só o desinteresse torna meritório o sacrifício e,
não raro, quem o faz guarda oculto um pensamento, que lhe diminui o
valor aos olhos de Deus.” Todo sacrifício que o homem faça à custa da
sua própria felicidade é um ato soberanamente meritório aos olhos de
Deus, porque resulta da prática da lei de caridade. Ora, sendo a vida o
bem terreno a que maior apreço dá o homem, não comete atentado o que a
ela renuncia pelo bem de seus semelhantes: cumpre um sacrifício. Mas,
antes de o cumprir, deve refletir sobre se sua vida não será mais útil
do que sua morte”.
952. Comete suicídio o homem que perece
vítima de paixões que ele sabia lhe haviam de apressar o fim, porém a
que já não podia resistir, por havê-las o hábito mudado em verdadeiras
necessidades físicas? “É um suicídio moral. Não percebeis que, nesse
caso, o homem é duplamente culpado? Há nele então falta de coragem e
bestialidade, acrescidas do esquecimento de Deus.” a) — Será mais, ou
menos, culpado do que o que tira a si mesmo a vida por desespero? “É
mais culpado, porque tem tempo de refletir sobre o seu suicídio. Naquele
que o faz instantaneamente, há, muitas vezes, uma espécie de
desvairamento, que alguma coisa tem da loucura. O outro será muito mais
punido, por isso que as penas são proporcionadas sempre à consciência
que o culpado tem das faltas que comete.”
953. Quando uma pessoa vê diante de
si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns
instantes os seus sofrimentos, apressando voluntariamente sua morte? “É
sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a
existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado às aparências,
esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no
último momento?”
a) — Concebe-se que, nas circunstâncias
ordinárias, o suicídio seja condenável; mas, estamos figurando o caso em
que a morte é inevitável e em que a vida só é encurtada de alguns
instantes. “É sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade do
Criador.” b) — Quais, nesse caso, as consequências de tal ato? “Uma
expiação proporcionada, como sempre, à gravidade da falta, de acordo com
as circunstâncias.”
954. Será condenável uma imprudência que
compromete a vida sem necessidade? “Não há culpabilidade, em não havendo
intenção, ou consciência perfeita da prática do mal.”
955. Podem ser consideradas suicidas e
sofrem as consequências de um suicídio as mulheres que, em certos
países, se queimam voluntariamente sobre os corpos dos maridos?
“Obedecem a um preconceito e, muitas vezes, mais à força do que por
vontade. Julgam cumprir um dever e esse não é o caráter do suicídio.
Encontram desculpa na nulidade moral que as caracteriza, em a sua
maioria, e na ignorância em que se acham. Esses usos bárbaros e
estúpidos desaparecem com o advento da civilização.”
956. Alcançam o fim objetivado aqueles
que, não podendo conformar-se com a perda de pessoas que lhes eram
caras, se matam na esperança de ir juntar-se-lhes? Muito diverso do que
esperam é o resultado que colhem. Em vez de se reunirem ao que era
objeto de suas afeições, dele se afastam por longo tempo, pois não é
possível que Deus recompense um ato de covardia e o insulto que lhe
fazem com o duvidarem da sua providência. Pagarão esse instante de
loucura com aflições maiores do que as que pensaram abreviar e não
terão, para compensá-las, a satisfação que esperavam. (934 e seguintes)
957. Quais, em geral, com relação ao
estado do Espírito, as consequências do suicídio? “Muito diversas são as
consequências do suicídio. Não há penas determinadas e, em todos os
casos, correspondem sempre às causas que o produziram. Há, porém, uma
consequência a que o suicida não pode escapar; é o desapontamento. Mas, a
sorte não é a mesma para todos; depende das circunstâncias. Alguns
expiam a falta imediatamente, outros em nova existência, que será pior
do que aquela cujo curso interromperam.” A observação, realmente, mostra
que os efeitos do suicídio não são idênticos. Alguns há, porém, comuns a
todos os casos de morte violenta e que são a consequência da
interrupção brusca da vida. Há, primeiro, a persistência mais prolongada
e tenaz do laço que une o Espírito ao corpo, por estar quase sempre
esse laço na plenitude da sua força no momento em que é partido, ao
passo que, no caso de morte natural, ele se enfraquece gradualmente e
muitas vezes se desfaz antes que a vida se haja extinguido
completamente.
As consequências deste estado de coisas
são o prolongamento da perturbação espiritual, seguindo-se à ilusão em
que, durante mais ou menos tempo, o Espírito se conserva de que ainda
pertence ao número dos vivos. (l55 e 165) A afinidade que permanece
entre o Espírito e o corpo produz, nalguns suicidas, uma espécie de
repercussão do estado do corpo no Espírito, que, assim, a seu mau grado,
sente os efeitos da decomposição, donde lhe resulta uma sensação cheia
de angústias e de horror, estado esse que também pode durar pelo tempo
que devia durar a vida que sofreu interrupção. Não é geral este efeito;
mas, em caso algum, o suicida fica isento das consequências da sua falta
de coragem e, cedo ou tarde, expia, de um modo ou de outro, a culpa em
que incorreu. Assim é que certos Espíritos, que foram muito desgraçados
na Terra, disseram ter-se suicidado na existência precedente e submetido
voluntariamente a novas provas, para tentarem suportá-las com mais
resignação. Em alguns, verifica-se uma espécie de ligação à matéria, de
que inutilmente procuram desembaraçar-se, a fim de voarem para mundos
melhores, cujo acesso, porém, se lhes conserva interdito. A maior parte
deles sofre o pesar de haver feito uma coisa inútil, pois que só
decepções encontram.
A religião, a moral, todas as filosofias
condenam o suicídio como contrário às leis da Natureza. Todas nos dizem,
em princípio, que ninguém tem o direito de abreviar voluntariamente a
vida. Entretanto, por que não se tem esse direito? Por que não é livre o
homem de pôr termo aos seus sofrimentos? Ao Espiritismo estava
reservado demonstrar, pelo exemplo dos que sucumbiram, que o suicídio
não é uma falta, somente por constituir infração de uma lei moral,
consideração de pouco peso para certos indivíduos, mas também um ato
estúpido, pois que nada ganha quem o pratica, antes o contrário é o que
se dá, como no-lo ensinam, não a teoria, porém os fatos que ele nos põe
sob as vistas.
CAPÍTULO I I
Das penas e gozos futuros
• O nada. Vida futura
• Intuição das penas e gozos futuros
• Intervenção de Deus nas penas e recompensas
Natureza das penas e gozos futuros
• Penas temporais
• Expiação e arrependimento
• Duração das penas futuras
• Ressurreição da carne
• Paraíso, inferno e purgatório
O NADA. VIDA FUTURA
958. Por que tem o homem, instintivamente, horror ao nada? “Porque o nada não existe.”
959. Donde nasce, para o homem, o
sentimento instintivo da vida futura? “Já temos dito: antes de encarnar,
o Espírito conhecia todas essas coisas e a alma conserva vaga lembrança
do que sabe e do que viu no estado espiritual.” (393) Em todos os
tempos, o homem se preocupou com o seu futuro para lá do túmulo e isso é
muito natural. Qualquer que seja a importância que ligue à vida
presente, não pode ele furtar-se a considerar quanto essa vida é curta
e, sobretudo, precária, pois que a cada instante está sujeita a
interromper-se, nenhuma certeza lhe sendo permitida acerca do dia
seguinte. Que será dele, após o instante fatal? Questão grave esta,
porquanto não se trata de alguns anos apenas, mas da eternidade. Aquele
que tem de passar longo tempo, em país estrangeiro, se preocupa com a
situação em que lá se achará. Como, então, não nos havia de preocupar a
em que nos veremos, deixando este mundo, uma vez que é para sempre? A
idéia do nada tem qualquer coisa que repugna à razão. O homem que mais
despreocupado seja durante a vida, em chegando o momento supremo,
pergunta a si mesmo o que vai ser dele e, sem o querer, espera. Crer em
Deus, sem admitir a vida futura, fora um contra- -senso. O sentimento de
uma existência melhor reside no foro íntimo de todos os homens e não é
possível que Deus aí o tenha colocado em vão. A vida futura implica a
conservação da nossa individualidade, após a morte. Com efeito, que nos
importaria sobreviver ao corpo, se a nossa essência moral houvesse de
perder-se no oceano do infinito? As consequências, para nós, seriam as
mesmas que se tivéssemos de nos sumir no nada.
INTUIÇÃO DAS PENAS E GOZOS FUTUROS
960. Donde se origina a crença, com que
deparamos entre todos os povos, na existência de penas e recompensas
porvindouras? “É sempre a mesma coisa: pressentimento da realidade,
trazido ao homem pelo Espírito nele encarnado. Porque, sabei-o bem, não é
debalde que uma voz interior vos fala. O vosso erro consiste em não lhe
prestardes bastante atenção. Melhores vos tornaríeis, se nisso
pensásseis muito, e muitas vezes.”
961. Qual o sentimento que domina a
maioria dos homens no momento da morte: a dúvida, o temor, ou a
esperança? “A dúvida, nos cépticos empedernidos; o temor, nos culpados; a
esperança, nos homens de bem.”
962. Como pode haver cépticos, uma vez
que a alma traz ao homem o sentimento das coisas espirituais? “Eles são
em número muito menor do que se julga. Muitos se fazem de espíritos
fortes, durante a vida, somente por orgulho. No momento da morte, porém,
deixam de ser tão fanfarrões.” A responsabilidade dos nossos atos é a
consequência da realidade da vida futura. Dizem-nos a razão e a justiça
que, na partilha da felicidade a que todos aspiram, não podem estar
confundidos os bons e os maus. Não é possível que Deus queira que uns
gozem, sem trabalho, de bens que outros só alcançam com esforço e
perseverança. A idéia que, mediante a sabedoria de suas leis, Deus nos
dá de sua justiça e de sua bondade não nos permite acreditar que o justo
e o mau estejam na mesma categoria a seus olhos, nem duvidar de que
recebam, algum dia, um a recompensa, o castigo o outro, pelo bem ou pelo
mal que tenham feito. Por isso é que o sentimento inato que temos da
justiça nos dá a intuição das penas e recompensas futuras.
INTERVENÇÃO DE DEUS NAS PENAS E RECOMPENSAS
963. Com cada homem, pessoalmente, Deus
se ocupa? Não é ele muito grande e nós muito pequeninos para que cada
indivíduo em particular tenha, a seus olhos, alguma importância? “Deus
se ocupa com todos os seres que criou, por mais pequeninos que sejam.
Nada, para a sua bondade, é destituído de valor.” 964. Mas, será
necessário que Deus atente em cada um dos nossos atos, para nos
recompensar ou punir? Esses atos não são, na sua maioria,
insignificantes para ele? “Deus tem suas leis a regerem todas as vossas
ações. Se as violais, vossa é a culpa. Indubitavelmente, quando um homem
comete um excesso qualquer, Deus não profere contra ele um julgamento,
dizendo-lhe, por exemplo: Foste guloso, vou punir-te. Ele traçou um
limite; as enfermidades e muitas vezes a morte são a consequência dos
excessos. Eis aí a punição; é o resultado da infração da lei. Assim em
tudo.” Todas as nossas ações estão submetidas às leis de Deus. Nenhuma
há, por mais insignificante que nos pareça, que não possa ser uma
violação daquelas leis. Se sofremos as consequências dessa violação, só
nos devemos queixar de nós mesmos, que desse modo nos fazemos os
causadores da nossa felicidade, ou da nossa infelicidade futuras. Esta
verdade se torna evidente por meio do apólogo seguinte: “Um pai deu a
seu filho educação e instrução, isto é, os meios de se guiar. Cede-lhe
um campo para que o cultive e lhe diz: Aqui estão a regra que deves
seguir e todos os instrumentos necessários a tornares fértil este campo e
assegurares a tua existência. Dei-te a instrução, para compreenderes
esta regra. Se a seguires, teu campo produzirá muito e te proporcionará o
repouso na velhice. Se a desprezares, nada produzirá e morrerás de
fome. Dito isso, deixa-o proceder livremente.” Não é verdade que esse
campo produzirá na razão dos cuidados que forem dispensados à sua
cultura e que toda negligência redundará em prejuízo da colheita? Na
velhice, portanto, o filho será ditoso, ou desgraçado, conforme haja
seguido ou não a regra que seu pai lhe traçou. Deus ainda é mais
previdente, pois que nos adverte, a cada instante, de que estamos
fazendo bem ou mal. Envia-nos os Espíritos para nos inspirarem, porém
não os escutamos. Há mais esta diferença: Deus faculta sempre ao homem,
concedendo-lhe novas existências, recursos para reparar seus erros
passados, enquanto ao filho de quem falamos, se empregou mal o seu
tempo, nenhum recurso resta.
NATUREZA DAS PENAS E GOZOS FUTUROS
965. Têm alguma coisa de material as
penas e gozos da alma depois da morte? “Não podem ser materiais, di-lo o
bom-senso, pois que a alma não é matéria. Nada têm de carnal essas
penas e esses gozos; entretanto, são mil vezes mais vivos do que os que
experimentais na Terra, porque o Espírito, uma vez liberto, é mais
impressionável. Então, já a matéria não lhe embota as sensações.” (237 a
257)
966. Por que das penas e gozos da vida
futura faz o homem, às vezes, tão grosseira e absurda idéia?
“Inteligência que ainda se não desenvolveu bastante. Compreende a
criança as coisas como o adulto? Isso, ao demais, depende também do que
se lhe ensinou: aí é que há necessidade de uma reforma. “Muitíssimo
incompleta é a vossa linguagem, para exprimir o que está fora de vós.
Teve-se então que recorrer a comparações e tomastes como realidade as
imagens e figuras que serviram para essas comparações. À medida, porém,
que o homem se instrui, melhor vai compreendendo o que a sua linguagem
não pode exprimir.
967. Em que consiste a felicidade dos
bons Espíritos? “Em conhecerem todas as coisas; em não sentirem ódio,
nem ciúme, nem inveja, nem ambição, nem qualquer das paixões que
ocasionam a desgraça dos homens. O amor que os une lhes é fonte de
suprema felicidade. Não experimentam as necessidades, nem os
sofrimentos, nem as angústias da vida material. São felizes pelo bem que
fazem. Contudo, a felicidade dos Espíritos é proporcional à elevação de
cada um. Somente os puros Espíritos gozam, é exato, da felicidade
suprema, mas nem todos os outros são infelizes. Entre os maus e os
perfeitos há uma infinidade de graus em que os gozos são relativos ao
estado moral. Os que já estão bastante adiantados compreendem a ventura
dos que os precederam e aspiram a alcançá-la. Mas, esta aspiração lhes
constitui uma causa de emulação, não de ciúme. Sabem que deles depende o
consegui-la e para a conseguirem trabalham, porém com a calma da
consciência tranquila e ditosos se consideram por não terem que sofrer o
que sofrem os maus.”
968. Citais, entre as condições da
felicidade dos bons Espíritos, a ausência das necessidades materiais.
Mas, a satisfação dessas necessidades não representa para o homem uma
fonte de gozos? Sim, gozo do animal. Quando não podes satisfazer a essas
necessidades, passas por uma tortura.
969. Que se deve entender quando é dito
que os Espíritos puros se acham reunidos no seio de Deus e ocupados em
lhe entoar louvores? “É uma alegoria indicativa da inteligência que eles
têm das perfeições de Deus, porque o veem e compreendem, mas que, como
muitas outras, não se deve tomar ao pé da letra. Tudo em a Natureza,
desde o grão de areia, canta, isto é, proclama o poder, a sabedoria e a
bondade de Deus. Não creias, todavia, que os Espíritos bem-aventurados
estejam em contemplação por toda a eternidade. Seria uma bem-aventurança
estúpida e monótona. Fora, além disso, a felicidade do egoísta,
porquanto a existência deles seria uma inutilidade sem-termo. Estão
isentos das tribulações da vida corpórea: já é um gozo. Depois, como
dissemos, conhecem e sabem todas as coisas; dão útil emprego à
inteligência que adquiriram, auxiliando os progressos dos outros
Espíritos. Essa a sua ocupação, que ao mesmo tempo é um gozo.”
970. Em que consistem os sofrimentos dos
Espíritos inferiores? “São tão variados como as causas que os determinam
e proporcionados ao grau de inferioridade, como os gozos o são ao de
superioridade. Podem resumir-se assim: Invejarem o que lhes falta para
ser felizes e não obterem; verem a felicidade e não na poderem alcançar;
pesar, ciúme, raiva, desespero, motivados pelo que os impede de ser
ditosos; remorsos, ansiedade moral indefinível. Desejam todos os gozos e
não os podem satisfazer: eis o que os tortura.
971. É sempre boa a influência que os
Espíritos exercem uns sobre os outros? “Sempre boa, está claro, da parte
dos bons Espíritos. Os Espíritos perversos, esses procuram desviar da
senda do bem e do arrependimento os que lhes parecem suscetí- veis de se
deixarem levar e que são, muitas vezes, os que eles mesmos arrastaram
ao mal durante a vida terrena”.
a) — Assim, a morte não nos livra da
tentação? “Não, mas a ação dos maus Espíritos é sempre menor sobre os
outros Espíritos do que sobre os homens, porque lhes falta o auxílio das
paixões materiais.” (996) 972. Como procedem os maus Espíritos para
tentar os outros Espíritos, não podendo jogar com as paixões? “As
paixões não existem materialmente, mas existem no pensamento dos
Espíritos atrasados. Os maus dão pasto a esses pensamentos, conduzindo
suas vítimas aos lugares onde se lhes ofereça o espetáculo daquelas
paixões e de tudo o que as possa excitar.” a) — Mas, de que servem essas
paixões, se já não têm objeto real? “Nisso precisamente é que lhes está
o suplício: o avarento vê ouro que lhe não é dado possuir; o devasso,
orgias em que não pode tomar parte; o orgulhoso, honras que lhe causam
inveja e de que não pode gozar.”
973. Quais os sofrimentos maiores a que
os Espíritos maus se veem sujeitos? Não há descrição possível das
torturas morais que constituem a punição de certos crimes. Mesmo o que
as sofre teria dificuldade em vos dar delas uma idéia. Indubitavelmente,
porém, a mais horrível consiste em pensarem que estão condenados sem
remissão. Das penas e gozos da alma após a morte forma o homem idéia
mais ou menos elevada, conforme o estado de sua inteligência. Quanto
mais ele se desenvolve, tanto mais essa idéia se apura e se escoima da
matéria; compreende as coisas de um ponto de vista mais racional,
deixando de tomar ao pé da letra as imagens de uma linguagem figurada.
Ensinando-nos que a alma é um ser todo espiritual, a razão, mais
esclarecida, nos diz, por isso mesmo, que ela não pode ser atingida
pelas impressões que apenas sobre a matéria atuam. Não se segue, porém,
daí que esteja isenta de sofrimentos, nem que não receba o castigo de
suas faltas. (237) As comunicações espíritas tiveram como resultado
mostrar o estado futuro da alma, não mais em teoria, porém na realidade.
Põem-nos diante dos olhos todas as peripécias da vida de além- -túmulo.
Ao mesmo tempo, entretanto, no-las mostram como consequências
perfeitamente lógicas da vida terrestre e, embora despojadas do aparato
fantástico que a imaginação dos homens criou, não são menos pessoais
para os que fizeram mau uso de suas faculdades. Infinita é a variedade
dessas consequências. Mas, em tese geral, pode-se dizer: cada um é
punido por aquilo em que pecou. Assim é que uns o são pela visão
incessante do mal que fizeram; outros, pelo pesar, pelo temor, pela
vergonha, pela dúvida, pelo insulamento, pelas trevas, pela separação
dos entes que lhes são caros, etc.
974. Donde procede a doutrina do fogo
eterno? “Imagem, semelhante a tantas outras, tomada como realidade.” a) —
Mas, o temor desse fogo não produzirá bom resultado? “Vede se serve de
freio, mesmo entre os que o ensinam. Se ensinardes coisas que mais tarde
a razão venha a repelir, causareis uma impressão que não será
duradoura, nem salutar.” Impotente para, na sua linguagem, definir a
natureza daqueles sofrimentos, o homem não encontrou comparação mais
enérgica do que a do fogo, pois, para ele, o fogo é o tipo do mais cruel
suplício e o símbolo da ação mais violenta. Por isso é que a crença no
fogo eterno data da mais remota antiguidade, tendo-a os povos modernos
herdado dos mais antigos. Por isso também é que o homem diz, em sua
linguagem figurada: o fogo das paixões; abrasar de amor, de ciúme, etc.
975. Os Espíritos inferiores compreendem a
felicidade do justo? “Sim, e isso lhes é um suplício, porque
compreendem que estão dela privados por sua culpa. Daí resulta que o
Espírito, liberto da matéria, aspira à nova vida corporal, pois que cada
existência, se for bem empregada, abrevia um tanto a duração desse
suplício. É então que procede à escolha das provas por meio das quais
possa expiar suas faltas. Porque, ficai sabendo, o Espírito sofre por
todo o mal que praticou, ou de que foi causa voluntária, por todo o bem
que houvera podido fazer e não fez e por todo o mal que decorra de não
haver feito o bem. “Para o Espírito errante, já não há véus. Ele se acha
como tendo saído de um nevoeiro e vê o que o distancia da felicidade.
Mais sofre então, porque compreende quanto foi culpado. Não tem mais
ilusões: vê as coisas na sua realidade. Na erraticidade, o Espírito
descortina, de um lado, todas as suas existências passadas; de outro, o
futuro que lhe está prometido e percebe o que lhe falta para atingi-lo. É
qual viajor que chega ao cume de uma montanha: vê o caminho que
percorreu e o que lhe resta percorrer, a fim de chegar ao fim da sua
jornada. 976. O espetáculo dos sofrimentos dos Espíritos inferiores não
constitui, para os bons, uma causa de aflição e, nesse caso, que fica
sendo a felicidade deles, se é assim turbada? “Não constitui motivo de
aflição, pois que sabem que o mal terá fim. Auxiliam os outros a se
melhorarem e lhes estendem as mãos. Essa a ocupação deles, ocupação que
lhes proporciona gozo quando são bem-sucedidos.
a) — Isto se concebe da parte de
Espíritos estranhos ou indiferentes. Mas o espetáculo das tristezas e
dos sofrimentos daqueles a quem amaram na Terra não lhes perturba a
felicidade? “Se não vissem esses sofrimentos, é que eles vos seriam
estranhos depois da morte. Ora, a religião vos diz que as almas vos
veem. Mas, eles consideram de outro ponto de vista os vossos
sofrimentos. Sabem que estes são úteis ao vosso progresso, se os
suportardes com resignação. Afligem-se, portanto, muito mais com a falta
de ânimo que vos retarda, do que com os sofrimentos considerados em si
mesmos, todos passageiros.
977. Não podendo os Espíritos ocultar
reciprocamente seus pensamentos e sendo conhecidos todos os atos da
vida, dever-se-á deduzir que o culpado está perpetuamente em presença de
sua vítima? “Não pode ser de outro modo, di-lo o bom-senso.”
a) — Serão um castigo para o
culpado essa divulgação de todos os nossos atos reprováveis e a presença
constante dos que deles foram vítimas? “Maior do que se pensa, mas
tão-somente até que o culpado tenha expiado suas faltas, quer como
Espírito, quer como homem, em novas existências corpóreas.” Quando nos
achamos no mundo dos Espíritos, estando patente todo o nosso passado, o
bem e o mal que houvermos feito serão igualmente conhecidos. Em vão,
aquele que haja praticado o mal tentará escapar ao olhar de suas
vítimas: a presença inevitável destas lhe será um castigo e um remorso
incessante, até que haja expiado seus erros, ao passo que o homem de bem
por toda parte só encontrará olhares amigos e benevolentes. Para o mau,
não há maior tormento, na Terra, do que a presença de suas vítimas,
razão pela qual as evita continuamente. Que será quando, dissipada a
ilusão das paixões, compreender o mal que fez, vir patenteados os seus
atos mais secretos, desmascarada a sua hipocrisia e não puder
subtrair-se à visão delas? Enquanto a alma do homem perverso é presa da
vergonha, do pesar e do remorso, a do justo goza perfeita serenidade.
978. A lembrança das faltas que a alma,
quando imperfeita, tenha cometido, não lhe turba a felicidade, mesmo
depois de se haver purificado? “Não, porque resgatou suas faltas e saiu
vitoriosa das provas a que se submetera para esse fim.”
979. Não serão, para a alma, causa de
penosa apreensão, que lhe altera a felicidade, as provas por que ainda
tenha de passar para acabar a sua purificação? “Para a alma ainda
maculada, são. Daí vem que ela não pode gozar de felicidade perfeita,
senão quando esteja completamente pura. Para aquela, porém, que já se
elevou, nada tem de penoso o pensar nas provas que ainda haja de
sofrer.”
Goza da felicidade a alma que chegou a um
certo grau de pureza. Domina-a um sentimento de grata satisfação.
Sente-se feliz por tudo o que vê, por tudo o que a cerca. Levanta-se-lhe
o véu que encobria os mistérios e as maravilhas da Criação e as
perfeições divinas em todo o esplendor lhe aparecem.
980. O laço de simpatia que une os
Espíritos da mesma ordem constitui para eles uma fonte de felicidade?
“Os Espíritos entre os quais há recíproca simpatia para o bem encontram
na sua união um dos maiores gozos, visto que não receiam vê-la turbada
pelo egoísmo. Formam, no mundo inteiramente espiritual, famílias pela
identidade de sentimentos, consistindo nisto a felicidade espiritual, do
mesmo modo que no vosso mundo vos grupais em categorias e experimentais
certo prazer quando vos achais reunidos. Na afeição pura e sincera que
cada um vota aos outros e de que é por sua vez objeto, têm eles um
manancial de felicidade, porquanto lá não há falsos amigos, nem
hipócritas.” Das primícias dessa felicidade goza o homem na Terra,
quando se lhe deparam almas com as quais pode confundir-se numa união
pura e santa. Em uma vida mais purificada, inefável e ilimitado será
esse gozo, pois aí ele só encontrará almas simpáticas, que o egoísmo não
tornará frias. Porque, em a Natureza, tudo é amor: o egoísmo é que o
mata.
981. Com relação ao estado futuro
do Espírito, haverá diferença entre um que, em vida, teme a morte e
outro que a encara com indiferença e mesmo com alegria? Muito grande
pode ser a diferença. Entretanto, apaga- -se com frequência em face das
causas determinantes desse temor ou desse desejo. Quer a tema, quer a
deseje, pode o homem ser propelido por sentimentos muito diversos e são
estes sentimentos que influem no estado do Espírito. É evidente, por
exemplo, que naquele que deseja a morte, unicamente porque vê nela o
termo de suas tribulações, há uma espécie de queixa contra a Providência
e contra as provas que lhe cumpre suportar.
982. Será necessário que professemos o
Espiritismo e creiamos nas manifestações espíritas, para termos
assegurada a nossa sorte na vida futura? “Se assim fosse, seguir-se-ia
que estariam deserdados todos os que não crêem, ou que não tiveram
ensejo de esclarecer-se, o que seria absurdo. Só o bem assegura a sorte
futura. Ora, o bem é sempre o bem, qualquer que seja o caminho que a ele
conduza. (165-799) A crença no Espiritismo ajuda o homem a se melhorar,
firmando-lhe as idéias sobre certos pontos do futuro. Apressa o
adiantamento dos indivíduos e das massas, porque faculta nos inteiremos
do que seremos um dia. É um ponto de apoio, uma luz que nos guia. O
Espiritismo ensina o homem a suportar as provas com paciência e
resignação; afasta-o dos atos que possam retardar-lhe a felicidade, mas
ninguém diz que, sem ele, não possa ela ser conseguida.
PENAS TEMPORAIS
983. Não experimenta sofrimentos
materiais o Espírito que expia suas faltas em nova existência? Será
então exato dizer-se que, depois da morte, só há para a alma sofrimentos
morais? “É bem verdade que, quando a alma está reencarnada, as
tribulações da vida são-lhe um sofrimento; mas, só o corpo sofre
materialmente. Falando de alguém que morreu, costumais dizer que deixou
de sofrer. Nem sempre isto exprime a realidade. Como Espírito, está
isento de dores físicas; porém, tais sejam as faltas que tenha cometido,
pode estar sujeito a dores morais mais agudas e pode vir a ser ainda
mais desgraçado em nova existência. O mal rico terá que pedir esmola e
se verá a braços com todas as privações oriundas da miséria; o
orgulhoso, com todas as humilhações: o que abusa de sua autoridade e
trata com desprezo e dureza os seus subordinados se verá forçado a
obedecer a um superior mais ríspido do que ele o foi. Todas as penas e
tribulações da vida são expiação das faltas de outra existência, quando
não a consequência das da vida atual. Logo que daqui houverdes saído,
compreendê-lo-eis. (273, 393 e 399) “O homem que se considera feliz na
Terra, porque pode satisfazer às suas paixões, é o que menos esforços
emprega para se melhorar. Muitas vezes começa a sua expiação já nessa
mesma vida de efêmera felicidade, mas certamente expiará noutra
existência tão material quanto aquela.
984. As vicissitudes da vida são sempre a
punição das faltas atuais? Não; já dissemos: são provas impostas por
Deus, ou que vós mesmos escolhestes como Espíritos, antes de
encarnardes, para expiação das faltas cometidas em outra existência,
porque jamais fica impune a infração das leis de Deus e, sobretudo, da
lei de justiça. Se não for punida nesta existência, sê-lo-á
necessariamente noutra. Eis por que um, que vos parece justo, muitas
vezes sofre. É a punição do seu passado.” (393)
985.Constitui recompensa a reencarnação
da alma em um mundo menos grosseiro? “É a consequência de sua depuração,
porquanto, à medida que se vão depurando, os Espíritos passam a
encarnar em mundos cada vez mais perfeitos, até que se tenham despojado
totalmente da matéria e lavado de todas as impurezas, para eternamente
gozarem da felicidade dos Espíritos puros, no seio de Deus.” Nos mundos
onde a existência é menos material do que neste, menos grosseiras são as
necessidades e menos agudos os sofrimentos físicos. Lá, os homens
desconhecem as paixões más, que, nos mundos inferiores, os fazem
inimigos uns dos outros. Nenhum motivo tendo de ódio, ou de ciúme, vivem
em paz, porque praticam a lei de justiça, amor e caridade. Não conhecem
os aborrecimentos e cuidados que nascem da inveja, do orgulho e do
egoísmo, causas do tormento da nossa existência terrestre. (l72-- 182)
986. Pode o Espírito, que progrediu em
sua existência terrena, reencarnar alguma vez no mesmo mundo? “Sim;
desde que não tenha logrado concluir a sua missão, pode ele próprio
pedir lhe seja dado completá-la em nova existência. Mas, então, já não
está sujeito a uma expiação.” (l73)
987. Que sucede ao homem que, não fazendo
o mal, também nada faz para libertar-se da influência da matéria “Pois
que nenhum passo dá para a perfeição, tem que recomeçar uma existência
de natureza idêntica à precedente. Fica estacionário, podendo assim
prolongar os sofrimentos da expiação.”
988. Há pessoas cuja vida se escoa em
perfeita calma; que, nada precisando fazer por si mesmas, se conservam
isentas de cuidados. Provará essa existência ditosa que elas nada têm
que expiar de existência anterior? “Conheces muitas dessas pessoas?
Enganas-te, se pensas que as há em grande número. Não raro, a calma é
apenas aparente. Talvez elas tenham escolhido tal existência, mas,
quando a deixam, percebem que não lhes serviu para progredirem. Então,
como o preguiçoso, lamentam o tempo perdido. Sabei que o Espírito não
pode adquirir conhecimentos e elevar-se senão exercendo a sua atividade.
Se adormece na indolência, não se adianta. Assemelha-se a um que
(segundo os vossos usos) precisa trabalhar e que vai passear ou
deitar-se, com a intenção de nada fazer. Sabei também que cada um terá
que dar contas da inutilidade voluntária da sua existência, inutilidade
sempre fatal à felicidade futura. Para cada um, o total dessa felicidade
futura corresponde à soma do bem que tenha feito, estando o da
infelicidade na proporção do mal que haja praticado e daqueles a quem
haja desgraçado.”
989. Pessoas há que, se bem não sejam
positivamente más, tornam infelizes, pelos seus caracteres, todos os que
as cercam. Que consequências lhes advirão disso? “Inquestionavelmente,
essas pessoas não são boas. Expiarão suas faltas, tendo sempre diante da
vista aqueles a quem infelicitaram, valendo-lhes isso por uma
exprobração. Depois, noutra existência, sofrerão o que fizeram sofrer.”
EXPIAÇÃO E ARREPENDIMENTO
990. O arrependimento se dá no estado
corporal ou no estado espiritual? “No estado espiritual; mas, também
pode ocorrer no estado corporal, quando bem compreendeis a diferença
entre o bem e o mal.”
991. Qual a consequência do
arrependimento no estado espiritual? “Desejar o arrependido uma nova
encarnação para se purificar. O Espírito compreende as imperfeições que o
privam de ser feliz e por isso aspira a uma nova existência em que
possa expiar suas faltas.” (332-975)
992. Que consequência produz o
arrependimento no estado corporal? “Fazer que, já na vida atual, o
Espírito progrida, se tiver tempo de reparar suas faltas. Quando a
consciência o exprobra e lhe mostra uma imperfeição, o homem pode sempre
melhorar-se.”
993. Não há homens que só têm o instinto
do mal e são inacessíveis ao arrependimento? Já te disse que todo
Espírito tem que progredir incessantemente. Aquele que, nesta vida, só
tem o instinto do mal, terá noutra o do bem e é para isso que renasce
muitas vezes, pois preciso é que todos progridam e atinjam a meta. A
diferença está somente em que uns gastam mais tempo do que outros,
porque assim o querem. Aquele, que só tem o instinto do bem, já se
purificou, visto que talvez tenha tido o do mal em anterior
existência.(804)
994. O homem perverso, que não
reconheceu suas faltas durante a vida, sempre as reconhece depois da
morte? “Sempre as reconhece e, então, mais sofre, porque sente em si
todo o mal que praticou, ou de que foi voluntariamente causa. Contudo, o
arrependimento nem sempre é imediato. Há Espíritos que se obstinam em
permanecer no mau caminho, não obstante os sofrimentos por que passam.
Porém, cedo ou tarde, reconhecerão errada a senda que tomaram e o
arrependimento virá. Para esclarecê-los trabalham os bons Espíritos e
também vós podeis trabalhar.”
995. Haverá Espíritos que, sem serem
maus, se conservem indiferentes à sua sorte? “Há Espíritos que de coisa
alguma útil se ocupam. Estão na expectativa. Mas, nesse caso, sofrem
proporcionalmente. Devendo em tudo haver progresso, neles o progresso se
manifesta pela dor.
a) — Não desejam esses Espíritos abreviar
seus sofrimentos? “Desejam-no, sem dúvida, mas falta-lhes energia
bastante para quererem o que os pode aliviar. Quantos indivíduos se
contam, entre vós, que preferem morrer de miséria a trabalhar?
996. Pois que os Espíritos veem o mal que
lhes resulta de suas imperfeições, como se explica que haja os que
agravam suas situações e prolongam o estado de inferioridade em que se
encontram, fazendo o mal como Espíritos, afastando do bom caminho os
homens? “Assim procedem os de tardio arrependimento. Pode também
acontecer que, depois de se haver arrependido, o Espírito se deixe
arrastar de novo para o caminho do mal, por outros Espíritos ainda mais
atrasados.” (971)
997. Veem-se Espíritos, de notória
inferioridade, acessíveis aos bons sentimentos e sensíveis às preces que
por eles se fazem. Como se explica que outros Espíritos, que devêramos
supor mais esclarecidos, revelem um endurecimento e um cinismo, dos
quais coisa alguma consegue triunfar? “A prece só tem efeito sobre o
Espírito que se arrepende. Com relação aos que, impelidos pelo orgulho,
se revoltam contra Deus e persistem nos seus desvarios, chegando mesmo a
exagerá-los, como o fazem alguns desgraçados Espíritos, a prece nada
pode e nada poderá, senão no dia em que um clarão de arrependimento se
produza neles.” (664) Não se deve perder de vista que o Espírito não se
transforma subitamente, após a morte do corpo. Se viveu vida condenável,
é porque era imperfeito. Ora, a morte não o torna imediatamente
perfeito. Pode, pois, persistir em seus erros, em suas falsas opiniões,
em seus preconceitos, até que se haja esclarecido pelo estudo, pela
reflexão e pelo sofrimento.
998. A expiação se cumpre no estado
corporal ou no estado espiritual? “A expiação se cumpre durante a
existência corporal, mediante as provas a que o Espírito se acha
submetido e, na vida espiritual, pelos sofrimentos morais, inerentes ao
estado de inferioridade do Espírito.”
999. Basta o arrependimento durante a
vida para que as faltas do Espírito se apaguem e ele ache graça diante
de Deus? “O arrependimento concorre para a melhoria do Espírito, mas ele
tem que expiar o seu passado.” a) — Se, diante disto, um criminoso
dissesse que, cumprindo-lhe, em todo caso, expiar o seu passado, nenhuma
necessidade tem de se arrepender, que é o que daí lhe resultaria?
Tornar-se mais longa e mais penosa a sua expiação, desde que ele se
torne obstinado no mal.
1000. Já desde esta vida poderemos ir
resgatando as nossas faltas? Sim, reparando-as. Mas, não creiais que as
resgateis mediante algumas privações pueris, ou distribuindo em esmolas o
que possuirdes, depois que morrerdes, quando de nada mais precisais.
Deus não dá valor a um arrependimento estéril, sempre fácil e que apenas
custa o esforço de bater no peito. A perda de um dedo mínimo, quando se
esteja prestando um serviço, apaga mais faltas do que o suplício da
carne suportado durante anos, com objetivo exclusivamente pessoal. (726)
Só por meio do bem se repara o mal e a reparação nenhum mérito
apresenta, se não atinge o homem nem no seu orgulho, nem nos seus
interesses materiais.
De que serve, para sua justificação,
que restitua, depois de morrer, os bens mal adquiridos, quando se lhe
tornaram inúteis e deles tirou todo o proveito? De que lhe serve
privar-se de alguns gozos fúteis, de algumas superfluidades, se
permanece integral o dano que causou a outrem? De que lhe serve,
finalmente, humilhar-se diante de Deus se, perante os homens, conserva o
seu orgulho? (720- -721).
1001. Nenhum mérito haverá em
assegurarmos, para depois de nossa morte, emprego útil aos bens que
possuímos? “Nenhum mérito não é o termo. Isso sempre é melhor do que
nada. A desgraça, porém, é que aquele, que só depois de morto dá, é
quase sempre mais egoísta do que generoso. Quer ter o fruto do bem, sem o
trabalho de praticá-lo. Duplo proveito tira aquele que, em vida, se
priva de alguma coisa: o mérito do sacrifício e o prazer de ver felizes
os que lhe devem a felicidade. Mas, lá está o egoísmo a dizer-lhe: O que
dás tiras aos teus gozos; e, como o egoísmo fala mais alto do que o
desinteresse e a caridade, o homem guarda o que possui, pretextando suas
necessidades pessoais e as exigências da sua posição! Ah! lastimai
aquele que desconhece o prazer de dar; acha-se verdadeiramente privado
de um dos mais puros e suaves gozos. Submetendo-o à prova da riqueza,
tão escorregadia e perigosa para o seu futuro, houve Deus por bem
conceder-lhe, como compensação, a ventura da generosidade, de que já
neste mundo pode gozar.” (814)
1002. Que deve fazer aquele que, em
artigo de morte, reconhece suas faltas, quando já não tem tempo de as
reparar? Basta-lhe nesse caso arrepender-se? “O arrependimento lhe
apressa a reabilitação, mas não o absolve. Diante dele não se desdobra o
futuro, que jamais se lhe tranca?”
DURAÇÃO DAS PENAS FUTURAS
1003. É arbitrária ou sujeita a uma
lei qualquer a duração dos sofrimentos do culpado, na vida futura?
“Deus nunca obra caprichosamente e tudo, no Universo, se rege por leis,
em que a sua sabedoria e a sua bondade se revelam.”
1004. Em que se baseia a duração dos
sofrimentos do culpado? “No tempo necessário a que se melhore. Sendo o
estado de sofrimento ou de felicidade proporcionado ao grau de
purificação do Espírito, a duração e a natureza de seus sofrimentos
dependem do tempo que ele gaste em melhorar-se. À medida que progride e
que os sentimentos se lhe depuram, seus sofrimentos diminuem e mudam de
natureza.”
SÃO LUÍS
1005. Ao Espírito sofredor, o tempo se
afigura tão ou menos longo do que quando estava vivo? “Parece-lhe mais
longo: para ele não existe o sono. Só para os Espíritos que já chegaram a
certo grau de purificação, o tempo, por assim dizer, se apaga diante do
infinito.” (240) 1006. Poderão durar eternamente os sofrimentos do
Espírito? “Poderiam, se ele pudesse ser eternamente mau, isto é, se
jamais se arrependesse e melhorasse, sofreria eternamente. Mas, Deus não
criou seres tendo por destino permanecerem votados perpetuamente ao
mal. Apenas os criou a todos simples e ignorantes, tendo todos, no
entanto, que progredir em tempo mais ou menos longo, conforme decorrer
da vontade de cada um. Mais ou menos tardia pode ser a vontade, do mesmo
modo que há crianças mais ou menos precoces, porém, cedo ou tarde, ela
aparece, por efeito da irresistível necessidade que o Espírito sente de
sair da inferioridade e de se tornar feliz. Eminentemente sábia e
magnânima é, pois, a lei que rege a duração das penas, porquanto
subordina essa duração aos esforços do Espírito. Jamais o priva do seu
livre-arbítrio: se deste faz ele mau uso, sofre as consequências.”
SÃO LUÍS
1007. Haverá Espíritos que nunca se
arrependem? “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se
que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a
criança não pode tornar-se homem.”
SÃO LUÍS
1008. Depende sempre da vontade do
Espírito a duração das penas? Algumas não haverá que lhe sejam impostas
por tempo determinado? “Sim, ao Espírito podem ser impostas penas por
determinado tempo; mas, Deus, que só quer o bem de suas criaturas,
acolhe sempre o arrependimento e infrutífero jamais fica o desejo que o
Espírito manifeste de se melhorar.”
SÃO LUÍS
1009. Assim, as penas impostas jamais o
são por toda a eternidade? “Interrogai o vosso bom-senso, a vossa razão e
perguntai-lhes se uma condenação perpétua, motivada por alguns momentos
de erro, não seria a negação da bondade de Deus. Que é, com efeito, a
duração da vida, ainda quando de cem anos, em face da eternidade?
Eternidade! Compreendeis bem esta palavra? Sofrimentos, torturas
sem-fim, sem esperanças, por causa de algumas faltas! O vosso juízo não
repele semelhante idéia? Que os antigos tenham considerado o Senhor do
Universo um Deus terrível, cioso e vingativo, concebe-se. Na ignorância
em que se achavam, atribuíam à divindade as paixões dos homens. Esse,
todavia, não é o Deus dos cristãos, que classifica como virtudes
primordiais o amor, a caridade, a misericórdia, o esquecimento das
ofensas. Poderia ele carecer das qualidades, cuja posse prescreve, como
um dever, às suas criaturas? Não haverá contradição em se lhe atribuir a
bondade infinita e a vingança também infinita? Dizeis que, acima de
tudo, ele é justo e que o homem não lhe compreende a justiça. Mas, a
justiça não exclui a bondade e ele não seria bom, se condenasse a
eternas e horríveis penas a maioria das suas criaturas. Teria o direito
de fazer da justiça uma obrigação para seus filhos, se lhes não desse
meio de compreendê-la? Aliás, no fazer que a duração das penas dependa
dos esforços do culpado não está toda a sublimidade da justiça unida à
bondade? Aí é que se encontra a verdade desta sentença: ‘A cada um
segundo as suas obras.’”
SANTO AGOSTINHO
“Aplicai-vos, por todos os meios ao vosso
alcance, em combater, em aniquilar a idéia da eternidade das penas,
idéia blasfematória da justiça e da bondade de Deus, gérmen fecundo da
incredulidade, do materialismo e da indiferença que invadiram as massas
humanas, desde que as inteligências começaram a desenvolver-se. O
Espírito, prestes a esclarecer-se, ou mesmo apenas desbastado, logo lhe
apreendeu a monstruosa injustiça. Sua razão a repele e, então, raro é
que não englobe no mesmo repúdio a pena que o revolta e o Deus a quem a
atribui. Daí os males sem conta que hão desabado sobre vós e aos quais
vimos trazer remé- dio. Tanto mais fácil será a tarefa que vos
apontamos, quanto é certo que todas as autoridades em quem se apoiam os
defensores de tal crença evitaram todas pronunciar-se formalmente a
respeito. Nem os concílios, nem os Pais da Igreja resolveram essa grave
questão. Muito embora, segundo os Evangelistas e tomadas ao pé da letra
as palavras emblemáticas do Cristo, ele tenha ameaçado os culpados com
um fogo que se não extingue, com um fogo eterno, absolutamente nada se
encontra nas suas palavras capaz de provar que os haja condenado
eternamente. “Pobres ovelhas desgarradas, aprendei a ver aproximar-se de
vós o bom Pastor, que, longe de vos banir para todo o sempre de sua
presença, vem pessoalmente ao vosso encontro, para vos reconduzir ao
aprisco. Filhos pródigos, deixai o vosso voluntário exílio; encaminhai
vossos passos para a morada paterna. O Pai vos estende os braços e está
sempre pronto a festejar o vosso regresso ao seio da família.
LAMENNAIS “Guerras de palavras!
guerras de palavras! Ainda não basta o sangue que tendes feito correr!
Será ainda preciso que se reacendam as fogueiras? Discutem sobre
palavras: eternidade das penas, eternidade dos castigos. Ignorais então
que o que hoje entendeis por eternidade não é o que os antigos entendiam
e designavam por esse termo? Consulte o teólogo as fontes e lá
descobrirá, como todos vós, que o texto hebreu não atribuía esta
significação ao vocábulo que os gregos, os latinos e os modernos
traduziram por penas sem-fim, irremissíveis. Eternidade dos castigos
corresponde à eternidade do mal. Sim, enquanto existir o mal entre os
homens, os castigos subsistirão. Importa que os textos sagrados se
interpretem no sentido relativo. A eternidade das penas é, pois,
relativa e não absoluta. Chegue o dia em que todos os homens, pelo
arrependimento, se revistam da túnica da inocência e desde esse dia
deixará de haver gemidos e ranger de dentes. Limitada tendes, é certo, a
vossa razão humana, porém, tal como a tendes, ela é uma dádiva de Deus
e, com o auxílio dessa razão, nenhum homem de boa-fé haverá que de outra
forma compreenda a eternidade dos castigos. Pois que! Fora necessário
admitir-se por eterno o mal. Somente Deus é eterno e não poderia ter
criado o mal eterno; do contrário, forçoso seria tirar-se-lhe o mais
magnífico dos seus atributos: o soberano poder, porquanto não é
soberanamente poderoso aquele que cria um elemento destruidor de suas
obras. Humanidade! Humanidade! não mergulhes mais os teus tristes
olhares nas profundezas da Terra, procurando aí os castigos. Chora,
espera, expia e refugia-te na idéia de um Deus intrinsecamente bom,
absolutamente poderoso, essencialmente justo.”
PLATÃO
“Gravitar para a unidade divina, eis o
fim da Humanidade. Para atingi-lo, três coisas são necessárias: a
Justiça, o Amor e a Ciência. Três coisas lhe são opostas e contrárias: a
ignorância, o ódio e a injustiça. Pois bem! digo-vos, em verdade, que
mentis a estes princípios fundamentais, comprometendo a idéia de Deus,
com o lhe exagerardes a severidade. Duplamente a comprometeis, deixando
que no Espírito da criatura penetre a suposição de que há nela mais
clemência, mais virtude, amor e verdadeira justiça, do que atribuís ao
ser infinito. Destruís mesmo a idéia do inferno, tornando-o ridículo e
inadmissível às vossas crenças, como o é aos vossos corações o horrendo
espetáculo das execuções, das fogueiras e das torturas da Idade Mé- dia!
Pois que! Quando banida se acha para sempre das legislações humanas a
era das cegas represálias, é que esperais mantê-la no ideal? Oh!
crede-me, crede-me, irmãos em Deus e em Jesus-Cristo, crede-me: ou vos
resignais a deixar que pereçam nas vossas mãos todos os vossos dogmas,
de preferência a que se modifiquem, ou, então, vivificai-os, abrindo-os
aos benfazejos eflúvios que os Bons, neste momento, derramam neles. A
idéia do inferno, com as suas fornalhas ardentes, com as suas caldeiras a
ferver, pôde ser tolerada, isto é, perdoável num século de ferro;
porém, no século dezenove, não passa de vão fantasma, próprio, quando
muito, para amedrontar criancinhas e em que estas, crescendo um pouco,
logo deixam de crer. Se persistirdes nessa mitologia aterradora,
engendrareis a incredulidade, mãe de toda a desorganização social.
Tremo, entrevendo toda uma ordem social abalada e a ruir sobre os seus
fundamentos, por falta de sanção penal. Homens de fé ardente e viva,
vanguardeiros do dia da luz, mãos à obra, não para manter fábulas que
envelheceram e se desacreditaram, mas para reavivar, revivificar a
verdadeira sanção penal, sob formas condizentes com os vossos costumes,
os vossos sentimentos e as luzes da vossa época. “Quem é, com efeito, o
culpado? É aquele que, por um desvio, por um falso movimento da alma, se
afasta do objetivo da criação, que consiste no culto harmonioso do
belo, do bem, idealizados pelo arquétipo humano, pelo Homem- -Deus, por
Jesus-Cristo. “Que é o castigo? A consequência natural, derivada desse
falso movimento; uma certa soma de dores necessária a desgostá-lo da sua
deformidade, pela experimentação do sofrimento. O castigo é o aguilhão
que estimula a alma, pela amargura, a se dobrar sobre si mesma e a
buscar o porto de salvação. O castigo só tem por fim a reabilitação, a
redenção. Querê-lo eterno, por uma falta não eterna, é negar-lhe toda a
razão de ser. “Oh! em verdade vos digo, cessai, cessai de pôr em
paralelo, na sua eternidade, o Bem, essência do Criador, com o Mal,
essência da criatura. Fora criar uma penalidade injustificável. Afirmai,
ao contrário, o abrandamento gradual dos castigos e das penas pelas
transmigrações e consagrareis a unidade divina, tendo unidos o
sentimento e a razão.
PAULO, apóstolo.
Com o atrativo de recompensas e temor de
castigos, procura-se estimular o homem para o bem e desviá-lo do mal. Se
esses castigos, porém, lhe são apresentados de forma que a sua razão se
recuse a admiti-los, nenhuma influência terão sobre ele. Longe disso,
rejeitará tudo: a forma e o fundo. Se, ao contrário, lhe apresentarem o
futuro de maneira lógica, ele não o repelirá. O Espiritismo lhe dá essa
explicação. A doutrina da eternidade das penas, em sentido absoluto, faz
do Ente Supremo um Deus implacável. Seria lógico dizer-se, de um
soberano, que é muito bom, muito magnânimo, muito indulgente, que só
quer a felicidade dos que o cercam, mas que ao mesmo tempo é cioso,
vingativo, de inflexível rigor e que pune com o castigo extremo as três
quartas partes dos seus súditos, por uma ofensa, ou uma infração de suas
leis, mesmo quando praticada pelos que não as conheciam? Não haveria aí
contradição? Ora, pode Deus ser menos bom do que o seria um homem?
Outra contradição. Pois que Deus tudo sabe, sabia, ao criar uma alma, se
esta viria a falir ou não. Ela, pois, desde a sua formação, foi
destinada à desgraça eterna. Será isto possível, racional? Com a
doutrina das penas relativas, tudo se justifica. Deus sabia, sem dúvida,
que ela faliria, mas lhe deu meios de se instruir pela sua própria
experiência, mediante suas próprias faltas. É necessário que expie seus
erros, para melhor se firmar no bem, mas a porta da esperança não se lhe
fecha para sempre e Deus faz que, dos esforços que ela empregue para o
conseguir, dependa a sua redenção. Isto toda gente pode compreender e a
mais meticulosa lógica pode admitir. Menos cépticos haveria, se deste
ponto de vista fossem apresentadas as penas futuras. Na linguagem
vulgar, a palavra eterno é muitas vezes empregada figuradamente, para
designar uma coisa de longa duração, cujo termo não se prevê, embora se
saiba muito bem que esse termo existe. Dizemos, por exemplo, os gelos
eternos das altas montanhas, dos polos, embora saibamos, de um lado, que
o mundo físico pode ter fim e, de outro lado, que o estado dessas
regiões pode mudar pelo deslocamento normal do eixo da Terra, ou por um
cataclismo. Assim, neste caso, o vocábulo — eterno não quer dizer
perpétuo ao infinito, Quando sofremos de uma enfermidade duradoura,
sentimos que o nosso mal é eterno. Que há, pois, de admirar em que
Espíritos que sofrem há anos, há séculos, há milênios mesmo, assim
também se exprimam? Não esqueçamos, principalmente, que, não lhes
permitindo a sua inferioridade divisar o ponto extremo do caminho, crêem
que terão de sofrer sempre, o que lhes é uma punição. Demais, a
doutrina do fogo material, das fornalhas e das torturas, tomadas ao
Tártaro do paganismo, está hoje completamente abandonada pela alta
teologia e só nas escolas esses aterradores quadros alegóricos ainda são
apresentados como verdades positivas, por alguns homens mais zelosos do
que instruídos, que assim cometem grave erro, porquanto as imaginações
juvenis, libertando-se dos terrores, poderão ir aumentar o número dos
incrédulos. A Teologia reconhece hoje que a palavra fogo é usada
figuradamente e que se deve entender como significando fogo moral (974).
Os que têm acompanhado, como nós, as peripécias da vida e dos
sofrimentos de além-túmulo, através das comunicações espíritas, hão
podido convencer-se de que, por nada terem de material, eles não são
menos pungentes. Mesmo relativamente à duração, alguns teólogos começam a
admiti-la no sentido restritivo acima indicado e pensam que, com
efeito, a palavra eterno se pode referir às penas em si mesmas, como
consequência de uma lei imutável, e não à sua aplicação a cada
indivíduo. No dia em que a Religião admitir esta interpretação, assim
como algumas outras também decorrentes do progresso das luzes, muitas
ovelhas desgarradas reunirá.
RESSURREIÇÃO DA CARNE
1010. O dogma da ressurreição da carne
será a consagração da reencarnação ensinada pelos Espíritos? “Como
quereríeis que fosse de outro modo? Conforme sucede com tantas outras,
estas palavras só parecem despropositadas, no entender de algumas
pessoas, porque as tomam ao pé da letra. Levam, por isso, à
incredulidade. Dai-lhes uma interpretação lógica e os que chamais livres
pensadores as admitirão sem dificuldades, precisamente pela razão de
que refletem. Por que, não vos enganeis, esses livres pensadores o que
mais pedem e desejam é crer. Têm, como os outros, ou, talvez, mais que
os outros, a sede do futuro, mas não podem admitir o que a ciência
desmente. A doutrina da pluralidade das existências é consentânea com a
justiça de Deus; só ela explica o que, sem ela, é inexplicável. Como
havíeis de pretender que o seu princípio não estivesse na própria
religião?” — Assim, pelo dogma da ressurreição da carne, a própria
Igreja ensina a doutrina da reencarnação? “É evidente. Demais, essa
doutrina decorre de muitas coisas que têm passado despercebidas e que
dentro em pouco se compreenderão neste sentido. Reconhecer-se-á em breve
que o Espiritismo ressalta a cada passo do texto mesmo das Escrituras
sagradas. Os Espíritos, portanto, não vêm subverter a religião, como
alguns o pretendem. Vêm, ao contrário, confirmá-la, sancioná-la por
provas irrecusáveis. Como, porém, são chegados os tempos de não mais
empregarem linguagem figurada, eles se exprimem sem alegorias e dão às
coisas sentido claro e preciso, que não possa estar sujeito a qualquer
interpretação falsa. Eis por que, daqui a algum tempo, muito maior será
do que é hoje o número de pessoas sinceramente religiosas e crentes.”
SÃO LUÍS
Efetivamente, a Ciência demonstra a
impossibilidade da ressurreição, segundo a idéia vulgar. Se os despojos
do corpo humano se conservassem homogêneos, embora dispersos e reduzidos
a pó, ainda se conceberia que pudessem reunir-se em dado momento. As
coisas, porém, não se passam assim. O corpo é formado de elementos
diversos: oxigênio, hidrogênio, azoto, carbono, etc. Pela decomposição,
esses elementos se dispersam, mas para servir à formação de novos
corpos, de tal sorte que uma mesma molécula, de carbono, por exemplo,
terá entrado na composição de muitos milhares de corpos diferentes
(falamos unicamente dos corpos humanos, sem ter em conta os dos
animais); que um indivíduo tem talvez em seu corpo moléculas que já
pertenceram a homens das primitivas idades do mundo; que essas mesmas
moléculas orgânicas que absorveis nos alimentos provêm, possivelmente,
do corpo de tal outro indivíduo que conhecestes e assim por diante.
Existindo em quantidade definida a matéria e sendo indefinidas as suas
combinações, como poderia cada um daqueles corpos reconstituir-se com os
mesmos elementos? Há aí impossibilidade material. Racionalmente, pois,
não se pode admitir a ressurreição da carne, senão como uma figura
simbólica do fenômeno da reencarnação. E, então, nada mais há que aberre
da razão, que esteja em contradição com os dados da Ciência. É exato
que, segundo o dogma, essa ressurreição só no fim dos tempos se dará, ao
passo que, segundo a Doutrina Espírita, ocorre todos os dias. Mas,
nesse quadro do julgamento final, não haverá uma grande e bela imagem a
ocultar, sob o véu da alegoria, uma dessas verdades imutáveis, em
presença das quais deixará de haver cépticos, desde que lhes seja
restituída a verdadeira significação? Dignem-se de meditar a teoria
espírita sobre o futuro das almas e sobre a sorte que lhes cabe, por
efeito das diferentes provas que lhes cumpre sofrer, e verão que,
exceção feita da simultaneidade, o juízo que as condena ou absolve não é
uma ficção, como pensam os incrédulos. Notemos mais que aquela teoria é
a consequência natural da pluralidade dos mundos, hoje perfeitamente
admitida, enquanto que, segundo a doutrina do juízo final, a Terra passa
por ser o único mundo habitado.
PARAÍSO, INFERNO E PURGATÓRIO
1012. Haverá no Universo lugares
circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seus
merecimentos?1 “Já respondemos a esta pergunta. As penas e os gozos são
inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o
princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por
toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente
destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou
menos felizes ou desgraçados, conforme é mais ou menos adiantado o
mundo em que habitam.” — De acordo, então, com o que vindes de dizer, o
inferno e o paraíso não existem, tais como o homem os imagina? “São
simples alegorias: por toda parte há Espíritos ditosos e inditosos.
Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem
se reúnem por simpatia; mas podem reunir-se onde queiram, quando são
perfeitos.” A localização absoluta das regiões das penas e das
recompensas só na imaginação do homem existe. Provém da sua tendência a
materializar e circunscrever as coisas, cuja essência infinita não lhe é
possível compreender.
1013. Que se deve entender por
purgatório? Dores físicas e morais: o tempo da expiação. Quase sempre,
na Terra é que fazeis o vosso purgatório e que Deus vos obriga a expiar
as vossas faltas.
O que o homem chama purgatório é
igualmente uma alegoria, devendo-se entender como tal, não um lugar
determinado, porém o estado dos Espíritos imperfeitos, que se acham em
expiação até alcançarem a purificação completa, que os elevará à
categoria dos Espíritos bem-aventurados. Operando-se essa purificação
por meio das diversas encarnações, o purgatório consiste nas provas da
vida corporal.
1014. Como se explica que Espíritos, cuja
superioridade se revela na linguagem de que usam, tenham respondido a
pessoas muito sérias, a respeito do inferno e do purgatório, de
conformidade com as idéias correntes? “É que falam uma linguagem que
possa ser compreendida pelas pessoas que os interrogam. Quando estas se
mostram imbuídas de certas idéias, eles evitam chocá-las muito
bruscamente, a fim de lhes não ferir as convicções. Se um Espírito
dissesse a um muçulmano, sem precauções oratórias, que Maomet não foi
profeta, seria muito mal acolhido.” — Concebe-se que assim procedam os
Espíritos que nos querem instruir. Como, porém, se explica que,
interrogados acerca da situação em que se achavam, alguns Espíritos
tenham respondido que sofriam as torturas do inferno ou do purgatório?
Quando são inferiores e ainda não completamente desmaterializados, os
Espíritos conservam uma parte de suas idéias terrenas e, para dar suas
impressões, se servem dos termos que lhes são familiares. Acham-se num
meio que só imperfeitamente lhes permite sondar o futuro. Essa a causa
de alguns Espíritos errantes, ou recém-desencarnados, falarem como o
fariam se estivessem encarnados. Inferno se pode traduzir por uma vida
de provações, extremamente dolorosa, com a incerteza de haver outra
melhor; purgatório, por uma vida também de provações, mas com a
consciência de melhor futuro. Quando experimentas uma grande dor, não
costumas dizer que sofres como um danado? Tudo isso são apenas palavras e
sempre ditas em sentido figurado.
1015. Que se deve entender por — uma alma
a penar? “Uma alma errante e sofredora, incerta de seu futuro e à qual
podeis proporcionar o alívio, que muitas vezes solicita, vindo
comunicar-se convosco.” (664)
1016. Em que sentido se deve entender a
palavra céu? “Julgas que seja um lugar, como os campos Elíseos dos
antigos, onde todos os bons Espíritos estão promiscuamente aglomerados,
sem outra preocupação que a de gozar, pela eternidade toda, de uma
felicidade passiva? Não; é o espaço universal; são os planetas, as
estrelas e todos os mundos superiores, onde os Espíritos gozam
plenamente de suas faculdades, sem as tribulações da vida material, nem
as angústias peculiares à inferioridade.”
1017. Alguns Espíritos disseram estar
habitando o quarto, o quinto céus, etc. Que queriam dizer com isso?
“Perguntando-lhes que céu habitam, é que formais idéia de muitos céus
dispostos como os andares de uma casa. Eles, então, respondem de acordo
com a vossa linguagem. Mas, por estas palavras — quarto e quinto céus —
exprimem diferentes graus de purificação e, por conseguinte, de
felicidade. É exatamente como quando se pergunta a um Espírito se está
no inferno. Se for desgraçado, dirá — sim, porque, para ele, inferno é
sinônimo de sofrimento. Sabe, porém, muito bem que não é uma fornalha.
Um pagão diria estar no Tártaro.” O mesmo ocorre com outras expressões
análogas, tais como: cidade das flores, cidade dos eleitos, primeira,
segunda, ou terceira esfera, etc., que apenas são alegorias usadas por
alguns Espíritos, quer como figuras, quer, algumas vezes, por ignorância
da realidade das coisas, e até das mais simples noções científicas. De
acordo com a idéia restrita que se fazia outrora dos lugares das penas e
das recompensas e, sobretudo, de acordo com a opinião de que a Terra
era o centro do Universo, de que o firmamento formava uma abóbada e que
havia uma região das estrelas, o céu era situado no alto e o inferno
embaixo. Daí as expressões: subir ao céu, estar no mais alto dos céus,
ser precipitado nos infernos. Hoje, que a Ciência demonstrou ser a Terra
apenas, entre tantos milhões de outros, um dos menores mundos, sem
importância especial; que traçou a história da sua formação e lhe
descreveu a constituição; que provou ser infinito o espaço, não haver
alto nem baixo no Universo, teve-se que renunciar a situar o céu acima
das nuvens e o inferno nos lugares inferiores. Quanto ao purgatório,
nenhum lugar lhe fora designado. Estava reservado ao Espiritismo dar de
tudo isso a explicação mais racional, mais grandiosa e, ao mesmo tempo,
mais consoladora para a Humanidade. Pode-se assim dizer que trazemos em
nós mesmos o nosso inferno e o nosso paraíso. O purgatório, achamo-lo na
encarnação, nas vidas corporais ou físicas.
1018. Em que sentido se devem entender
estas palavras do Cristo: Meu reino não é deste mundo? Respondendo
assim, o Cristo falava em sentido figurado. Queria dizer que o seu
reinado se exerce unicamente sobre os corações puros e desinteressados.
Ele está onde quer que domine o amor do bem. Ávidos, porém, das coisas
deste mundo e apegados aos bens da Terra, os homens com ele não estão.
1019. Poderá jamais implantar-se na Terra
o reinado do bem? “O bem reinará na Terra quando, entre os Espíritos
que a vêm habitar, os bons predominarem, porque, então, farão que aí
reinem o amor e a justiça, fonte do bem e da felicidade. Por meio do
progresso moral e praticando as leis de Deus é que o homem atrairá para a
Terra os bons Espíritos e dela afastará os maus. Estes, porém, não a
deixarão, senão quando daí estejam banidos o orgulho e o egoísmo.
“Predita foi a transformação da Humanidade e vos avizinhais do momento
em que se dará, momento cuja chegada apressam todos os homens que
auxiliam o progresso. Essa transformação se verificará por meio da
encarnação de Espíritos melhores, que constituirão na Terra uma gera-
ção nova. Então, os Espíritos dos maus, que a morte vai ceifando dia a
dia, e todos os que tentem deter a marcha das coisas serão daí
excluídos, pois que viriam a estar deslocados entre os homens de bem,
cuja felicidade perturbariam. Irão para mundos novos, menos adiantados,
desempenhar missões penosas, trabalhando pelo seu próprio adiantamento,
ao mesmo tempo que trabalharão pelo de seus irmãos ainda mais atrasados.
Neste banimento de Espíritos da Terra transformada, não percebeis a
sublime alegoria do Paraíso perdido e, na vinda do homem para a Terra em
semelhantes condições, trazendo em si o gérmen de suas paixões e os
vestígios da sua inferioridade primitiva, não descobris a não menos
sublime alegoria do pecado original? Considerado deste ponto de vista, o
pecado original se prende à natureza ainda imperfeita do homem que,
assim, só é responsável por si mesmo, pelas suas próprias faltas e não
pelas de seus pais. “Todos vós, homens de fé e de boa vontade,
trabalhai, portanto, com ânimo e zelo na grande obra da regeneração, que
colhereis pelo cêntuplo o grão que houverdes semeado. Ai dos que fecham
os olhos à luz! Preparam para si mesmos longos séculos de trevas e
decepções. Ai dos que fazem dos bens deste mundo a fonte de todas as
suas alegrias! Terão que sofrer privações muito mais numerosas do que os
gozos de que desfrutaram! Ai, sobretudo, dos egoístas! Não acharão quem
os ajude a carregar o fardo de suas misérias.”
SÃO LUÍS
C o n c l u s ã o
I
Quem, de magnetismo terrestre,
apenas conhecesse o brinquedo dos patinhos imantados que, sob a ação do
ímã, se movimentam em todas as direções numa bacia com água,
dificilmente poderia compreender que ali está o segredo do mecanismo do
Universo e da marcha dos mundos. O mesmo se dá com quem, do Espiritismo,
apenas conhece o movimento das mesas, em o qual só vê um divertimento,
um passatempo, sem compreender que esse fenômeno tão simples e vulgar,
que a antiguidade e até povos semisselvagens conheceram, possa ter
ligação com as mais graves questões da ordem social. Efetivamente, para o
observador superficial, que relação pode ter com a moral e o futuro da
Humanidade uma mesa que se move? Quem quer, porém, que reflita se
lembrará de que de uma simples panela a ferver e cuja tampa se erguia
continuamente, fato que também ocorre desde toda a antiguidade, saiu o
possante motor com que o homem transpõe o espaço e suprime as
distâncias. Pois bem! Sabei, vós que não credes senão no que pertence ao
mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir
desdenhosamente, saiu uma ciência, assim como a solução dos problemas
que nenhuma filosofia pudera ainda resolver. Apelo para todos os
adversários de boa- -fé e os adjuro a que digam se se deram ao trabalho
de estudar o que criticam. Porque, em boa lógica, a crítica só tem valor
quando o crítico é conhecedor daquilo de que fala. Zombar de uma coisa
que se não conhece, que se não sondou com o escalpelo do observador
consciencioso, não é criticar, é dar prova de leviandade e triste mostra
de falta de critério. Certamente que, se houvéssemos apresentado esta
filosofia como obra de um cérebro humano, menos desdenhoso tratamento
encontraria e teria merecido as honras do exame dos que pretendem
dirigir a opinião. Vem ela, porém, dos Espíritos. Que absurdo! Mal lhe
dispensam um simples olhar. Julgam-na pelo título, como o macaco da
fábula julgava da noz pela casca. Fazei, se quiserdes, abstração da sua
origem. Suponde que este livro é obra de um homem e dizei, do íntimo e
em consciência, se, depois de o terdes lido seriamente, achais nele
matéria para zombaria.
II
O Espiritismo é o mais terrível
antagonista do materialismo. Não é, pois, de admirar que tenha por
adversários os materialistas. Mas, como o materialismo é uma doutrina
cujos adeptos mal ousam confessar que o são (prova de que não se
consideram muito fortes e têm a dominá-los a consciência), eles se
acobertam com o manto da razão e da ciência. E, coisa estranha, os mais
cépticos chegam a falar em nome da religião, que não conhecem e não
compreendem melhor que ao Espiritismo. Por ponto de mira tomam o
maravilhoso e o sobrenatural, que não admitem. Ora, dizem, pois que o
Espiritismo se funda no maravilhoso, não pode deixar de ser uma
suposição ridícula. Não refletem que, condenando, sem restrições, o
maravilhoso e o sobrenatural, também condenam a religião. Com efeito, a
religião se funda na revelação e nos milagres. Ora, que é a revelação,
senão um conjunto de comunicações extraterrenas? Todos os autores
sagrados, desde Moisés, têm falado dessa espécie de comunicações. Que
são os milagres, senão fatos maravilhosos e sobrenaturais, por
excelência, visto que, no sentido litúrgico, constituem derrogações das
leis da Natureza? Logo, rejeitando o maravilhoso e o sobrenatural, eles
rejeitam as bases mesmas da religião. Não é deste ponto de vista, porém,
que devemos encarar a questão. Ao Espiritismo não compete examinar se
há ou não milagres, isto é, se em certos casos houve Deus por bem
derrogar as leis eternas que regem o Universo. Permite, a este respeito,
inteira liberdade de crença. Diz e prova que os fenômenos em que se
baseia, de sobrenaturais só têm a aparência. E parecem tais a algumas
pessoas, apenas porque são insólitos e diferentes dos fatos conhecidos.
Não são, contudo, mais sobrenaturais do que todos os fenômenos, cuja
explicação a Ciência hoje dá e que pareceram maravilhosos noutra época.
Todos os fenômenos espíritas, sem exceção, resultam de leis gerais.
Revelam-nos uma das forças da Natureza, força desconhecida, ou, por
melhor dizer, incompreendida até agora, mas que a observação demonstra
estar na ordem das coisas.
Assim, pois, o Espiritismo se apoia menos
no maravilhoso e no sobrenatural do que a própria religião.
Conseguintemente, os que o atacam por esse lado mostram que o não
conhecem e, ainda quando fossem os maiores sábios, lhes diríamos: se a
vossa ciência, que vos instruiu em tantas coisas, não vos ensinou que o
domínio da Natureza é infinito, sois apenas meio sábios.
III
Dizeis que desejais curar o vosso século
de uma mania que ameaça invadir o mundo. Preferiríeis que o mundo fosse
invadido pela incredulidade que procurais propagar? A que se deve
atribuir o relaxamento dos laços de família e a maior parte das
desordens que minam a sociedade, senão à ausência de toda crença?
Demonstrando a existência e a imortalidade da alma, o Espiritismo
reaviva a fé no futuro, levanta os ânimos abatidos, faz suportar com
resignação as vicissitudes da vida. Ousaríeis chamar a isto um mal? Duas
doutrinas se defrontam: uma, que nega o futuro; outra, que lhe proclama
e prova a existência; uma, que nada explica, outra, que explica tudo e
que, por isso mesmo, se dirige à razão; uma, que é a sanção do egoísmo;
outra, que oferece base à justiça, à caridade e ao amor do próximo. A
primeira somente mostra o presente e aniquila toda esperança; a segunda
consola e desvenda o vasto campo do futuro. Qual a mais preciosa?
Algumas pessoas, dentre as mais cépticas, se fazem apóstolos da
fraternidade e do progresso. Mas, a fraternidade pressupõe desinteresse,
abnegação da personalidade. Onde há verdadeira fraternidade, o orgulho é
uma anomalia. Com que direito impondes um sacrifício àquele a quem
dizeis que, com a morte, tudo se lhe acabará; que amanhã, talvez, ele
não será mais do que uma velha máquina desmantelada e atirada ao
monturo? Que razões terá ele para impor a si mesmo uma privação
qualquer? Não será mais natural que trate de viver o melhor possível,
durante os breves instantes que lhe concedeis? Daí o desejo de possuir
muito para melhor gozar. Do desejo nasce a inveja dos que possuem mais
e, dessa inveja à vontade de apoderar-se do que a estes pertence, o
passo é curto. Que é que o detém? A lei? A lei, porém, não abrange todos
os casos. Direis que a consciência, o sentimento do dever. Mas, em que
baseais o sentimento do dever? Terá razão de ser esse sentimento, de par
com a crença de que tudo se acaba com a vida? Onde essa crença exista,
uma só máxima é racional: cada um por si, não passando de vãs palavras
as idéias de fraternidade, de consciência, de dever, de humanidade,
mesmo de progresso. Oh! vós, que proclamais semelhantes doutrinas, não
sabeis quão grande é o mal que fazeis à sociedade, nem de quantos crimes
assumis a responsabilidade! Para o céptico, tal coisa não existe. Só à
matéria rende ele homenagem.
IV
O progresso da Humanidade tem seu
princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade, lei que
se funda na certeza do futuro. Tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a
pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra
todas as condições da felicidade do homem. Só ela pode curar as chagas
da sociedade.
Comparando as idades e os povos, pode ele
avaliar quanto a sua condição melhora, à medida que essa lei vai sendo
mais bem compreendida e praticada. Ora, se, aplicando-a parcial e
incompletamente, aufere o homem tanto bem, que não conseguirá quando
fizer dela a base de todas as suas instituições sociais! Será isso
possível? Certo, porquanto, desde que ele já deu dez passos, possível
lhe é dar vinte e assim por diante. Do futuro se pode, pois, julgar pelo
passado. Já vemos que pouco a pouco se extinguem as antipatias de povo
para povo. Diante da civilização, diminuem as barreiras que os
separavam. De um extremo a outro do mundo, eles se estendem as mãos.
Maior justiça preside à elaboração das leis internacionais. As guerras
se tornam cada vez mais raras e não excluem os sentimentos de
humanidade. Nas relações, a uniformidade se vai estabelecendo. Apagam-se
as distinções de raças e de castas e os que professam crenças diversas
impõem silêncio aos prejuízos de seita, para se confundirem na adoração
de um único Deus. Falamos dos povos que marcham à testa da civilização.
(789-793) A todos estes respeitos, no entanto, longe ainda estamos da
perfeição e muitas ruínas antigas ainda se têm que abater, até que não
restem mais vestígios da barbaria. Poderão acaso essas ruínas
sustentar-se contra a força irresistível do progresso, contra essa força
viva que é, em si mesma, uma lei da Natureza? Sendo a geração atual
mais adiantada do que a anterior, por que não o será mais do que a
presente a que lhe há de suceder? Sê-lo-á, pela força das coisas.
Primeiro, porque, com as gerações, todos os dias se extinguem alguns
campeões dos velhos abusos, o que permite à sociedade formar-se de
elementos novos, livres dos velhos preconceitos. Em segundo lugar,
porque, desejando o progresso, o homem estuda os obstáculos e se aplica a
removê-los. Desde que é incontestável o movimento progressivo, não há
que duvidar do progresso vindouro. O homem quer ser feliz e é natural
esse desejo. Ora, buscando progredir, o que ele procura é aumentar a
soma da sua felicidade, sem o que o progresso careceria de objeto. Em
que consistiria para ele o progresso, se lhe não devesse melhorar a
posição? Quando, porém, conseguir a soma de gozos que o progresso
intelectual lhe pode proporcionar, verificará que não está completa a
sua felicidade. Reconhecerá ser esta impossível, sem a segurança nas
relações sociais, segurança que somente no progresso moral lhe será dado
achar. Logo, pela força mesma das coisas, ele próprio dirigirá o
progresso para essa senda e o Espiritismo lhe oferecerá a mais poderosa
alavanca para alcançar tal objetivo.
V
Os que dizem que as crenças espíritas
ameaçam invadir o mundo, proclamam, ipso facto, a força do Espiritismo,
porque jamais poderia tornar-se universal uma idéia sem fundamento e
destituída de lógica. Assim, se o Espiritismo se implanta por toda
parte, se, principalmente nas classes cultas, recruta adeptos, como
todos facilmente reconhecerão, é que tem um fundo de verdade. Baldados,
contra essa tendência, serão todos os esforços dos seus detratores e a
prova é que o próprio ridículo, de que procuram cobri-lo, longe de lhe
amortecer o ímpeto, parece ter-lhe dado novo vigor, resultado que
plenamente justifica o que repetidas vezes os Espíritos hão dito: “Não
vos inquieteis com a oposição; tudo o que contra vós fizerem se tornará a
vosso favor e os vossos maiores adversários, sem o quererem, servirão à
vossa causa. Contra a vontade de Deus não poderá prevalecer a má
vontade dos homens.” Por meio do Espiritismo, a Humanidade tem que
entrar numa nova fase, a do progresso moral que lhe é consequência
inevitável. Não mais, pois, vos espanteis da rapidez com que as idéias
espíritas se propagam. A causa dessa celeridade reside na satisfação que
trazem a todos os que as aprofundam e que nelas veem alguma coisa mais
do que fútil passatempo. Ora, como cada um o que acima de tudo quer é a
sua felicidade, nada há de surpreendente em que cada um se apegue a uma
idéia que faz ditosos os que a esposam. Três períodos distintos
apresenta o desenvolvimento dessas idéias: primeiro, o da curiosidade,
que a singularidade dos fenômenos produzidos desperta; segundo, o do
raciocínio e da filosofia; terceiro, o da aplicação e das consequências.
O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco. Uma vez
satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece com o que desafia a
meditação séria e o raciocínio. Começou o segundo período, o terceiro
virá inevitavelmente. O Espiritismo progrediu principalmente depois que
foi sendo mais bem compreendido na sua essência íntima, depois que lhe
perceberam o alcance, porque tange a corda mais sensível do homem: a da
sua felicidade, mesmo neste mundo. Aí a causa da sua propagação, o
segredo da força que o fará triunfar. Enquanto a sua influência não
atinge as massas, ele vai felicitando os que o compreendem. Mesmo os que
nenhum fenômeno têm testemunhado, dizem: à parte esses fenômenos, há a
filosofia, que me explica o que NENHUMA OUTRA me havia explicado. Nela
encontro, por meio unicamente do raciocínio, uma solução racional para
os problemas que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá
calma, firmeza, confiança; livra-me do tormento da incerteza. Ao lado de
tudo isto, secundária se torna a questão dos fatos materiais. Quereis,
vós todos que o atacais, um meio de combatê-lo com êxito? Aqui o tendes.
Substituí-o por alguma coisa melhor; indicai solução MAIS FILOSÓFICA
para todas as questões que ele resolveu; dai ao homem OUTRA CERTEZA que o
faça mais feliz, porém compreendei bem o alcance desta palavra certeza,
porquanto o homem não aceita, como certo, senão o que lhe parece
lógico. Não vos contenteis com dizer: isto não é assim; demasiado fácil é
semelhante afirmativa. Provai, não por negação, mas por fatos, que isto
não é real, nunca o foi e NÃO PODE ser. Se não é, dizei o que o é, em
seu lugar. Provai, finalmente, que as consequências do Espiritismo não
são tornar melhor o homem e, portanto, mais feliz, pela prática da mais
pura moral evangélica, moral a que se tecem muitos louvores, mas que
muito pouco se pratica. Quando houverdes feito isso, tereis o direito de
o atacar. O Espiritismo é forte porque assenta sobre as próprias bases
da religião: Deus, a alma, as penas e as recompensas futuras; sobretudo,
porque mostra que essas penas e recompensas são corolários naturais da
vida terrestre e, ainda, porque, no quadro que apresenta do futuro, nada
há que a razão mais exigente possa recusar. Que compensação ofereceis
aos sofrimentos deste mundo, vós cuja doutrina consiste unicamente na
negação do futuro? Enquanto vos apoiais na incredulidade, ele se apoia
na confiança em Deus; ao passo que convida os homens à felicidade, à
esperança, à verdadeira fraternidade, vós lhes ofereceis o nada por
perspectiva e o egoísmo por consolação. Ele tudo explica, vós nada
explicais. Ele prova pelos fatos, vós nada provais. Como quereis que se
hesite entre as duas doutrinas?
VI
Falsíssima idéia formaria do Espiritismo
quem julgasse que a sua força lhe vem da prática das manifestações
materiais e que, portanto, obstando-se a tais manifestações, se lhe terá
minado a base. Sua força está na sua filosofia, no apelo que dirige à
razão, ao bom-senso. Na antiguidade, era objeto de estudos misteriosos,
que cuidadosamente se ocultavam do vulgo. Hoje, para ninguém tem
segredos. Fala uma linguagem clara, sem ambiguidades. Nada há nele de
místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer
ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se
que os homens conheçam a verdade. Longe de se opor à difusão da luz,
deseja-a para todo o mundo. Não reclama crença cega; quer que o homem
saiba por que crê. Apoiando-se na razão, será sempre mais forte do que
os que se apoiam no nada. Os obstáculos que tentassem oferecer à
liberdade das manifestações poderiam pôr-lhe fim? Não, porque
produziriam o efeito de todas as perseguições: o de excitar a
curiosidade e o desejo de conhecer o que foi proibido. De outro lado, se
as manifestações espíritas fossem privilégio de um único homem, sem
dúvida que, segregado esse homem, as manifestações cessariam.
Infelizmente para os seus adversários, elas estão ao alcance de toda
gente e todos a elas recorrem, desde o mais pequenino até o mais
graduado, desde o palácio até a mansarda. Poderão proibir que sejam
obtidas em público. Sabe-se, porém, precisamente que em público não é
onde melhor se dão e sim na intimidade. Ora, podendo todos ser médiuns,
quem poderá impedir que uma família, no seu lar; um indivíduo, no
silêncio de seu gabinete; o prisioneiro, no seu cubículo, entrem em
comunicação com os Espíritos, a despeito dos esbirros e mesmo na
presença deles? Se as proibirem num país, poderão obstar a que se
verifiquem nos países vizinhos, no mundo inteiro, uma vez que nos dois
hemisférios não há lugar onde não existam médiuns? Para se encarcerarem
todos os médiuns, preciso fora que se encarcerasse a metade do gênero
humano. Chegassem mesmo, o que não seria mais fácil, a queimar todos os
livros espíritas e no dia seguinte estariam reproduzidos, porque
inatacável é a fonte donde dimanam e porque ninguém pode encarcerar ou
queimar os Espíritos, seus verdadeiros autores. O Espiritismo não é obra
de um homem. Ninguém pode inculcar-se como seu criador, pois tão antigo
é ele quanto a criação. Encontramo-lo por toda parte, em todas as
religiões, principalmente na religião Católica e aí com mais autoridade
do que em todas as outras, porquanto nela se nos depara o princípio de
tudo que há nele: os Espíritos em todos os graus de elevação, suas
relações ocultas e ostensivas com os homens, os anjos guardiães, a
reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, todos
os gêneros de manifestações, as aparições e até as aparições tangíveis.
Quanto aos demônios, esses não são senão os maus Espíritos e, salvo a
crença de que aqueles foram destinados a permanecer perpetuamente no
mal, ao passo que a senda do progresso se conserva aberta aos segundos,
não há entre uns e outros mais do que simples diferença de nomes. Que
faz a moderna ciência espírita? Reúne em corpo de doutrina o que estava
esparso; explica, com os termos próprios, o que só era dito em linguagem
alegórica; poda o que a superstição e a ignorância engendraram, para só
deixar o que é real e positivo. Esse o seu papel. O de fundadora não
lhe pertence. Mostra o que existe, coordena, porém não cria, por isso
que suas bases são de todos os tempos e de todos os lugares. Quem, pois,
ousaria considerar-se bastante forte para abafá-la com sarcasmos, ou,
ainda, com perseguições? Se a proscreverem de um lado, renascerá noutras
partes, no próprio terreno donde a tenham banido, porque ela está em a
Natureza e ao homem não é dado aniquilar uma força da Natureza, nem opor
veto aos decretos de Deus. Que interesse, ao demais, haveria em
obstar-se a propagação das idéias espíritas? É exato que elas se erguem
contra os abusos que nascem do orgulho e do egoísmo. Mas, se é certo que
desses abusos há quem aproveite, à coletividade humana eles prejudicam.
A coletividade, portanto, será favorável a tais idéias,
contando-se-lhes por adversários sérios apenas os interessados em manter
aqueles abusos. As idéias espíritas, ao contrário, são um penhor de
ordem e tranquilidade, porque, pela sua influência, os homens se tornam
melhores uns para com os outros, menos ávidos das coisas materiais e
mais resignados aos decretos da Providência.
VII
O Espiritismo se apresenta sob três
aspectos diferentes: o das manifestações, o dos princípios e da
filosofia que delas decorrem e o da aplicação desses princípios. Daí,
três classes, ou, antes, três graus de adeptos: 1º os que crêem nas
manifestações e se limitam a comprová-las; para esses, o Espiritismo é
uma ciência experimental; 2º os que lhe percebem as consequências
morais; 3º os que praticam ou se esforçam por praticar essa moral.
Qualquer que seja o ponto de vista, científico ou moral, sob que
considerem esses estranhos fenômenos, todos compreendem constituírem
eles uma ordem, inteiramente nova de idéias, que surge e da qual não
pode deixar de resultar uma profunda modificação no estado da Humanidade
e compreendem igualmente que essa modificação não pode deixar, de
operar-se no sentido do bem. Quanto aos adversários, também podemos
classificá-los em três categorias. 1ª — A dos que negam sistematicamente
tudo o que é novo, ou deles não venha, e que falam sem conhecimento de
causa. A esta classe pertencem todos os que não admitem senão o que
possa ter o testemunho dos sentidos. Nada viram, nada querem ver e ainda
menos aprofundar. Ficariam mesmo aborrecidos se vissem as coisas muito
claramente, porque forçoso lhes seria convir em que não têm razão. Para
eles, o Espiritismo é uma quimera, uma loucura, uma utopia, não existe:
está dito tudo. São os incrédulos de caso pensado. Ao lado desses, podem
colocar-se os que não se dignam de dar aos fatos a mínima atenção,
sequer por desencargo de consciência, a fim de poderem dizer: Quis ver e
nada vi. Não compreendem que seja preciso mais de meia hora para alguém
se inteirar de uma ciência. 2ª — A dos que, sabendo muito bem o que
pensar da realidade dos fatos, os combatem, todavia, por motivos de
interesse pessoal. Para estes, o Espiritismo existe, mas lhe receiam as
consequências. Atacam-no como a um inimigo. 3ª — A dos que acham na
moral espírita uma censura por demais severa aos seus atos ou às suas
tendências. Tomado ao sério, o Espiritismo os embaraçaria; não o
rejeitam, nem o aprovam: preferem fechar os olhos. Os primeiros são
movidos pelo orgulho e pela presunção; os segundos, pela ambição; os
terceiros, pelo egoísmo. Concebe-se que, nenhuma solidez tendo, essas
causas de oposição venham a desaparecer com o tempo, pois em vão
procuraríamos uma quarta classe de antagonistas, a dos que em patentes
provas contrárias se apoiassem demonstrando estudo laborioso e porfiado
da questão. Todos apenas opõem a negação, nenhum aduz demonstração séria
e irrefutável. Fora presumir demais da natureza humana supor que ela
possa transformar-se de súbito, por efeito das idéias espíritas. A ação
que estas exercem não é certamente idêntica, nem do mesmo grau, em todos
os que as professam. Mas, o resultado dessa ação, qualquer que seja,
ainda que extremamente fraco, representa sempre uma melhora. Será,
quando menos, o de dar a prova da existência de um mundo extracorpóreo, o
que implica a negação das doutrinas materialistas. Isto deriva da só
observação dos fatos, porém, para os que compreendem o Espiritismo
filosófico e nele veem outra coisa, que não somente fenômenos mais ou
menos curiosos, diversos são os seus efeitos. O primeiro e mais geral
consiste em desenvolver o sentimento religioso até naquele que, sem ser
materialista, olha com absoluta indiferença para as questões
espirituais. Daí lhe advém o desprezo pela morte. Não dizemos o desejo
de morrer; longe disso, porquanto o espírita defenderá sua vida como
qualquer outro, mas uma indiferença que o leva a aceitar, sem queixa,
nem pesar, uma morte inevitável, como coisa mais de alegrar do que de
temer, pela certeza que tem do estado que se lhe segue. O segundo
efeito, quase tão geral quanto o primeiro, é a resignação nas
vicissitudes da vida. O Espiritismo dá a ver as coisas de tão alto, que,
perdendo a vida terrena três quartas partes da sua importância, o homem
não se aflige tanto com as tribulações que a acompanham. Daí, mais
coragem nas aflições, mais moderação nos desejos. Daí, também, o
banimento da idéia de abreviar os dias da existência, por isso que a
ciência espírita ensina que, pelo suicídio, sempre se perde o que se
queria ganhar. A certeza de um futuro, que temos a faculdade de tornar
feliz, a possibilidade de estabelecermos relações com os entes que nos
são caros, oferecem ao espírita suprema consolação. O horizonte se lhe
dilata ao infinito, graças ao espetáculo, a que assiste incessantemente,
da vida de além-túmulo, cujas misteriosas profundezas lhe é facultado
sondar. O terceiro efeito é o de estimular no homem a indulgência para
com os defeitos alheios. Todavia, cumpre dizê-lo, o princípio egoísta e
tudo que dele decorre são o que há de mais tenaz no homem e, por
conseguinte, de mais difícil de desarraigar. Toda gente faz
voluntariamente sacrifícios, contanto que nada custem e de nada privem.
Para a maioria dos homens, o dinheiro tem ainda irresistível atrativo e
bem poucos compreendem a palavra supérfluo, quando de suas pessoas se
trata. Por isso mesmo, a abnegação da personalidade constitui sinal de
grandíssimo progresso.
VIII
Perguntam algumas pessoas: Ensinam os
Espíritos qualquer moral nova, qualquer coisa superior ao que disse o
Cristo? Se a moral deles não é senão a do Evangelho, de que serve o
Espiritismo? Este raciocínio se assemelha notavelmente ao do califa
Omar, com relação à biblioteca de Alexandria: “Se ela não contém, dizia
ele, mais do que o que está no Alcorão, é inútil. Logo deve ser
queimada. Se contém coisa diversa, é nociva. Logo, também deve ser
queimada.” Não, o Espiritismo não traz moral diferente da de Jesus. Mas,
perguntamos, por nossa vez: Antes que viesse o Cristo, não tinham os
homens a lei dada por Deus a Moisés? A doutrina do Cristo não se acha
contida no Decálogo? Dir-se-á, por isso, que a moral de Jesus era
inútil? Perguntaremos, ainda, aos que negam utilidade à moral espírita:
Por que tão pouco praticada é a do Cristo? E por que, exatamente os que
com justiça lhe proclamam a sublimidade, são os primeiros a violar-lhe o
preceito capital: o da caridade universal? Os Espíritos vêm não só
confirmá-la, mas também mostrar-nos a sua utilidade prática. Tornam
inteligíveis e patentes verdades que haviam sido ensinadas sob a forma
alegórica. E, justamente com a moral, trazem-nos a definição dos mais
abstratos problemas da psicologia. Jesus veio mostrar aos homens o
caminho do verdadeiro bem. Por que, tendo-o enviado para fazer lembrada
sua lei que estava esquecida, não havia Deus de enviar hoje os
Espíritos, a fim de a lembrarem novamente aos homens, e com maior
precisão, quando eles a olvidam, para tudo sacrificar ao orgulho e à
cobiça? Quem ousaria pôr limites ao poder de Deus e traçar-lhe normas?
Quem nos diz que, como o afirmam os Espíritos, não estão chegados os
tempos preditos e que não chegamos aos em que verdades mal
compreendidas, ou falsamente interpretadas, devam ser ostensivamente
reveladas ao gênero humano, para lhe apressar o adiantamento? Não haverá
alguma coisa de providencial nessas manifestações que se produzem
simultaneamente em todos os pontos do globo? Não é um único homem, um
profeta quem nos vem advertir. A luz surge por toda parte. É todo um
mundo novo que se desdobra às nossas vistas. Assim como a invenção do
microscópio nos revelou o mundo dos infinitamente pequenos, de que não
suspeitávamos; assim como o telescópio nos revelou milhões de mundos de
cuja existência também não suspeitávamos, as comunicações espíritas nos
revelam o mundo invisível que nos cerca, nos acotovela constantemente e
que, à nossa revelia, toma parte em tudo o que fazemos. Decorrido que
seja mais algum tempo, a existência desse mundo, que nos espera, se
tornará tão incontestável como a do mundo microscópico e dos globos
disseminados pelo espaço. Nada, então, valerá o nos terem feito conhecer
um mundo todo; o nos haverem iniciado nos mistérios da vida de
além-túmulo? É exato que essas descobertas, se se lhes pode dar este
nome, contrariam algum tanto certas idéias aceitas. Mas, não é real que
todas as grandes descobertas científicas hão igualmente modificado,
subvertido até, as mais correntes idéias? E o nosso amor-próprio não
teve que se curvar diante da evidência? O mesmo acontecerá com relação
ao Espiritismo, que, em breve, gozará do direito de cidade entre os
conhecimentos humanos. As comunicações com os seres de além-túmulo deram
em resultado fazer-nos compreender a vida futura, fazer- -nos vê-la,
iniciar-nos no conhecimento das penas e gozos que nos estão reservados,
de acordo com os nossos méritos e, desse modo, encaminhar para o
espiritualismo os que no homem somente viam a matéria, a máquina
organizada. Razão, portanto, tivemos para dizer que o Espiritismo, com
os fatos, matou o materialismo. Fosse este único resultado por ele
produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém,
faz mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente, a
necessidade do bem. Muito maior do que se pensa é, e cresce todos os
dias, o número daqueles em que ele há melhorado os sentimentos,
neutralizado as más tendências e desviado do mal. É que para esses o
futuro deixou de ser coisa imprecisa, simples esperança, por se haver
tornado uma verdade que se compreende e explica, quando se veem e ouvem
os que partiram lamentar-se ou felicitar-se pelo que fizeram na Terra.
Quem disso é testemunha entra a refletir e sente a necessidade de a si
mesmo se conhecer, julgar e emendar.
IX
Os adversários do Espiritismo não se
esqueceram de armar-se contra ele de algumas divergências de opiniões
sobre certos pontos de doutrina. Não é de admirar que, no início de uma
ciência, quando ainda são incompletas as observações e cada um a
considera do seu ponto de vista, apareçam sistemas contraditórios. Mas,
já três quartos desses sistemas caíram diante de um estudo mais
aprofundado, a começar pelo que atribuía todas as comunicações ao
Espírito do mal, como se a Deus fora impossível enviar bons Espíritos
aos homens: doutrina absurda, porque os fatos a desmentem; ímpia, porque
importa na negação do poder e da bondade do Criador. Os Espíritos
sempre disseram que nos não inquietássemos com essas divergências e que a
unidade se estabeleceria. Ora, a unidade já se fez quanto à maioria dos
pontos e as divergências tendem cada vez mais a desaparecer.
Tendo-se-lhes perguntado: Enquanto se não faz a unidade, sobre que pode o
homem, imparcial e desinteressado, basear-se para formar juízo? Eles
responderam: “Nuvem alguma obscurece a luz verdadeiramente pura; o
diamante sem jaça é o que tem mais valor: julgai, pois, dos Espíritos
pela pureza de seus ensinos. Não olvideis que, entre eles, há os que
ainda se não despojaram das idéias que levaram da vida terrena. Sabei
distingui-los pela linguagem de que usam. Julgai-os pelo conjunto do que
vos dizem, vede se há encadeamento lógico nas suas idéias; se nestas
nada revela ignorância, orgulho ou malevolência; em suma, se suas
palavras trazem todos, o cunho de sabedoria que a verdadeira
superioridade manifesta. Se o vosso mundo fosse inacessível ao erro,
seria perfeito, e longe disso se acha ele. Ainda estais aprendendo a
distinguir do erro a verdade. Faltam-vos as lições da experiência para
exercitar o vosso juízo e fazer-vos avançar. A unidade se produzirá do
lado em que o bem jamais esteve de mistura com o mal; desse lado é que
os homens se coligarão pela força mesma das coisas, porquanto
reconhecerão que aí é que está a verdade. Aliás, que importam algumas
dissidências, mais de forma que de fundo! Notai que os princípios
fundamentais são os mesmos por toda parte e vos hão de unir num
pensamento comum: o amor de Deus e a prática do bem. Quaisquer que se
suponham ser o modo de progressão ou as condições normais da existência
futura, o objetivo final é um só: fazer o bem. Ora, não há duas maneiras
de fazê-lo.” Se é certo que, entre os adeptos do Espiritismo, se contam
os que divergem de opinião sobre alguns pontos da teoria, menos certo
não é que todos estão de acordo quanto aos pontos fundamentais. Há,
portanto, unidade, excluí- dos apenas os que, em número muito reduzido,
ainda não admitem a intervenção dos Espíritos nas manifestações; os que
as atribuem a causas puramente físicas, o que é contrário a este axioma:
Todo efeito inteligente há de ter uma causa inteligente; ou ainda a um
reflexo do nosso próprio pensamento, o que os fatos desmentem. Os outros
pontos são secundários e em nada comprometem as bases fundamentais.
Pode, pois, haver escolas que procurem esclarecer-se acerca das partes
ainda controvertidas da ciência; não deve haver seitas rivais umas das
outras. Antagonismo só poderia existir entre os que querem o bem e os
que quisessem ou praticassem o mal. Ora, não há espírita sincero e
compenetrado das grandes máximas morais, ensinadas pelos Espíritos, que
possa querer o mal, nem desejar mal ao seu próximo, sem distinção de
opiniões. Se errônea for alguma destas, cedo ou tarde a luz para ela
brilhará, se a buscar de boa-fé e sem prevenções. Enquanto isso não se
dá, um laço comum existe que as deve unir a todos num só pensamento; uma
só meta para todas. Pouco, por conseguinte, importa qual seja o
caminho, uma vez que conduza a essa meta. Nenhuma deve impor-se por meio
do constrangimento material ou moral e em caminho falso estaria
unicamente aquela que lançasse anátema sobre outra, porque então
procederia evidentemente sob a influência de maus Espíritos. O argumento
supremo deve ser a razão. A moderação garantirá melhor a vitória da
verdade do que as diatribes envenenadas pela inveja e pelo ciúme. Os
bons Espíritos só pregam a união e o amor ao próximo, e nunca um
pensamento malévolo ou contrário à caridade pode provir de fonte pura.
Ouçamos sobre este assunto, e para terminar, os conselhos do Espírito
Santo Agostinho: “Por bem largo tempo, os homens se têm estraçalhado e
anatematizado mutuamente em nome de um Deus de paz e misericórdia,
ofendendo-o com semelhante sacrilégio. O Espiritismo é o laço que um dia
os unirá, porque lhes mostrará onde está a verdade, onde o erro.
Durante muito tempo, porém, ainda haverá escribas e fariseus que o
negarão, como negaram o Cristo. Quereis saber sob a influência de que
Espíritos estão as diversas seitas que entre si fizeram partilha do
mundo? Julgai-o pelas suas obras e pelos seus princípios. Jamais os bons
Espíritos foram os instigadores do mal; jamais aconselharam ou
legitimaram o assassínio e a violência; jamais estimularam os ódios dos
partidos, nem a sede das riquezas e das honras, nem a avidez dos bens da
Terra. Os que são bons, humanitários e benevolentes para com todos,
esses os seus prediletos e prediletos de Jesus, porque seguem a estrada
que este lhes indicou para chegarem até ele.”
SANTO AGOSTINHO
NOTA ESPECIAL Nº l (à 34ª edição, em 1974), a que faz remissão à pág.
51: A definição dada na resposta à questão nº l de O Livro dos Espíritos
– cause première – vem sendo tradicionalmente registrada nas traduções
publicadas pela FEB, ou sob sua licença e responsabilidade, em língua
portuguesa, como causa primária, embora haja quem prefira grafá-la como
causa primeira, solução alternativa para mero caso de semântica. Além da
de Guillon Ribeiro, foram examinadas as traduções das edições
publicadas em 1904 e 1899, bem assim a de Fortúnio – pseudônimo de
Joaquim Carlos Travassos – (B. L. Garnier, Editor, Rio, 1875), que é a
da lª edição em língua portuguesa lançada no Brasil (vide Reformador de
1952, págs. 98/99, e de 1973, págs. 230 e segs.), todas norteadas por
idêntico critério quanto ao detalhe citado. Com os melhores
dicionaristas, no caso, está Domingos de Azevedo, autor do Grande
Dicionário Francês-Português, Livraria Bertrand, Lisboa, 1952, 2º
volume, pág. 1160: “premierière (...) || Fig. La cause première, a causa
primária, Deus.” NOTA ESPECIAL NO 2 (à 34ª edição, em 1974), referida à
pág. 472: Em edições anteriores a esta, as questões nos 1012 a 1019
figuraram sob os nos 1011 a 1018, respectivamente, sem ter sido
atribuído número à questão imediatamente seguinte à de nº 1010,
mantendo-se, não obstante, o texto em sua incolumidade original. O lapso
nasceu, no passado, de compreensível equívoco, pois na sequência da
numeração das questões o Codificador salteou o nº 1011 na 2ª edição
francesa, definitiva, de março de 1860. Todavia, o texto foi mantido
assim, mesmo nas quatorze edições que se seguiram até a desencarnação de
Allan Kardec
Fim
![](iniciacaoEsperita_arquivos/505472.jpg)
Com A EXPLICAÇÃO DAS MÁXIMAS MORAIS DO CRISTO EM CONCORDÂNCIA
COM O ESPIRITISMO E SUAS APLICAÇÕES ÀS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA.
Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão,
em todas as épocas da Humanidade. Tradução de Guillon Ribeiro
Tradução de Guillon Ribeiro
Copyright © 1944 by
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA – FEB
131a edição – 1a impressão (Edição Histórica) – 200 mil exemplares – 1/2013
ISBN 978-85-7328-730-1
Título do original francês:
L’Évangile selon le spiritisme
(Paris, abril 1864)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida,
total ou parcialmente, por quaisquer métodos ou processos, sem autorização do detentor do copyright.
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA – FEB
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70830-030 – Brasília (DF) – Brasil
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Pedidos de livros à FEB – Departamento Editorial
Tel.: (21) 2187 8282 / Fax: (21) 2187 8298
Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Catalogação na fonte
Biblioteca de Obras Raras da FEB
Kardec, Allan, 1804–1869
K18e
O evangelho segundo o espiritismo: com explicações das máximas morais do Cristo
em concordância com o espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida / Allan
Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo
autor em 1866]. – 131. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.
410 p.; 23 cm.
Tradução de: L’Évangile selon le spiritisme
ISBN 978-85-7328-730-1
1. Jesus Cristo – Interpretações espíritas. 2. Espiritismo. I. Federação Espírita Brasileira.
II. Título.
CDD 133.93
CDU 133.7
CDE 00.06.01
Sumário
Sumário
Nota da Editora..........................................................................................11
Explicação..................................................................................................13
Prefácio..................................................................................................... 15
Introdução................................................................................................. 17
I – Objetivo desta obra. II – Autoridade da Doutrina Espírita.
Controle universal do ensino dos Espíritos. III – Notícias históricas.
IV – Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo.
Resumo da doutrina de Sócrates e Platão.
Capítulo I – Não vim destruir a lei......................................................... 41
As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo: 1 a 7. – Aliança da
Ciência e da Religião: 8. – Instruções dos Espíritos: A nova era: 9 a 11.
Capítulo II – Meu Reino não é deste mundo.......................................... 51
A vida futura: 1 a 3. – A realeza de Jesus: 4. – O ponto de vista: 5 a 7.
– Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre: 8.
Capítulo III – Há muitas moradas na casa de meu Pai........................ 57
Diferentes estados da alma na erraticidade: 1 e 2. – Diferentes
categorias de mundos habitados: 3 a 5. – Destinação da Terra.
Causas das misérias humanas: 6 e 7. – Instruções dos Espíritos: Mundos
inferiores e mundos superiores: 8 a 12. – Mundos de expiações e
de provas: 13 a 15. – Mundos regeneradores: 16 a 18. – Progressão
dos mundos: 19.
Capítulo IV – Ninguém poderá ver o Reino de Deus se não nascer
de novo....................................................................................................... 67
Ressurreição e reencarnação: 1 a 17. – A reencarnação fortalece os laços
de família, ao passo que a unicidade da existência os rompe: 18 a 23.
– Instruções dos Espíritos: Limites da encarnação: 24. – Necessidade da
encarnação: 25 e 26.
Capítulo V – Bem-aventurados os aflitos............................................... 79
Justiça das aflições: 1 a 3. – Causas atuais das aflições: 4 e 5. –
Causas anteriores das aflições: 6 a 10. – Esquecimento do passado: 11. –
Motivos de resignação: 12 e 13. – O suicídio e a loucura: 14 a 17. –
Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer: 18. – O mal e o remédio: 19.
– A felicidade não é deste mundo: 20. – Perda de pessoas amadas. Mortes
prematuras: 21. – Se fosse um homem de bem, teria morrido: 22. – Os
tormentos voluntários: 23. – A desgraça real: 24. – A melancolia: 25. –
Provas voluntárias. O verdadeiro cilício: 26. – Dever-se-á pôr termo às
provas do próximo?: 27. – Será lícito abreviar a vida de um doente que
sofra sem esperança de cura?: 28. – Sacrifício da própria vida: 29 e 30.
– Proveito dos sofrimentos para outrem: 31.
Capítulo VI – O Cristo Consolador ...........................................................105
O jugo leve: 1 e 2. – Consolador prometido: 3 e 4. – Instruções dos Espíritos: Advento do Espírito de Verdade: 5 a 8.
Capítulo VII – Bem-aventurados os pobres de espírito............................. 111
O que se deve entender por pobres de espírito: 1 e 2. – Aquele que se
eleva será rebaixado: 3 a 6. – Mistérios ocultos aos doutos e aos
prudentes: 7 a 10. – Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade:
11 e 12. – Missão do homem inteligente na Terra: 13.
Capítulo VIII – Bem-aventurados os que têm puro o coração .............. 123
Simplicidade e pureza de coração: 1 a 4. – Pecado por pensamentos.
Adultério: 5 a 7. – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas: 8 a 10. –
Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a: 11 a 17. –
Instruções dos Espíritos: Deixai que venham a mim as criancinhas: 18 e
19. – Bem-aventurados os que têm fechados os olhos: 20 e 21.
Capítulo IX – Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos............ 135
Injúrias e violências: 1 a 5. – Instruções dos Espíritos: A afabilidade
e a doçura: 6. – A paciência: 7. – Obediência e resignação: 8. – A
cólera: 9 e 10.
Capítulo X – Bem-aventurados os que são misericordiosos................ 141
Perdoai, para que Deus vos perdoe: 1 a 4. – Reconciliação com os
adversários: 5 e 6. – O sacrifício mais agradável a Deus: 7 e 8. – O
argueiro e a trave no olho: 9 e 10. – Não julgueis, para não serdes
julgados. Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado: 11 a 13.
– Instruções dos Espíritos: Perdão das ofensas: 14 e 15. – A
indulgência: 16 a 18. – É permitido repreender os outros, notar as
imperfeições de outrem, divulgar o mal de outrem?: 19 a 21.
Capítulo XI – Amar o próximo como a si mesmo................................. 153
O mandamento maior. Fazermos aos outros o que queiramos que os outros
nos façam. Parábola dos Credores e dos Devedores: 1 a 4. – Dai a César o
que é de César: 5 a 7. – Instruções dos Espíritos: A lei de amor: 8 a
10. – O egoísmo: 11 e 12. – A fé e a caridade: 13. – Caridade para com
os criminosos: 14. – Deve-se expor a vida por um malfeitor?: 15.
Capítulo XII – Amai os vossos inimigos................................................... 165
Retribuir o mal com o bem: 1 a 4. – Os inimigos desencarnados: 5 e 6. –
Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra: 7 e
8. – Instruções dos Espíritos: A vingança: 9. – O ódio: 10. – O duelo:
11 a 16.
Capítulo XIII – Não saiba a vossa mão esquerda o que dê a vossa mão direita........................................................................ ..................................... 177
Fazer o bem sem ostentação: 1 a 3. – Os infortúnios ocultos: 4. – O
óbolo da viúva: 5 e 6. – Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem
esperar retribuição: 7 e 8. – Instruções dos Espíritos: A caridade
material e a caridade moral: 9 e 10. – A beneficência: 11 a 16. – A
piedade: 17. Os órfãos: 18. – Benefícios pagos com a ingratidão: 19. –
Beneficência exclusiva: 20.
Capítulo XIV – Honrai a vosso pai e a vossa mãe .................................. 197
Piedade filial: 1 a 4. – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?: 5 a
7. – A parentela corporal e a parentela espiritual: 8. – Instruções dos
Espíritos: A ingratidão dos filhos e os laços de família: 9.
Capítulo XV – Fora da caridade não há salvação.................................... 207
O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano:
1 a 3. – O mandamento maior: 4 e 5. – Necessidade da caridade, segundo
Paulo: 6 e 7. – Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há
salvação: 8 e 9. – Instruções dos Espíritos: Fora da caridade não há
salvação: 10.
Capítulo XVI – Não se pode servir a Deus e a Mamon ......................... 215
Salvação dos ricos: 1 e 2. – Preservar-se da avareza: 3. – Jesus em
casa de Zaqueu: 4. – Parábola do Mau Rico: 5. – Parábola dos Talentos:
6. – Utilidade providencial da riqueza. Provas da riqueza e da miséria:
7. – Desigualdade das riquezas: 8. – Instruções dos Espíritos: A
verdadeira propriedade: 9 e 10. – Emprego da riqueza: 11 a 13. –
Desprendimento dos bens terrenos: 14. – Transmissão da riqueza: 15.
Capítulo XVII – Sede perfeitos.............................................................. 231
Caracteres da perfeição: 1 e 2. – O homem de bem: 3. – Os bons
espíritas: 4. – Parábola do Semeador: 5 e 6. – Instruções dos Espíritos:
O dever: 7. – A virtude: 8. – Os superiores e os inferiores: 9. – O
homem no mundo: 10. – Cuidar do corpo e do espírito: 11.
Capítulo XVIII – Muitos os chamados, poucos os escolhidos................ 243
Parábola do Festim das Bodas: 1 e 2. – A porta estreita: 3 a 5. – Nem
todos os que dizem: “Senhor! Senhor!” entrarão no Reino dos Céus: 6 a 9.
– Muito se pedirá àquele que muito recebeu: 10 a 12. – Instruções dos
Espíritos: Dar-se-á àquele que tem: 13 a 15. – Pelas suas obras é que se
reconhece o cristão: 16.
Capítulo XIX – A fé transporta montanhas............................................. 253
Poder da fé: 1 a 5. – A fé religiosa. Condição da fé inabalável: 6 e 7.
– Parábola da Figueira que Secou: 8 a 10. – Instruções dos Espíritos: A
fé: mãe da esperança e da caridade: 11. – A fé humana e a divina: 12.
Capítulo XX – Os trabalhadores da última hora..................................... 261
Instruções dos Espíritos: Os últimos serão os primeiros: 1 a 3. – Missão dos espíritas: 4. – Os obreiros do Senhor: 5.
Capítulo XXI – Haverá falsos cristos e falsos profetas........................... 267
Conhece-se a árvore pelo fruto: 1 a 3. – Missão dos profetas: 4. –
Prodígios dos falsos profetas: 5. – Não creais em todos os Espíritos: 6 e
7. – Instruções dos Espíritos: Os falsos profetas: 8. – Caracteres do
verdadeiro profeta: 9. – Os falsos profetas da erraticidade: 10. –
Jeremias e os falsos profetas: 11.
Capítulo XXII – Não separeis o que Deus juntou.................................... 277
Indissolubilidade do casamento: 1 a 4. – O divórcio: 5.
Capítulo XXIII – Estranha moral.............................................................. 281
Odiar os pais: 1 a 3. – Abandonar pai, mãe e filhos: 4 a 6. – Deixar
aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos: 7 e 8. – Não vim trazer a
paz, mas a divisão: 9 a 18.
Capítulo XXIV – Não ponhais a candeia debaixo do alqueire .............. 291
Candeia sob o alqueire. Por que fala Jesus por parábolas: 1 a 7. – Não
vades ter com os gentios: 8 a 10. – Não são os que gozam saúde que
precisam de médico: 11 e 12. – Coragem da fé: 13 a 16. – Carregar sua
cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á: 17 a 19.
Capítulo XXV – Buscai e achareis .......................................................... 299
Capítulo XXVI – Dai gratuitamente o que gratuitamente recebestes 305
Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do
templo: 5 e 6. – Mediunidade gratuita: 7 a 10.
Capítulo XXVI – Dai gratuitamente o que gratuitamente recebestes 305
Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do templo: 5 e 6. – Mediunidade gratuita: 7 a 10.
Capítulo XXVII – Pedi e obtereis............................................................. 311
Qualidades da prece: 1 a 4. – Eficácia da prece: 5 a 8. – Ação da
prece. Transmissão do pensamento: 9 a 15. – Preces inteligíveis: 16 e
17. – Da prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores: 18 a 21. –
Instruções dos Espíritos: Maneira de orar: 22. – Felicidade que a prece
proporciona: 23. ..................
Capítulo XXVIII – Coletânea de preces espíritas................................... 325
Preâmbulo: 1. I – Preces gerais ............................................................. 327
Oração dominical: 2 e 3. – Reuniões espíritas: 4 a 7. – Para os médiuns: 8 a 10. II –
Preces por aquele mesmo que ora .............................................................. 337
Aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores: 11 a 14. – Para afastar
os maus Espíritos: 15 a 17. – Para pedir a corrigenda de um defeito: 18
e 19. – Para pedir a força de resistir a uma tentação: 20 e 21. – Ação
de graças pela vitória alcançada sobre uma tentação: 22 e 23. – Para
pedir um conselho: 24 e 25. – Nas aflições da vida: 26 e 27. – Ação de
graças por um favor obtido: 28 e 29. – Ato de submissão e de resignação:
30 a 33. – Num perigo iminente: 34 e 35. – Ação de graças por haver
escapado a um perigo: 36 e 37. – À hora de dormir: 38 e 39. – Prevendo
próxima a morte: 40 e 41. III –
Preces por outrem .................................................................................. 349
Por alguém que esteja em aflição: 42 e 43. – Ação de graças por um
benefício concedido a outrem: 44 e 45. – Pelos nossos inimigos e pelos
que nos querem mal: 46 e 47. – Ação de graças pelo bem concedido aos
nossos inimigos: 48 e 49. – Pelos inimigos do Espiritismo: 50 a 52. –
Por uma criança que acaba de nascer: 53 a 56. – Por um agonizante: 57 e
58. IV –
Preces pelos que já não são da Terra.................................................... 355
Por alguém que acaba de morrer: 59 a 61. – Pelas pessoas a quem tivemos
afeição: 62 e 63. – Pelas almas sofredoras que pedem preces: 64 a 66. –
Por um inimigo que morreu: 67 e 68. – Por um criminoso: 69 e 70. – Por
um suicida: 71 e 72. – Pelos Espíritos penitentes: 73 e 74. – Pelos
Espíritos endurecidos: 75 e 76. V –
Preces pelos doentes e pelos obsidiados ............................................. 365
Pelos doentes: 77 a 80. – Pelos obsidiados: 81 a 84.
Nota Explicativa ..................................................................................... 371
Índice Geral ......................................................................................... 377
Nota da Editora
A nossa tradução da obra O evangelho segundo o espiritismo foi feita da
3a edição francesa, ou seja, daquela que foi revista, corrigida e
modificada por Allan Kardec (Revue spirite, Notas Bibliográficas, nov.
1865). Encarregou-se dessa tradução o saudoso presidente da Federação
Espírita Brasileira — Dr. Guillon Ribeiro, engenheiro civil, poliglota e
vernaculista. Ruy Barbosa, em seu discurso pronunciado na sessão de 14
de outubro de 1903 (Anais do Senado Federal, vol. II, p. 717),
referindo-se ao seu trabalho de revisão do Projeto do Código Civil,
trabalho monumental que resultou na Réplica, e que lhe imortalizou o
nome como filólogo e purista da língua, disse: Devo, entretanto, Sr.
Presidente, desempenhar-me de um dever de consciência — registrar e
agradecer da tribuna do Senado a colaboração preciosa do Sr. Dr. Guillon
Ribeiro, que me acompanhou nesse trabalho com a maior inteligência, não
limitando os seus serviços à parte material do comum dos revisores,
mas, muitas vezes, suprindo até a desatenções e negligências minhas.
Como vemos, Guillon Ribeiro recebeu, aos 28 anos, o maior prêmio, o
maior elogio a que poderia aspirar um escritor, e a Federação Espírita
Brasileira, vinte anos depois, consagrou-lhe o nome, aprovando
unanimemente as suas impecáveis traduções de Kardec. Jornalista emérito,
Guillon Ribeiro foi redator do Jornal do Comercio e colaborador dos
maiores jornais da época. Exerceu, durante anos, o cargo de
Diretor-geral da Secretaria do Senado e foi Diretor da Federação
Espírita Brasileira, no decurso de 26 anos consecutivos, tendo
traduzido, ainda, O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, A gênese e
Obras póstumas, todos de Allan Kardec.
Explicação
Como é do domínio público, Kardec, ao imprimir a 3a edição do seu livro
— O evangelho segundo o espiritismo —, por ordem dos Espíritos reformou
completamente as edições anteriores, suprimindo inúmeros trechos,
acrescentando outros, alterando a redação de muitos e a numeração de
vários parágrafos, tendo, anteriormente, modificado o próprio título da
obra. A 3a edição francesa ficou, pois, sendo a definitiva e, por isso
mesmo, a Federação Espírita Brasileira, obediente às instruções que os
Espíritos deram a Kardec, e por este aceitas, fez a presente tradução da
referida 3a edição francesa, sobre a qual Kardec escreveu, em Revue
spirite de novembro de 1865, o seguinte: Esta edição foi completamente
refundida. Além de algumas adições, as principais modificações consistem
numa classificação mais metódica, mais clara e mais cô- moda das
matérias, tornando a obra de mais fácil leitura e facilitando igualmente
as consultas.
A Editora
Prefácio
Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso
exército que se movimenta ao receber as ordens do seu comando,
espalham-se por toda a superfície da Terra e, semelhantes a estrelas
cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos aos cegos. Eu vos
digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão
de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as
trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos. As grandes vozes
do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos anjos se lhes
associam. Nós vos convidamos, a vós homens, para o divino concerto.
Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado,
elas se estendam e repercutam de um extremo a outro do Universo. Homens,
irmãos a quem amamos, aqui estamos junto de vós. Amai-vos, também, uns
aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que
está no Céu: Senhor! Senhor!... e podereis entrar no Reino dos Céus.
O Espírito de Verdade
Nota – A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um
tempo o verdadeiro caráter do Espiritismo e a finalidade desta obra; por
isso foi colocada aqui como prefácio.
Introdução
I – Objetivo desta obra
Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos:
os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras
que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o
ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a
última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse
código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os
cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se,
quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu
matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se
originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam
as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria,
elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de
cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui
aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias
da vida privada e da vida pública, o princípio básico de todas as
relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e
acima de tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o
levantamento de uma ponta do véu que nos oculta a vida futura. Essa
parte é a que será objeto exclusivo desta obra. Toda a gente admira a
moral evangélica; todos lhe proclamam a sublimidade e a necessidade;
muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados no que ouviram
dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais.
Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a
compreendem e lhe sabem deduzir as consequências. A razão está, por
muito, na dificuldade que apresenta o entendimento Introdução 18 do
Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, é ininteligível. A
forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem que a
maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como leem as
preces, sem as entender, isto é, sem proveito. Passam-lhes despercebidos
os preceitos morais, disseminados aqui e ali, intercalados na massa das
narrativas. Impossível, então, apanhar-se-lhes o conjunto e tomá-los
para objeto de leitura e meditações especiais. É certo que tratados já
se hão escrito de moral evangélica; mas o arranjo em moderno estilo
literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, lhe
constitui o encanto e a autenticidade. Outro tanto cabe dizer-se das
máximas destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial.
Desde logo, já não passam de aforismos, privados de uma parte do seu
valor e interesse, pela ausência dos acessórios e das circunstâncias em
que foram enunciadas. Para obviar a esses inconvenientes, reunimos,
nesta obra, os artigos que podem compor, a bem dizer, um código de moral
universal, sem distinção de culto. Nas citações, conservamos o que é
útil ao desenvolvimento da ideia, pondo de lado unicamente o que se não
prende ao assunto. Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução
de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez, porém, de nos
atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real para o
caso, grupamos e classificamos metodicamente as máximas, segundo as
respectivas naturezas, de modo que decorram umas das outras, tanto
quanto possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos
versículos permite se recorra à classificação vulgar, quando oportuno.
Esse, entretanto, seria um trabalho material que, por si só, apenas
teria secundária utilidade. O essencial era pô-lo ao alcance de todos,
mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas
as consequências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as
condições da vida. Foi o que tentamos fazer, com a ajuda dos bons
Espíritos que nos assistem. Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e
dos autores sacros em geral por si sós são ininteligíveis, parecendo
alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o
verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o
puderam reconhecer os que o têm estudado seriamente e como todos, mais
tarde, ainda melhor o reconhecerão.
Introdução
O Espiritismo se nos depara por toda a parte na Antiguidade e nas
diferentes épocas da Humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os
vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por
que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta
luz não menos viva sobre os mistérios do passado. Como complemento de
cada preceito, acrescentamos algumas instruções escolhidas, dentre as
que os Espíritos ditaram em vários países e por diferentes médiuns. Se
elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma
influência pessoal ou a do meio, ao passo que a diversidade de origens
prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a
esse respeito goza de qualquer privilégio.
1 Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos haurir os meios de
conformar com a moral do Cristo o respectivo proceder. Aos espíritas
oferece aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às
relações estabelecidas, doravante e permanentemente, entre os homens e o
mundo invisível, a lei evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a
todas as nações, já não será letra morta, porque cada um a compreenderá
e se verá incessantemente compelido a pô-la em prática, a conselho de
seus guias espirituais. As instruções que promanam dos Espíritos são
verdadeiramente as vozes do Céu que vêm esclarecer os homens e
convidá-los à prática do Evangelho.
II – Autoridade da doutrina espírita
Controle universal do ensino dos Espíritos
Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não
ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido.
Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão
1 Nota de Allan Kardec: Houvéramos, sem dúvida, podido apresentar,
sobre cada assunto, maior número de comunicações obtidas numa porção de
outras cidades e centros, além das que citamos. Tivemos, porém, de
evitar a monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às
que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se enquadravam melhor no plano
desta obra, reservando para publicações ulteriores as que não puderam
caber aqui. Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. Na maioria
dos casos, não os designamos a pedido deles próprios e, assim sendo, não
convinha fazer exceções. Ademais, os nomes dos médiuns nenhum valor
teriam acrescentado à obra dos Espíritos. Mencioná-los mais não fora,
então, do que satisfazer ao amor-próprio, coisa a que os médiuns
verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam. Compreendem eles que,
por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das
comunicações em nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril
envaidecerem-se de um trabalho de inteligência ao qual é apenas mecânico
o concurso que prestam de possuir, com exclusividade, a verdade
absoluta.
Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem,
nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob
palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de
sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as
pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a
congregar todo o mundo. Quis Deus que a nova revelação chegasse aos
homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os
Espíritos de levá-la de um polo a outro, manifestando-se por toda parte,
sem conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem
pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim,
quando milhões de criaturas veem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso
uma garantia para cada um e para todos. Ademais, pode fazer-se que
desapareça um homem; mas não se pode fazer que desapareçam as
coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem queimar os
Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina não
deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na
Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se
nela. Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja
atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir. São, pois, os
próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros
médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os
lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete, por mais favorecido
que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a
classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das
prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao
passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos
os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O
Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum culto
existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode
receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre
seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade.
Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em
vez de apaziguá-las. Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside
a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação.
Ao passo que a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da
imprensa, levaria Introdução 21 séculos para chegar ao conhecimento de
todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os
recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os
aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja
deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas
surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o
malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões
físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos. Não é
essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional
posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os cismas que
pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de
certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas
que traz consigo o remédio, ao lado do mal. Sabe-se que os Espíritos, em
virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de
estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem
a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é
proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem
do que muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e
sofômanos, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por
verdades as suas ideias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais
elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se encontram
despidos das ideias e preconceitos terrenos; mas também é sabido que os
Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não
pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a
tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as
revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho
de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal
ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las
levianamente como verdades absolutas. O primeiro exame comprobativo é,
pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem
exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta
contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados
positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que
seja o nome que traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse
exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas pessoas e
das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões Introdução 22
como juízes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que
não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da
maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve
proceder em face do que digam os Espíritos, que são os primeiros a nos
fornecer os meios de consegui-lo. A concordância no que ensinem os
Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se
dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um
médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É
evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando
com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob
diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na
conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns,
num mesmo Centro, porque podem estar todos sob a mesma influência. Uma
só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que
haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de
grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses
secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina.
Prova a experiência que, quando um princípio novo tem de ser enunciado,
isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo
idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo. Se, portanto, aprouver a
um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas
ideias e com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal
sistema conservar-se-á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas
de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem.
Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que
surgiram na origem do Espiritismo, quando cada um explicava à sua
maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que regem as
relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Essa a base em que
nos apoiamos, quando formulamos um princípio da doutrina. Não é porque
esteja de acordo com as nossas ideias que o temos por verdadeiro. Não
nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a ninguém
dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos.” A
nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião
pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto Introdução 23 não nos
considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque
um princípio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas
porque recebeu a sanção da concordância. Na posição em que nos
encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas
sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em
condições de observar sobre que princípio se estabelece a concordância.
Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em
novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando
atentamente as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro,
reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações, que ele tende a
entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um passo
para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas,
hão frequentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram.
Outros julgaram-se os únicos a possuí-las. Tomadas insuladamente, elas,
para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime
gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade,
cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse
movimento geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos
nossos guias espirituais, é que nos auxilia a julgar da oportunidade de
fazermos ou não alguma coisa. Essa verificação universal constitui uma
garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias
contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da
verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O livro dos
espíritos e em O livro dos médiuns foi que em toda a parte todos
receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros
contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê-la,
já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de todas as
concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do
naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não
deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. É que tiveram o
apoio dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também
sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as ideias que,
emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a
prova desse confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.
Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro
em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com intenção hostil,
Introdução 24 objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência
suscitasse comunica- ções apócrifas; que influência poderiam exercer
tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos?
É com a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em
seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a
distância que vai da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os
argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas, quando milhões de
vozes amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos
do Universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já
não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras
publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo? Qual a que
nem lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse
ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou
consigo, sem contar com os Espíritos. O princípio da concordância é
também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o
Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito
próprio e acomodá-lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu
providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de
que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão
cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade. De tudo
isso ressalta uma verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à
corrente de ideias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar
uma pequena perturbação local e momentânea; nunca, porém, dominar o
conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro. Também
ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda
não elucidados da Doutrina não constituirão lei, enquanto essas
instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte,
ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de esclarecimento.
Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se
julgue conveniente publicá-las, importa não as apresentar senão como
opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre
de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de
apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser
acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida. Introdução 25 Com
extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações.
Não atacam as grandes questões da Doutrina senão gradualmente, à medida
que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais
elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à emissão de uma
ideia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo, e tudo
ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos,
que querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo
pretender adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada
coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu
concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, a
tudo respondem; daí vem que, sobre todas as questões prematuras, há
sempre respostas contraditórias. Os princípios acima não resultam de uma
teoria pessoal: são consequência forçada das condições em que os
Espíritos se manifestam. É evidente que, se um Espírito diz uma coisa de
um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a
presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o
único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria
tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os
Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem suficientemente
esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto;
declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se
aguarde a confirmação. Por grande, bela e justa que seja uma ideia,
impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as opiniões.
Os conflitos que daí decorrem são consequência inevitável do movimento
que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e
convém se produzam desde logo, para que as ideias falsas prontamente
sejam postas de lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem
qualquer temor podem ficar perfeitamente tranquilos: todas as pretensões
insuladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do enorme e
poderoso critério da concordância universal. Não será à opinião de um
homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não
será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará a ortodoxia
espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem quer que
seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a
Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial Introdução 26 da
Doutrina Espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a
sua lei assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por
fundamento a cabeça frágil de um só. Diante de tão poderoso areópago,
onde não se conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem
nações, é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições,
todas as pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós
mesmos, se quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas
nossas próprias ideias. Só Ele decidirá todas as questões litigiosas,
imporá silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante
desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de
um homem ou de um Espírito? menos do que a gota de água que se perde no
oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa. A opinião
universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância.
Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma destas é verdadeira,
apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não pode
prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as
individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o
orgulho humano. Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não
passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar
todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão
recebido a missão de se fazer ouvir, para congregar os homens sob a
mesma bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado.
Enquanto isso se não dá, aquele que flutua entre dois sistemas opostos
pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a
indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos,
nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de
qual dos dois sistemas prevalecerá.
III – Notícias históricas
Para bem se compreenderem algumas passagens dos Evangelhos, necessário
se faz conhecer o valor de muitas palavras nelas frequentemente
empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia
naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras
foram com frequência mal interpretadas, causando isso uma espécie de
incerteza. A inteligência da significação delas explica, ademais, o
verdadeiro sentido de certas máximas que, à primeira vista, parecem
singulares. Introdução 27 Samaritanos. – Após o cisma das dez tribos,
Samaria se constituiu a capital do reino dissidente de Israel. Destruída
e reconstruída várias vezes, tornou-se, sob os romanos, a cabeça da
Samaria, uma das quatro divisões da Palestina. Herodes, chamado o
Grande, a embelezou de suntuosos monumentos e, para lisonjear Augusto,
lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste. Os samaritanos estiveram
quase constantemente em guerra com os reis de Judá. Aversão profunda,
datando da época da separação, perpetuou-se entre os dois povos, que
evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a
cisão e não terem de vir a Jerusalém pela celebração das festas
religiosas, construíram para si um templo particular e adotaram algumas
reformas. Somente admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e
rejeitavam todos os outros livros que a esse foram posteriormente
anexados. Seus livros sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da
mais alta antiguidade. Para os judeus ortodoxos, eles eram heréticos e,
portanto, desprezados, anatematizados e perseguidos. O antagonismo das
duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das opiniões
religiosas; se bem fosse a mesma a origem das crenças de uma e outra.
Eram os protestantes desse tempo. Ainda hoje se encontram samaritanos em
algumas regiões do Levante, particularmente em Nablus e em Jaffa.
Observam a lei de Moisés com mais rigor que os outros judeus e só entre
si contraem alianças. Nazarenos. – Nome dado, na antiga lei, aos judeus
que faziam voto, perpétuo ou temporário, de guardar perfeita pureza.
Eles se comprometiam a observar a castidade, a abster-se de bebidas
alcoólicas e a conservar a cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram
nazarenos. Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros
cristãos, por alusão a Jesus de Nazaré. Também foi essa a denominação de
uma seita herética dos primeiros séculos da Era Cristã, a qual, do
mesmo modo que os ebionitas, de quem adotava certos princípios,
misturava as práticas do mosaísmo com os dogmas cristãos, seita essa que
desapareceu no século quarto. Publicanos. – Eram assim chamados, na
antiga Roma, os cavalheiros arrendatários das taxas públicas, incumbidos
da cobrança dos impostos e das rendas de toda espécie, quer em Roma
mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os arrendatários
gerais e arrematadores de taxas do Introdução 28 antigo regímen na
França e que ainda existem nalgumas regiões. Os riscos a que estavam
sujeitos faziam que os olhos se fechassem para as riquezas que muitas
vezes adquiriam e que, da parte de alguns, eram frutos de exações e de
lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu mais tarde a todos
os que superintendiam os dinheiros públicos e aos agentes subalternos.
Hoje esse termo se emprega em sentido pejorativo, para designar os
financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz-se por
vezes: “Ávido como um publicano, rico como um publicano”, com referência
a riquezas de mau quilate. De toda a dominação romana, o imposto foi o
que os judeus mais dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou
entre eles. Daí nasceram várias revoltas, fazendo-se do caso uma questão
religiosa, por ser considerada contrária à Lei. Constituiu-se, mesmo,
um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá, apelidado o
Gaulonita, tendo por princípio o não pagamento do imposto. Os judeus,
pois, abominavam o imposto e, como consequência, todos os que eram
encarregados de arrecadá-lo, donde a aversão que votavam aos publicanos
de todas as categorias, entre os quais podiam encontrar-se pessoas muito
estimáveis, mas que, em virtude das suas funções, eram desprezadas,
assim como os que com elas mantinham relações, os quais se viam
atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque consideravam um
comprometimento ter com eles intimidade. Portageiros. – Eram os
arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente da cobrança
dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais ou
menos à dos empregados de alfândega e recebedores dos direitos de
barreira. Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em
geral. Essa a razão por que, no Evangelho, se depara frequentemente com a
palavra publicano ao lado da expressão gente de má vida. Tal
qualificação não implicava a de debochados ou vagabundos. Era um termo
de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente indigna de
conviver com pessoas distintas. Fariseus (do hebreu parush, divisão,
separação). – A tradição constituía parte importante da teologia dos
judeus. Consistia numa compilação das interpretações sucessivamente
dadas ao sentido das Escrituras e tornadas artigos de dogma. Constituía,
entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das
vezes sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das
disputas teológicas e das sutilezas Introdução 29 da escolástica da
Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada uma das quais
pretendia ter o monopólio da verdade, detestando-se umas às outras, como
sói acontecer. Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus,
que teve por chefe Hillel, 2 doutor judeu nascido na Babilônia,
fundador de uma escola célebre, onde se ensinava que só se devia
depositar fé nas Escrituras. Sua origem remonta a 180 ou 200 anos antes
de Jesus Cristo. Os fariseus, em diversas épocas, foram perseguidos,
especialmente sob Hircano — soberano pontífice e rei dos judeus —,
Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu
honras e restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo
poderio e o conservaram até a ruína de Jerusalém, no ano 70 da Era
Cristã, época em que se lhes apagou o nome, em consequência da dispersão
dos judeus. Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis
cumpridores das práticas exteriores do culto e das cerimônias; cheios de
um zelo ardente de proselitismo, inimigos dos inovadores, afetavam
grande severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa
devoção, ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo,
excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião mais como meio de
chegarem a seus fins, do que como objeto de fé sincera. Da virtude nada
possuíam, além das exterioridades e da ostentação; entretanto, por umas e
outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam
por santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém.
Acreditavam, ou, pelo menos, fingiam acreditar na Providência, na
imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos
mortos. (Cap. IV, item 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade
e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito, que
vivifica, à letra, que mata, se aplicou, durante toda a sua missão, a
lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encarniçados
inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes
para amotinar contra Ele o povo e eliminá-lo. Escribas. – Nome dado, a
princípio, aos secretários dos reis de Judá e a certos intendentes dos
exércitos judeus. Mais tarde, foi aplicado especialmente aos doutores
que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam 2 N.E. de 1947: Não
confundir esse Hillel que fundou a seita dos fariseus com o seu homônimo
que viveu duzentos anos mais tarde e estabeleceu os princípios
religiosos e sociais de um sistema todo de tolerância e amor, sistema
hoje conhecido por Hilelismo. Introdução 30 para o povo. Faziam causa
comum com os fariseus, de cujos princípios partilhavam, bem como da
antipatia que aqueles votavam aos inovadores. Daí o envolvê-los Jesus na
reprovação que lançava aos fariseus. Sinagoga (do grego synagogê,
assembleia, congregação). – Um único templo havia na Judeia, o de
Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias do
culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas
principais, como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por
ocasião dessas festas é que Jesus também costumava ir lá. As outras
cidades não possuíam templos, mas apenas sinagogas: edifícios onde os
judeus se reuniam aos sábados, para fazer preces públicas, sob a chefia
dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas também se
realizavam leituras dos livros sagrados, seguidas de explicações e
comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por
isso é que Jesus, sem ser sacerdote, ensinava aos sábados nas sinagogas.
Desde a ruína de Jerusalém e a dispersão dos judeus, as sinagogas, nas
cidades por eles habitadas, servem-lhes de templos para a celebração do
culto. Saduceus. – Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes
de Jesus Cristo e cujo nome lhe veio do de Sadoque, seu fundador. Não
criam na imortalidade, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e maus.
Entretanto, criam em Deus; nada, porém, esperando após a morte, só o
serviam tendo em vista recompensas temporais, ao que, segundo eles, se
limitava a Providência divina. Assim pensando, tinham a satisfação dos
sentidos físicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras,
atinham-se ao texto da lei antiga. Não admitiam a tradição, nem
interpretações quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e
simples da Lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como se
vê, os materialistas, os deístas e os sensualistas da época. Seita pouco
numerosa, mas que contava em seu seio importantes personagens e se
tornou um partido político oposto constantemente aos fariseus. Essênios
ou esseus. – Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus
Cristo, ao tempo dos macabeus, e cujos membros, habitando uma espécie de
mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa.
Distinguiam-se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam
o amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na
ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra,
punham em comunhão os seus bens e se entregavam à agricultura.
Introdução 31 Contrários aos saduceus sensuais, que negavam a
imortalidade; aos fariseus de rígidas práticas exteriores e de virtudes
apenas aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que
tornaram antagonistas aquelas duas outras seitas. Pelo gênero de vida
que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os
princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que
Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à
comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se
lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse
respeito se escreveu.3 Terapeutas (do grego therapeutai, formado de
therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus ou curadores). –
Eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos
principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os
essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à
prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na
alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida
solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo
judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas,
considerando-os uma seita do Judaísmo. Eusébio, São Jerônimo e outros
Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem
judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles
representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
IV – Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo
Do fato de haver Jesus conhecido a seita dos essênios, fora errôneo
concluir-se que a sua doutrina hauriu-a ele dessa seita e que, se
houvera vivido noutro meio, teria professado outros princípios. As
grandes ideias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a
verdade sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os
caminhos. Depois, chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de
resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de reuni-los em
corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a ideia, ao
aparecer, encontra espíritos dispostos a aceitá-la. Tal o que se deu com
a ideia cristã, que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos
essênios, tendo por principais precursores Sócrates e Platão. Sócrates,
como o Cristo, nada escreveu, ou, pelo menos, nenhum escrito deixou.
Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por
haver atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima
da hipocrisia e do simulacro das formas; por haver, numa palavra,
combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus, a quem os
fariseus acusavam de estar corrompendo o povo com os ensinamentos que
lhe ministrava, também ele foi acusado, pelos fariseus do seu tempo,
visto que sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da
unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura. Assim como a
doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram seus discípulos,
da de Sócrates só temos conhecimento pelos escritos de seu discípulo
Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo,
para mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo. Aos
que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não pode
haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que
não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo;
que a de Jesus, mais completa e mais depurada do que aquela, nada tem
que perder com a comparação; que a grandeza da missão divina do Cristo
não pode ser diminuída; que, ademais, trata-se de um fato da História,
que a ninguém será possível apagar. O homem há chegado a um ponto em que
a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se acha maduro
bastante para encará-la; tanto pior para os que não ousem abrir os
olhos. Chegou o tempo de se considerarem as coisas de modo amplo e
elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses
de seitas e de castas. Além disso, estas citações provarão que, se
Sócrates e Platão pressentiram a ideia cristã, em seus escritos também
se nos deparam os princípios fundamentais do Espiritismo.
3 Nota de Allan Kardec: A morte de Jesus, supostamente escrita por um
essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi servir de
apoio a uma opinião. Ela traz em si mesma a prova da sua origem moderna.
Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão I.
O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida
aos tipos primordiais das ideias do verdadeiro, do bem e do belo;
separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais ou
menos atormentada pelo desejo de voltar a ele.
Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o
princípio inteligente e o princípio material. É, além disso, a doutrina
da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro
mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do
mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após
a morte. É, finalmente, o gérmen da doutrina dos anjos decaídos. II. A
alma se transvia e perturba, quando se serve do corpo para considerar
qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque se prende
a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo
que, quando contempla a sua própria essência, dirige-se para o que é
puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí ligada,
por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois
que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama
sabedoria. Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as coisas de
modo terra a terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com
justeza, tem de as ver do alto, isto é, do ponto de vista espiritual.
Aquele, pois, que está de posse da verdadeira sabedoria, tem de isolar
do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. É o que ensina o
Espiritismo. (Cap. II, item 5.) III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a
alma se achar mergulhada nessa corrupção, nunca possuiremos o objeto
dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil
obstáculos pela necessidade em que nos achamos de cuidar dele. Ademais,
ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de
mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser
ajuizados, nem por um instante. Todavia se não nos é possível conhecer
puramente coisa alguma enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas
uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a conheceremos após a
morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos então, lícito é
esperá-lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, por nós
mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os verdadeiros
filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo
nenhum, temível. Está aí o princípio das faculdades da alma obscurecidas
por motivo dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades
depois da morte. Trata-se, porém, apenas de almas já depuradas; o mesmo
não se dá com as almas impuras. (O céu e o inferno, 1a Parte, cap. II;
2a Parte, cap. I.) Introdução 34 IV. A alma impura, nesse estado, se
encontra oprimida e se vê de novo arrastada para o mundo visível, pelo
horror do que é invisível e imaterial. Erra, então, diz-se, em torno dos
monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se têm visto tenebrosos
fantasmas, quais devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem
estarem ainda inteiramente puras, que ainda conservam alguma coisa da
forma material, o que faz que a vista humana possa percebê-las. Não são
as almas dos bons; são, porém, as dos maus, que se veem forçadas a vagar
por esses lugares, onde arrastam consigo a pena da primeira vida que
tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites inerentes à forma
material de que se revestiram as reconduzam a um corpo. Então, sem
dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida
constituíam objeto de suas predileções. Não somente o princípio da
reencarnação se acha aí claramente expresso, mas também o estado das
almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o
Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se diz que a
reencarnação num corpo material é consequência da impureza da alma,
enquanto as almas purificadas se encontram isentas de reencarnar. Outra
coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma, que boas
resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos adquiridos,
traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e ideias intuitivas do
que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência lhe marca
um progresso intelectual e moral. (O céu e o inferno, 2a Parte:
Exemplos.) V. Após a nossa morte, o gênio (daïmon, demônio), que nos
fora designado durante a vida, leva-nos a um lugar onde se reúnem todos
os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados. As almas,
depois de haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a
esta vida em múltiplos e longos períodos. É a doutrina dos anjos
guardiães, ou Espíritos protetores, e das reencarnações sucessivas, em
seguida a intervalos mais ou menos longos de erraticidade. VI. Os
demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o laço
que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade em
comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os
deuses entram em comércio e se entretêm com ele, quer durante a vigília,
quer durante o sono. Introdução 35 A palavra daïmon, da qual fizeram o
termo demônio, não era, na Antiguidade, tomada à má parte, como nos
tempos modernos. Não designava exclusivamente seres malfazejos, mas
todos os Espíritos, em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos
superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios
propriamente ditos, que comunicavam diretamente com os homens. Também o
Espiritismo diz que os Espíritos povoam o Espaço; que Deus só se
comunica com os homens por intermédio dos Espíritos puros, que são os
incumbidos de lhes transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam
com eles durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra
demônio, a palavra Espírito e tereis a Doutrina Espírita; ponde a
palavra anjo e tereis a doutrina cristã. VII. A preocupação constante do
filósofo (tal como o compreendiam Sócrates e Platão) é a de tomar o
maior cuidado com a alma, menos pelo que respeita a esta vida, que não
dura mais que um instante, do que tendo em vista a eternidade. Desde que
a alma é imortal, não será prudente viver visando à eternidade? O
Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa. VIII. Se a alma é
imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo igualmente
invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo, decompondo-se, volta à
matéria. Muito importa, no entanto, distinguir bem a alma pura,
verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de ciência e
pensamentos, da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais, que a
impedem de elevar-se para o divino e a retêm nos lugares da sua estada
na Terra. Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os
diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade
de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que
eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova com os inúmeros
exemplos que nos põe sob as vistas. (O céu e o inferno, 2a Parte.) IX.
Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam com a
morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da alma e
dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos, mas
com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranquilamente a
hora da sua partida para o outro mundo. Equivale isso a dizer que o
materialismo, com o proclamar para depois da morte o nada, anula toda
responsabilidade moral ulterior, sendo, Introdução 36 conseguintemente,
um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o
homem que se despojou dos vícios e se enriqueceu de virtudes, pode
esperar com tranquilidade o despertar na outra vida. Por meio de
exemplos, que todos os dias nos apresenta, o Espiritismo mostra quão
penoso é, para o mau, o passar desta à outra vida, a entrada na vida
futura. (O céu e o inferno, 2a Parte, cap. I.) X. O corpo conserva bem
impressos os vestígios dos cuidados de que foi objeto e dos acidentes
que sofreu. Dá-se o mesmo com a alma. Quando despida do corpo, ela
guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas afeições e as
marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim, a maior
desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com a alma
carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, nem Górgias
podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja útil quando
estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que
permanece inabalável é a de que mais vale receber do que cometer uma
injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas de
ser homem de bem. (Colóquios de Sócrates com seus discípulos, na
prisão.) Depara-se-nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela
experiência: o de que a alma não depurada conserva as ideias, as
tendências, o caráter e as paixões que teve na Terra. Não é inteiramente
cristã esta máxima: mais vale receber do que cometer uma injustiça? O
mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura: “Se alguém vos
bater numa face, apresentai-lhe a outra.” (Cap. XII, itens 7 e 8.) XI.
De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da alma
para outro lugar. Se tudo tem de extinguir-se, a morte será como uma
dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de
nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a
passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a
de encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria
examinar de perto os habitantes dessa outra morada e de distinguir lá,
como aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. No
entanto, é tempo de nos separarmos, eu para morrer, vós para viverdes.
(Sócrates aos seus juízes.) Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se
encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que
continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira
que a morte não é nem Introdução 37 uma interrupção, nem a cessação da
vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. Houvessem
Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos
anos mais tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam
falado de outro modo. Não há nisso, entretanto, o que surpreenda, se
considerarmos que as grandes verdades são eternas e que os Espíritos
adiantados hão de tê-las conhecido antes de virem à Terra, para onde as
trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles tempos
bem podem, depois, ter sido dos que secundaram o Cristo na sua missão
divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do
que outros, em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que,
finalmente, pode dar-se façam eles agora parte da plêiade dos Espíritos
encarregados de ensinar aos homens as mesmas verdades. XII. Nunca se
deve retribuir com outra uma injustiça, nem fazer mal a ninguém, seja
qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto, serão os que
admitam esse princípio, e os que se desentenderem a tal respeito nada
mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns aos outros mútuo desprezo.
Não está aí o princípio de caridade, que prescreve não se retribua o
mal com o mal e se perdoe aos inimigos? XIII. É pelos frutos que se
conhece a árvore. Toda ação deve ser qualificada pelo que produz:
qualificá-la de má, quando dela provenha mal; de boa, quando dê origem
ao bem. Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a árvore”, se
encontra muitas vezes repetida textualmente no Evangelho. XIV. A riqueza
é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama a si mesmo,
nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o
que lhe pertence. (Cap. XVI.) XV. As mais belas preces e os mais belos
sacrifícios prazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que faz
esforços por se lhe assemelhar. Grave coisa fora que os deuses
dispensassem mais atenção às nossas oferendas do que à nossa alma; se
tal se desse, poderiam os mais culpados conseguir que eles se lhes
tornassem propícios. Mas não: verdadeiramente justos e retos só o são os
que, por suas palavras e atos, cumprem seus deveres para com os deuses e
para com os homens. (Cap. X, itens 7 e 8.) Introdução 38 XVI. Chamo
homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo do que a alma. O
amor está por toda parte em a Natureza, que nos convida ao exercício da
nossa inteligência; até no movimento dos astros o encontramos. É o amor
que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita e fixa morada
onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o amor que dá paz aos
homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à dor. O amor, que há
de unir os homens por um laço fraternal, é uma consequência dessa teoria
de Platão sobre o amor universal como Lei da Natureza. Tendo dito
Sócrates que “o amor não é nem um deus, nem um mortal, mas um grande
demônio”, isto é, um grande Espírito que preside ao amor universal, essa
proposição lhe foi imputada como crime. XVII. A virtude não pode ser
ensinada; vem por dom de Deus aos que a possuem. É quase a doutrina
cristã sobre a graça; mas se a virtude é um dom de Deus, é um favor e,
então, pode perguntar-se por que não é concedida a todos. Por outro
lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O
Espiritismo é mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a
adquiriu por seus esforços, em existências sucessivas, despojando-se
pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a força que Deus faculta
ao homem de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem. XVIII.
É disposição natural em todos nós a de nos apercebermos muito menos dos
nossos defeitos, do que dos de outrem. Diz o Evangelho: “Vedes a palha
que está no olho do vosso próximo e não vedes a trave que está no
vosso.” (Cap. X, itens 9 e 10.) XIX. Se os médicos são malsucedidos,
tratando da maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem
tratarem da alma. Ora, não se achando o todo em bom estado, impossível é
que uma parte dele passe bem. O Espiritismo fornece a chave das
relações existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage
incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda para a Ciência.
Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta-lhe os
meios de às combater. Quando a Ciência levar em conta a ação do elemento
espiritual na economia, menos frequentes serão os seus maus êxitos.
Introdução 39 XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais
fazem de mal do que de bem. Essa sentença de Sócrates fere a grave
questão da predominância do mal na Terra, questão insolúvel sem o
conhecimento da pluralidade dos mundos e da destinação do planeta
terreno, habitado apenas por uma fra- ção mínima da Humanidade. Somente o
Espiritismo resolve essa questão, que se encontra explanada aqui
adiante, nos capítulos (II, III e IV). XXI. Ajuizado serás, não supondo
que sabes o que ignoras. Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de
que desconhecem até mesmo os primeiros termos. Platão completa esse
pensamento de Sócrates, dizendo: “Tentemos, primeiro, torná-los, se for
possível, mais honestos nas palavras; se não o forem, não nos
preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos de
instruir-nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os
espíritas com relação aos seus contraditores de boa ou má-fé. Revivesse
hoje Platão e acharia as coisas quase como no seu tempo e poderia usar
da mesma linguagem. Também Sócrates toparia criaturas que zombariam da
sua crença nos Espíritos e que o qualificariam de louco, assim como ao
seu discípulo Platão. Foi por haver professado esses princípios que
Sócrates se viu ridiculizado, depois acusado de impiedade e condenado a
beber cicuta. Tão certo é que, levantando contra si os interesses e os
preconceitos que elas ferem, as grandes verdades novas não se podem
firmar sem luta e sem fazer mártires.
capítulo I
Não vim destruir a lei
• As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo
• Aliança da Ciência e da Religião
• Instruções dos Espíritos:
A nova era 1. Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os
profetas; não os vim destruir, mas cumpri-los: porquanto em verdade vos
digo que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo o que se acha na lei
esteja perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único
ponto. (Mateus, 5:17 e 18.)
Moisés
2. Na lei mosaica, há duas partes distintas: a Lei de Deus, promulgada
no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é
invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se
modifica com o tempo. A Lei de Deus está formulada nos dez mandamentos
seguintes:
I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da
servidão. Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros. Não
fareis imagem esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu,
nem embaixo na Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra.
Não os adorareis e não lhes prestareis culto soberano.4
4 N.E. de 1947: Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro
mandamento, e deixa de transcrever as seguintes frases: “...porque eu, o
Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniquidade dos pais nos
filhos, na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e
uso de misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os
meus mandamentos.” (Êxodo, 20:5 e 6.) Nas traduções feitas pelas Igrejas
católica e protestante, essa parte do mandamento foi truncada para
harmonizá-la com a doutrina da encarnação única da alma. Onde está “na
terceira e na quarta gerações”, conforme a tradução Brasileira da
Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a
tradução de Zamenhof (en la tria kaj kvara generacioj), mudaram o texto
para “até a terceira e quarta gerações”.
II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus.
III. Lembrai-vos de santificar o dia do sábado.
IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará.
V. Não mateis.
VI. Não cometais adultério.
VII. Não roubeis.
VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo.
IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo.
X. Não cobiceis a casa do vosso próximo, nem o seu servo, nem a sua
serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe
pertençam.
É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso
mesmo, caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou,
obrigado que se via a conter, pelo temor, um povo de seu natural
turbulento e indisciplinado, no qual tinha ele de combater arraigados
abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão do Egito. Para
imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina,
conforme o fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A
autoridade do homem precisava apoiar-se na autoridade de Deus; mas só a
ideia de um Deus terrível podia impressionar criaturas ignorantes, nas
quais ainda pouco desenvolvidos se encontravam o senso moral e o
sentimento de uma justiça reta. É evidente que aquele que incluíra,
entre os seus mandamentos, este: “Não matareis; não causareis dano ao
vosso próximo”, não poderia contradizer-se, fazendo da exterminação um
dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um
caráter essencialmente transitório.
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Esses textos truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na
Católica de Figueiredo, na Protestante de Almeida e outras, tornam
monstruosa a Justiça divina, pois que filhos, netos, bisnetos,
tetranetos inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais,
avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa de acomodação da Lei à
vida única. O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido
pelas edições recentíssimas a que nos referimos — traduções Brasileira e
de Zamenhof —, que conferem com São Jerônimo, mostra que a Lei ensina
veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na
segunda gerações, como contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito
culpado ainda não reencarnou, mas um pouco mais tarde — na terceira e
quarta gerações — já ele voltou e recebe as consequências de suas
faltas. Assim, o culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida. Logo,
tem-se de excluir a 1a e 2a gerações e expressar “na” 3a e 4a , como
realmente é o original. Achamos conveniente acrescentar aqui esta nota,
para facilitar a compreensão do estudioso que confronte a sua tradução
da Bíblia com a citação do Mestre.
O Cristo
3. Jesus não veio destruir a lei, isto é, a Lei de Deus; veio
cumpri-la, isto é, desenvolvê-la, dar-lhe o verdadeiro sentido e
adaptá-la ao grau de adiantamento dos homens. Por isso é que se nos
depara, nessa lei, o princípio dos deveres para com Deus e para com o
próximo, base da sua doutrina. Quanto às leis de Moisés, propriamente
ditas, Ele, ao contrário, as modificou profundamente, quer na
substância, quer na forma. Combatendo constantemente o abuso das
práticas exteriores e as falsas interpretações, por mais radical reforma
não podia fazê-las passar, do que as reduzindo a esta única prescrição:
“Amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo”, e
acrescentando: aí estão a lei toda e os profetas. Por estas palavras: “O
céu e a Terra não passarão sem que tudo esteja cumprido até o último
iota”, quis dizer Jesus ser necessário que a Lei de Deus tivesse
cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a
sua pureza, com todas as suas ampliações e consequências. Efetivamente,
de que serviria haver sido promulgada aquela lei, se ela devesse
constituir privilégio de alguns homens, ou, ao menos, de um único povo?
Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem distinção nenhuma, são
objeto da mesma solicitude. 4. O papel de Jesus não foi o de um simples
legislador moralista, tendo por exclusiva autoridade a sua palavra.
Cabia-lhe dar cumprimento às profecias que lhe anunciaram o advento; a
autoridade lhe vinha da natureza excepcional do seu Espírito e da sua
missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida não é a
que transcorre na Terra, e sim a que é vivida no Reino dos Céus; viera
ensinar-lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se
reconciliarem com Deus e de pressentirem esses meios na marcha das
coisas por vir, para a realização dos destinos humanos. Entretanto, não
disse tudo, limitando-se, respeito a muitos pontos, a lançar o gérmen de
verdades que, segundo Ele próprio o declarou, ainda não podiam ser
compreendidas. Falou de tudo, mas em termos mais ou menos implícitos.
Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se
fazia Capítulo I 44 que novas ideias e novos conhecimentos lhes
trouxessem a chave indispensável, ideias que, porém, não podiam surgir
antes que o espírito humano houvesse alcançado um certo grau de
madureza. A Ciência tinha de contribuir poderosamente para a eclosão e o
desenvolvimento de tais ideias. Importava, pois, dar à Ciência tempo
para progredir.
O Espiritismo
5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio
de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e
as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra, não mais como
coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem
cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de
fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o domínio
do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o Cristo alude
em muitas circunstâncias e daí vem que muito do que Ele disse permaneceu
ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o
auxílio da qual tudo se explica de modo fácil. 6. A lei do Antigo
Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento
tem-na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da Lei de Deus,
mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do
ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do
Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão
inumerável de intermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo,
formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais
traz o tributo de suas luzes aos homens, para lhes tornar conhecido esse
mundo e a sorte que os espera. 7. Assim como o Cristo disse: “Não vim
destruir a lei, porém cumpri-la”, também o Espiritismo diz: “Não venho
destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução.” Nada ensina em contrário
ao que ensinou o Cristo; mas desenvolve, completa e explica, em termos
claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem
cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a
realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside,
conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o
Reino de Deus na Terra.
Aliança da Ciência e da Religião
8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana:
uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral.
Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem
contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente
estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode
pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se
julgou existir entre essas duas ordens de ideias provém apenas de uma
observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de
outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância.
São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser
completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes
desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser
exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual
e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis
da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e
marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais
desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque
estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a
irresistível lógica dos fatos. A Ciência e a Religião não puderam, até
hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de
vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o
vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço
de união está no conhecimento das leis que regem o universo espiritual e
suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que
regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez
comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé
dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o
materialismo. Mas nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até
serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam
resistir-lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução que neste
momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou
mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar
uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as
consequências: acarretará para as relações sociais inevitáveis Capítulo I
46 modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas
estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é Lei de
Deus.
Instruções dos Espíritos
A nova era
9. Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para
torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O
povo hebreu foi o instrumento de que se serviu Deus para se revelar por
Moisés e pelos profetas, e as vicissitudes por que passou esse povo
destinavam-se a chamar a atenção geral e a fazer cair o véu que ocultava
aos homens a divindade. Os mandamentos de Deus, dados por intermédio de
Moisés, contêm o gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da
Bíblia, porém, restringiam-lhe o sentido, porque, praticada em toda a
sua pureza, não na teriam então compreendido. Mas nem por isso os dez
mandamentos de Deus deixavam de ser um como frontispício brilhante, qual
farol destinado a clarear a estrada que a Humanidade tinha de
percorrer. A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de
adiantamento em que se encontravam os povos que ela se propunha
regenerar, e esses povos, semisselvagens quanto ao aperfeiçoamento da
alma, não teriam compreendido que se pudesse adorar a Deus de outro modo
que não por meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar a um
inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das Artes e das
Ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e
não se houvera convertido sob o império de uma religião inteiramente
espiritual. Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a
que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam
aos sentidos, do mesmo passo que a ideia de Deus lhes falava ao
espírito. O Cristo foi o iniciador da mais pura, da mais sublime moral,
da moral evangélico-cristã, que há de renovar o mundo, aproximar os
homens e torná-los irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a
caridade e o amor do próximo e estabelecer entre os humanos uma
solidariedade comum; de uma perfeita moral, enfim, que há de transformar
a Terra, tornando-a morada de Espíritos superiores aos que hoje a
habitam. É a lei do Não vim destruir a lei 47 progresso, a que a
Natureza está submetida, que se cumpre, e o Espiritismo é a alavanca de
que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance. São chegados os
tempos em que se hão de desenvolver as ideias, para que se realizem os
progressos que estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a mesma
rota que percorreram as ideias de liberdade, suas precursoras. Não se
acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não;
aquelas ideias precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e
discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez isso
conseguido, a beleza e a santidade da moral tocarão os espíritos, que
então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e
descerra as portas da felicidade eterna. Moisés abriu o caminho; Jesus
continuou a obra; o Espiritismo a concluirá. – Um Espírito israelita.
(Mulhouse, 1861.) 10. Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade,
permitiu que o homem visse a verdade varar as trevas. Esse dia foi o do
advento do Cristo. Depois da luz viva, voltaram as trevas. Após
alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente se perdia.
Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos
se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus
fundamentos; reboará o trovão. Sede firmes! O Espiritismo é de ordem
divina, pois que se assenta nas próprias Leis da Natureza, e estai
certos de que tudo o que é de ordem divina tem grande e útil objetivo. O
vosso mundo se perdia; a Ciência, desenvolvida à custa do que é de
ordem moral, mas conduzindo-vos ao bem-estar material, redundava em
proveito do espírito das trevas. Como sabeis, cristãos, o coração e o
amor têm de caminhar unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! passados
que são dezoito séculos e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não
veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos quer salvar. Tudo é fácil
àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. Sim, meus
filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo-lo dizem sobejamente;
dobrai-vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes
derribados, isto é, preparai-vos e não imiteis as virgens loucas, que
foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo. A revolução que se
apresta é antes moral do que material. Os grandes Espíritos, mensageiros
divinos, sopram a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e
ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de
areia; mas sem grãos de areia não existiriam as montanhas. Assim,
Capítulo I 48 pois, que estas palavras — “Somos pequenos” — careçam para
vós de significação. A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho.
Não constrói a formiga o edifício de sua república e imperceptíveis
animálculos não elevam continentes? Começou a nova cruzada. Apóstolos da
paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai e
marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. – Fénelon.
(Poitiers, 1861.) 11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do
Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. A razão disso
encontramo-la na vida desse grande filósofo cristão. Pertence ele à
vigorosa falange dos Pais da Igreja, aos quais deve a cristandade seus
mais sólidos esteios. Como vários outros, foi arrancado ao paganismo, ou
melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando,
entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular
vibração que o fez voltar a si e compreender que a felicidade estava
alhures, que não nos prazeres enervantes e fugitivos; quando, afinal, no
seu caminho de Damasco, também lhe foi dado ouvir a santa voz a
clamar-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, exclamou: “Meu Deus!
Meu Deus! perdoai-me, creio, sou cristão!” E desde então tornou-se um
dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler-se, nas notáveis
confissões que esse eminente Espírito deixou, as características e, ao
mesmo tempo, proféticas palavras que proferiu, depois da morte de Santa
Mônica: Estou convencido de que minha mãe me virá visitar e dar
conselhos, revelando-me o que nos espera na vida futura. Que ensinamento
nessas palavras e que retumbante previsão da doutrina porvindoura! Essa
a razão por que hoje, vendo chegada a hora de divulgar-se a verdade que
ele outrora pressentira, se constituiu seu ardoroso disseminador e, por
assim dizer, se multiplica para responder a todos os que o chamam. –
Erasto, discípulo de Paulo. (Paris, 1863.)
Nota – Dar-se-á venha Santo Agostinho demolir o que edificou?
Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o
que não via como homem. Liberta, sua alma entrevê claridades novas,
compreende o que antes não compreendia. Novas ideias lhe revelaram o
sentido verdadeiro de algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas
de acordo com os conhecimentos que possuía; desde que, porém, uma nova
luz lhe brilhou, pôde apreciá-las mais judiciosamente. Assim é que teve
de abandonar a crença que alimentara nos Espíritos íncubos e súcubos e o
anátema que lançara contra a teoria dos antípodas. Agora que o Não vim
destruir a lei 49 Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele,
sobre alguns pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo,
sem deixar de ser um apóstolo cristão. Pode, sem renegar a sua fé,
constituir-se disseminador do Espiritismo, porque vê cumprir-se o que
fora predito. Proclamando-o, na atualidade, outra coisa não faz senão
conduzir-nos a uma interpretação mais acertada e lógica dos textos. O
mesmo ocorre com outros Espíritos que se encontram em posição análoga.
capítulo II
Meu Reino não é deste mundo
• A vida futura
• A realeza de Jesus
• O ponto de vista
• Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre
1.Pilatos, tendo entrado de novo no palácio e feito vir Jesus à sua
presença, perguntou-lhe: “És o rei dos judeus?” — Respondeu-lhe Jesus:
“Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha
gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus;
mas o meu reino ainda não é aqui.” Disse-lhe então Pilatos: “És, pois,
rei?” — Jesus lhe respondeu: “Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a
este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à
verdade escuta a minha voz.” (João, 18:33, 36 e 37.)
A vida futura
2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que
Ele apresenta, em todas as circunstâncias, como a meta que a Humanidade
irá ter e como devendo constituir objeto das maiores preocupações do
homem na Terra. Todas as suas máximas se reportam a esse grande
princípio. Com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de ser teria a
maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não creem na
vida futura, imaginando que Ele apenas falava na vida presente, não os
compreendem, ou os consideram pueris. Esse dogma pode, portanto, ser
tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos
primeiros lugares à frente desta obra. É que ele tem de ser o ponto de
mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e
se mostra de acordo com a Justiça de Deus.
3. Apenas ideias muito imprecisas tinham os judeus acerca da vida
futura. Acreditavam nos anjos, considerando-os seres privilegiados da
Criação; não sabiam, porém, que os homens podem um dia tornar-se anjos e
partilhar da felicidade destes. Segundo eles, a observância das Leis de
Deus era recompensada com os bens terrenos, com a supremacia da nação a
que pertenciam, com vitórias sobre os seus inimigos. As calamidades
públicas e as derrotas eram o castigo da desobediência àquelas leis.
Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante,
que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. Mais
tarde, Jesus lhe revelou que há outro mundo, onde a Justiça de Deus
segue o seu curso. É esse o mundo que Ele promete aos que cumprem os
mandamentos de Deus e onde os bons acharão sua recompensa. Aí o seu
reino; lá é que Ele se encontra na sua glória e para onde voltaria
quando deixasse a Terra. Jesus, porém, conformando seu ensino com o
estado dos homens de sua época, não julgou conveniente dar-lhes luz
completa, percebendo que eles ficariam deslumbrados, visto que não a
compreenderiam. Limitou-se a, de certo modo, apresentar a vida futura
apenas como um princípio, como uma Lei da Natureza a cuja ação ninguém
pode fugir. Todo cristão, pois, necessariamente crê na vida futura; mas a
ideia que muitos fazem dela é ainda vaga, incompleta e, por isso mesmo,
falsa em diversos pontos. Para grande número de pessoas, não há, a tal
respeito, mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as
dúvidas e mesmo a incredulidade. O Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o
ensino do Cristo, fazendo-o quando os homens já se mostram maduros
bastante para apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura
deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se uma realidade
material, que os fatos demonstram, porquanto são testemunhas oculares
os que a descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias, e
de tal sorte que, além de impossibilitarem qualquer dúvida a esse
propósito, facultam à mais vulgar inteligência a possibilidade de
imaginá-la sob seu verdadeiro aspecto, como toda gente imagina um país
cuja pormenorizada descrição leia. Ora, a descrição da vida futura é tão
circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou
infortunadas, da existência dos que lá se encontram, quais eles próprios
pintam, que cada um, aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si
mesmo que não pode ser de outra forma, porquanto, assim sendo, patente
fica a verdadeira Justiça de Deus.
A realeza de Jesus
4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas também
na Terra não terá Ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o
exercício do poder temporal. Dá-se esse título, por unânime consenso, a
todo aquele que, pelo seu gênio, ascende à primeira plana numa ordem de
ideias quaisquer, a todo aquele que domina o seu século e influi sobre o
progresso da Humanidade. É nesse sentido que se costuma dizer: o rei ou
príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores etc.
Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade,
não revela, muitas vezes, preponderância bem maior do que a que cinge a
coroa real? Imperecível é a primeira, enquanto esta outra é joguete das
vicissitudes; as gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem,
ao passo que, por vezes, amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba
com a vida; a realeza moral se prolonga e mantém o seu poder, governa,
sobretudo, após a morte. Sob esse aspecto não é Jesus mais poderoso rei
do que os potentados da Terra? Razão, pois, lhe assistia para dizer a
Pilatos, conforme disse: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo.”
O ponto de vista
5. A ideia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona
inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes consequências sobre a
moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o
qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento,
na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples
passagem, breve estada num país ingrato. As vicissitudes e tribulações
dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por
sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso.
À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se
abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o
exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. Sabendo temporária e
não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção
presta às preocupações da vida, resultando-lhe daí uma calma de espírito
que tira àquela muito do seu amargor. Pelo simples fato de duvidar da
vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida
terrestre. Sem nenhuma certeza quanto Capítulo II 54 ao porvir, dá tudo
ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra,
torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não
há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram
reais. A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano,
uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja
vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que
lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele,
desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes.
Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar
mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o
rodeia. O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande
importância adquire aos seus olhos. Àquele que se acha no interior de
uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas
posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, e logo
bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. É o que sucede ao que encara
a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto
quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. Percebe então
que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um
montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e
lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem
para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco
tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos
está sempre em razão inversa da fé na vida futura. 6. Se toda a gente
pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto
ninguém mais se ocuparia com as coisas terrenas. Não; o homem,
instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por
pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o
melhor ou o menos mal que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com
um espinho debaixo de sua mão, não a retire, para se não picar. Ora, o
desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo
instinto do progresso e da conservação, que está nas Leis da Natureza.
Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo,
desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na
Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao
presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos
seus insucessos, pensando no destino que o aguarda. Meu Reino não é
deste mundo 55 Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos;
condena, sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma.
Contra tais abusos é que se premunem os que a si próprios aplicam estas
palavras de Jesus: Meu reino não é deste mundo.
Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que
perde sem emoção uma pequena soma. Aquele cujos pensamentos se
concentram na vida terrestre assemelha-se ao pobre que perde tudo o que
possui e se desespera. 7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga
horizontes novos. Em vez dessa visão, acanhada e mesquinha, que o
concentra na vida atual, que faz do instante que vivemos na Terra único e
frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que essa vida
não passa de um elo no harmonioso e magnífico conjunto da obra do
Criador. Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um
mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os
mundos. Faculta assim uma base e uma razão de ser à fraternidade
universal, enquanto a doutrina da criação da alma por ocasião do
nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros todos os seres.
Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que
inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. Esse
conjunto, ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender,
motivo por que Ele reservou para outros tempos o fazê-lo conhecido.
Instruções dos Espíritos
Uma realeza terrestre
8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de
nosso Senhor: “O meu reino não é deste mundo”? O orgulho me perdeu na
Terra. Quem, pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se
eu o não compreendia? Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena?
Nada, absolutamente nada. E, como que para tornar mais terrível a lição,
ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! Rainha entre os homens, como
rainha julguei que penetrasse no Reino dos Céus! Que desilusão! Que
humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi acima
de mim, mas muito acima, homens que eu julgava Capítulo II 56
insignificantes e aos quais desprezava, por não terem sangue nobre! Oh!
como então compreendi a esterilidade das honras e grandezas que com
tanta avidez se requestam na Terra! Para se granjear um lugar neste
reino, são necessárias a abnegação, a humildade, a caridade em toda a
sua celeste prática, a benevolência para com todos. Não se vos pergunta o
que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes, quantas
lágrimas enxugastes. Ó Jesus, Tu o disseste, teu reino não é deste
mundo, porque é preciso sofrer para chegar ao céu, de onde os degraus de
um trono a ninguém aproximam. A ele só conduzem as veredas mais penosas
da vida. Procurai-lhe, pois, o caminho, através das urzes e dos
espinhos, não por entre as flores. Correm os homens por alcançar os bens
terrestres, como se os houvessem de guardar para sempre. Aqui, porém,
todas as ilusões se somem. Cedo se apercebem eles de que apenas
apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens reais e duradouros, os
únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que lhes podem
facultar acesso a esta. Compadecei-vos dos que não ganharam o Reino dos
Céus; ajudai-os com as vossas preces, porquanto a prece aproxima do
Altíssimo o homem; é o traço de união entre o céu e a Terra: não o
esqueçais. – Uma Rainha de França. (Havre, 1863.)
capítulo III
Há muitas moradas na casa de meu Pai
• Diferentes estados da alma na erraticidade
• Diferentes categorias de mundos habitados
• Destinação da Terra. Causas das misérias humanas
• Instruções dos Espíritos: Mundos inferiores e mundos superiores –
Mundos de expiações e de provas – Mundos regeneradores – Progressão dos
mundos
1Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Há
muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já Eu vo-lo teria
dito, pois me vou para vos preparar o lugar. Depois que me tenha ido e
que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a
fim de que onde Eu estiver, também vós aí estejais. (João, 14:1 a 3.)
O EVANGELHO
SEGUNDO O ESPIRITISMO
Com A EXPLICAÇÃO DAS MÁXIMAS MORAIS DO CRISTO EM CONCORDÂNCIA
COM O ESPIRITISMO E SUAS APLICAÇÕES ÀS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA.
Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão,
em todas as épocas da Humanidade. Tradução de Guillon Ribeiro
Tradução de Guillon Ribeiro
Copyright © 1944 by
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA – FEB
131a edição – 1a impressão (Edição Histórica) – 200 mil exemplares – 1/2013
ISBN 978-85-7328-730-1
Título do original francês:
L’Évangile selon le spiritisme
(Paris, abril 1864)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida,
total ou parcialmente, por quaisquer métodos ou processos, sem autorização do detentor do copyright.
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Pedidos de livros à FEB – Departamento Editorial
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Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Catalogação na fonte
Biblioteca de Obras Raras da FEB
Kardec, Allan, 1804–1869
K18e
O evangelho segundo o espiritismo: com explicações das máximas morais do Cristo
em concordância com o espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida / Allan
Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo
autor em 1866]. – 131. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.
410 p.; 23 cm.
Tradução de: L’Évangile selon le spiritisme
ISBN 978-85-7328-730-1
1. Jesus Cristo – Interpretações espíritas. 2. Espiritismo. I. Federação Espírita Brasileira.
II. Título.
CDD 133.93
CDU 133.7
CDE 00.06.01
Sumário
Sumário
Nota da Editora..........................................................................................11
Explicação..................................................................................................13
Prefácio..................................................................................................... 15
Introdução................................................................................................. 17
I – Objetivo desta obra. II – Autoridade da Doutrina Espírita.
Controle universal do ensino dos Espíritos. III – Notícias históricas.
IV – Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo.
Resumo da doutrina de Sócrates e Platão.
Capítulo I – Não vim destruir a lei......................................................... 41
As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo: 1 a 7. – Aliança da
Ciência e da Religião: 8. – Instruções dos Espíritos: A nova era: 9 a 11.
Capítulo II – Meu Reino não é deste mundo.......................................... 51
A vida futura: 1 a 3. – A realeza de Jesus: 4. – O ponto de vista: 5 a 7.
– Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre: 8.
Capítulo III – Há muitas moradas na casa de meu Pai........................ 57
Diferentes estados da alma na erraticidade: 1 e 2. – Diferentes
categorias de mundos habitados: 3 a 5. – Destinação da Terra.
Causas das misérias humanas: 6 e 7. – Instruções dos Espíritos: Mundos
inferiores e mundos superiores: 8 a 12. – Mundos de expiações e
de provas: 13 a 15. – Mundos regeneradores: 16 a 18. – Progressão
dos mundos: 19.
Capítulo IV – Ninguém poderá ver o Reino de Deus se não nascer
de novo....................................................................................................... 67
Ressurreição e reencarnação: 1 a 17. – A reencarnação fortalece os laços
de família, ao passo que a unicidade da existência os rompe: 18 a 23.
– Instruções dos Espíritos: Limites da encarnação: 24. – Necessidade da
encarnação: 25 e 26.
Capítulo V – Bem-aventurados os aflitos............................................... 79
Justiça das aflições: 1 a 3. – Causas atuais das aflições: 4 e 5. –
Causas anteriores das aflições: 6 a 10. – Esquecimento do passado: 11. –
Motivos de resignação: 12 e 13. – O suicídio e a loucura: 14 a 17. –
Instruções dos Espíritos: Bem e mal sofrer: 18. – O mal e o remédio: 19.
– A felicidade não é deste mundo: 20. – Perda de pessoas amadas. Mortes
prematuras: 21. – Se fosse um homem de bem, teria morrido: 22. – Os
tormentos voluntários: 23. – A desgraça real: 24. – A melancolia: 25. –
Provas voluntárias. O verdadeiro cilício: 26. – Dever-se-á pôr termo às
provas do próximo?: 27. – Será lícito abreviar a vida de um doente que
sofra sem esperança de cura?: 28. – Sacrifício da própria vida: 29 e 30.
– Proveito dos sofrimentos para outrem: 31.
Capítulo VI – O Cristo Consolador ...........................................................105
O jugo leve: 1 e 2. – Consolador prometido: 3 e 4. – Instruções dos Espíritos: Advento do Espírito de Verdade: 5 a 8.
Capítulo VII – Bem-aventurados os pobres de espírito............................. 111
O que se deve entender por pobres de espírito: 1 e 2. – Aquele que se
eleva será rebaixado: 3 a 6. – Mistérios ocultos aos doutos e aos
prudentes: 7 a 10. – Instruções dos Espíritos: O orgulho e a humildade:
11 e 12. – Missão do homem inteligente na Terra: 13.
Capítulo VIII – Bem-aventurados os que têm puro o coração .............. 123
Simplicidade e pureza de coração: 1 a 4. – Pecado por pensamentos.
Adultério: 5 a 7. – Verdadeira pureza. Mãos não lavadas: 8 a 10. –
Escândalos. Se a vossa mão é motivo de escândalo, cortai-a: 11 a 17. –
Instruções dos Espíritos: Deixai que venham a mim as criancinhas: 18 e
19. – Bem-aventurados os que têm fechados os olhos: 20 e 21.
Capítulo IX – Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos............ 135
Injúrias e violências: 1 a 5. – Instruções dos Espíritos: A afabilidade
e a doçura: 6. – A paciência: 7. – Obediência e resignação: 8. – A
cólera: 9 e 10.
Capítulo X – Bem-aventurados os que são misericordiosos................ 141
Perdoai, para que Deus vos perdoe: 1 a 4. – Reconciliação com os
adversários: 5 e 6. – O sacrifício mais agradável a Deus: 7 e 8. – O
argueiro e a trave no olho: 9 e 10. – Não julgueis, para não serdes
julgados. Atire a primeira pedra aquele que estiver sem pecado: 11 a 13.
– Instruções dos Espíritos: Perdão das ofensas: 14 e 15. – A
indulgência: 16 a 18. – É permitido repreender os outros, notar as
imperfeições de outrem, divulgar o mal de outrem?: 19 a 21.
Capítulo XI – Amar o próximo como a si mesmo................................. 153
O mandamento maior. Fazermos aos outros o que queiramos que os outros
nos façam. Parábola dos Credores e dos Devedores: 1 a 4. – Dai a César o
que é de César: 5 a 7. – Instruções dos Espíritos: A lei de amor: 8 a
10. – O egoísmo: 11 e 12. – A fé e a caridade: 13. – Caridade para com
os criminosos: 14. – Deve-se expor a vida por um malfeitor?: 15.
Capítulo XII – Amai os vossos inimigos................................................... 165
Retribuir o mal com o bem: 1 a 4. – Os inimigos desencarnados: 5 e 6. –
Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra: 7 e
8. – Instruções dos Espíritos: A vingança: 9. – O ódio: 10. – O duelo:
11 a 16.
Capítulo XIII – Não saiba a vossa mão esquerda o que dê a vossa mão direita........................................................................ ..................................... 177
Fazer o bem sem ostentação: 1 a 3. – Os infortúnios ocultos: 4. – O
óbolo da viúva: 5 e 6. – Convidar os pobres e os estropiados. Dar sem
esperar retribuição: 7 e 8. – Instruções dos Espíritos: A caridade
material e a caridade moral: 9 e 10. – A beneficência: 11 a 16. – A
piedade: 17. Os órfãos: 18. – Benefícios pagos com a ingratidão: 19. –
Beneficência exclusiva: 20.
Capítulo XIV – Honrai a vosso pai e a vossa mãe .................................. 197
Piedade filial: 1 a 4. – Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?: 5 a
7. – A parentela corporal e a parentela espiritual: 8. – Instruções dos
Espíritos: A ingratidão dos filhos e os laços de família: 9.
Capítulo XV – Fora da caridade não há salvação.................................... 207
O de que precisa o Espírito para ser salvo. Parábola do Bom Samaritano:
1 a 3. – O mandamento maior: 4 e 5. – Necessidade da caridade, segundo
Paulo: 6 e 7. – Fora da Igreja não há salvação. Fora da verdade não há
salvação: 8 e 9. – Instruções dos Espíritos: Fora da caridade não há
salvação: 10.
Capítulo XVI – Não se pode servir a Deus e a Mamon ......................... 215
Salvação dos ricos: 1 e 2. – Preservar-se da avareza: 3. – Jesus em
casa de Zaqueu: 4. – Parábola do Mau Rico: 5. – Parábola dos Talentos:
6. – Utilidade providencial da riqueza. Provas da riqueza e da miséria:
7. – Desigualdade das riquezas: 8. – Instruções dos Espíritos: A
verdadeira propriedade: 9 e 10. – Emprego da riqueza: 11 a 13. –
Desprendimento dos bens terrenos: 14. – Transmissão da riqueza: 15.
Capítulo XVII – Sede perfeitos.............................................................. 231
Caracteres da perfeição: 1 e 2. – O homem de bem: 3. – Os bons
espíritas: 4. – Parábola do Semeador: 5 e 6. – Instruções dos Espíritos:
O dever: 7. – A virtude: 8. – Os superiores e os inferiores: 9. – O
homem no mundo: 10. – Cuidar do corpo e do espírito: 11.
Capítulo XVIII – Muitos os chamados, poucos os escolhidos................ 243
Parábola do Festim das Bodas: 1 e 2. – A porta estreita: 3 a 5. – Nem
todos os que dizem: “Senhor! Senhor!” entrarão no Reino dos Céus: 6 a 9.
– Muito se pedirá àquele que muito recebeu: 10 a 12. – Instruções dos
Espíritos: Dar-se-á àquele que tem: 13 a 15. – Pelas suas obras é que se
reconhece o cristão: 16.
Capítulo XIX – A fé transporta montanhas............................................. 253
Poder da fé: 1 a 5. – A fé religiosa. Condição da fé inabalável: 6 e 7.
– Parábola da Figueira que Secou: 8 a 10. – Instruções dos Espíritos: A
fé: mãe da esperança e da caridade: 11. – A fé humana e a divina: 12.
Capítulo XX – Os trabalhadores da última hora..................................... 261
Instruções dos Espíritos: Os últimos serão os primeiros: 1 a 3. – Missão dos espíritas: 4. – Os obreiros do Senhor: 5.
Capítulo XXI – Haverá falsos cristos e falsos profetas........................... 267
Conhece-se a árvore pelo fruto: 1 a 3. – Missão dos profetas: 4. –
Prodígios dos falsos profetas: 5. – Não creais em todos os Espíritos: 6 e
7. – Instruções dos Espíritos: Os falsos profetas: 8. – Caracteres do
verdadeiro profeta: 9. – Os falsos profetas da erraticidade: 10. –
Jeremias e os falsos profetas: 11.
Capítulo XXII – Não separeis o que Deus juntou.................................... 277
Indissolubilidade do casamento: 1 a 4. – O divórcio: 5.
Capítulo XXIII – Estranha moral.............................................................. 281
Odiar os pais: 1 a 3. – Abandonar pai, mãe e filhos: 4 a 6. – Deixar
aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos: 7 e 8. – Não vim trazer a
paz, mas a divisão: 9 a 18.
Capítulo XXIV – Não ponhais a candeia debaixo do alqueire .............. 291
Candeia sob o alqueire. Por que fala Jesus por parábolas: 1 a 7. – Não
vades ter com os gentios: 8 a 10. – Não são os que gozam saúde que
precisam de médico: 11 e 12. – Coragem da fé: 13 a 16. – Carregar sua
cruz. Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á: 17 a 19.
Capítulo XXV – Buscai e achareis .......................................................... 299
Capítulo XXVI – Dai gratuitamente o que gratuitamente recebestes 305
Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do
templo: 5 e 6. – Mediunidade gratuita: 7 a 10.
Capítulo XXVI – Dai gratuitamente o que gratuitamente recebestes 305
Dom de curar: 1 e 2. – Preces pagas: 3 e 4. – Mercadores expulsos do templo: 5 e 6. – Mediunidade gratuita: 7 a 10.
Capítulo XXVII – Pedi e obtereis............................................................. 311
Qualidades da prece: 1 a 4. – Eficácia da prece: 5 a 8. – Ação da
prece. Transmissão do pensamento: 9 a 15. – Preces inteligíveis: 16 e
17. – Da prece pelos mortos e pelos Espíritos sofredores: 18 a 21. –
Instruções dos Espíritos: Maneira de orar: 22. – Felicidade que a prece
proporciona: 23. ..................
Capítulo XXVIII – Coletânea de preces espíritas................................... 325
Preâmbulo: 1. I – Preces gerais ............................................................. 327
Oração dominical: 2 e 3. – Reuniões espíritas: 4 a 7. – Para os médiuns: 8 a 10. II –
Preces por aquele mesmo que ora .............................................................. 337
Aos anjos guardiães e aos Espíritos protetores: 11 a 14. – Para afastar
os maus Espíritos: 15 a 17. – Para pedir a corrigenda de um defeito: 18
e 19. – Para pedir a força de resistir a uma tentação: 20 e 21. – Ação
de graças pela vitória alcançada sobre uma tentação: 22 e 23. – Para
pedir um conselho: 24 e 25. – Nas aflições da vida: 26 e 27. – Ação de
graças por um favor obtido: 28 e 29. – Ato de submissão e de resignação:
30 a 33. – Num perigo iminente: 34 e 35. – Ação de graças por haver
escapado a um perigo: 36 e 37. – À hora de dormir: 38 e 39. – Prevendo
próxima a morte: 40 e 41. III –
Preces por outrem .................................................................................. 349
Por alguém que esteja em aflição: 42 e 43. – Ação de graças por um
benefício concedido a outrem: 44 e 45. – Pelos nossos inimigos e pelos
que nos querem mal: 46 e 47. – Ação de graças pelo bem concedido aos
nossos inimigos: 48 e 49. – Pelos inimigos do Espiritismo: 50 a 52. –
Por uma criança que acaba de nascer: 53 a 56. – Por um agonizante: 57 e
58. IV –
Preces pelos que já não são da Terra.................................................... 355
Por alguém que acaba de morrer: 59 a 61. – Pelas pessoas a quem tivemos
afeição: 62 e 63. – Pelas almas sofredoras que pedem preces: 64 a 66. –
Por um inimigo que morreu: 67 e 68. – Por um criminoso: 69 e 70. – Por
um suicida: 71 e 72. – Pelos Espíritos penitentes: 73 e 74. – Pelos
Espíritos endurecidos: 75 e 76. V –
Preces pelos doentes e pelos obsidiados ............................................. 365
Pelos doentes: 77 a 80. – Pelos obsidiados: 81 a 84.
Nota Explicativa ..................................................................................... 371
Índice Geral ......................................................................................... 377
Nota da Editora
A nossa tradução da obra O evangelho segundo o espiritismo foi feita da
3a edição francesa, ou seja, daquela que foi revista, corrigida e
modificada por Allan Kardec (Revue spirite, Notas Bibliográficas, nov.
1865). Encarregou-se dessa tradução o saudoso presidente da Federação
Espírita Brasileira — Dr. Guillon Ribeiro, engenheiro civil, poliglota e
vernaculista. Ruy Barbosa, em seu discurso pronunciado na sessão de 14
de outubro de 1903 (Anais do Senado Federal, vol. II, p. 717),
referindo-se ao seu trabalho de revisão do Projeto do Código Civil,
trabalho monumental que resultou na Réplica, e que lhe imortalizou o
nome como filólogo e purista da língua, disse: Devo, entretanto, Sr.
Presidente, desempenhar-me de um dever de consciência — registrar e
agradecer da tribuna do Senado a colaboração preciosa do Sr. Dr. Guillon
Ribeiro, que me acompanhou nesse trabalho com a maior inteligência, não
limitando os seus serviços à parte material do comum dos revisores,
mas, muitas vezes, suprindo até a desatenções e negligências minhas.
Como vemos, Guillon Ribeiro recebeu, aos 28 anos, o maior prêmio, o
maior elogio a que poderia aspirar um escritor, e a Federação Espírita
Brasileira, vinte anos depois, consagrou-lhe o nome, aprovando
unanimemente as suas impecáveis traduções de Kardec. Jornalista emérito,
Guillon Ribeiro foi redator do Jornal do Comercio e colaborador dos
maiores jornais da época. Exerceu, durante anos, o cargo de
Diretor-geral da Secretaria do Senado e foi Diretor da Federação
Espírita Brasileira, no decurso de 26 anos consecutivos, tendo
traduzido, ainda, O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, A gênese e
Obras póstumas, todos de Allan Kardec.
Explicação
Como é do domínio público, Kardec, ao imprimir a 3a edição do seu livro
— O evangelho segundo o espiritismo —, por ordem dos Espíritos reformou
completamente as edições anteriores, suprimindo inúmeros trechos,
acrescentando outros, alterando a redação de muitos e a numeração de
vários parágrafos, tendo, anteriormente, modificado o próprio título da
obra. A 3a edição francesa ficou, pois, sendo a definitiva e, por isso
mesmo, a Federação Espírita Brasileira, obediente às instruções que os
Espíritos deram a Kardec, e por este aceitas, fez a presente tradução da
referida 3a edição francesa, sobre a qual Kardec escreveu, em Revue
spirite de novembro de 1865, o seguinte: Esta edição foi completamente
refundida. Além de algumas adições, as principais modificações consistem
numa classificação mais metódica, mais clara e mais cô- moda das
matérias, tornando a obra de mais fácil leitura e facilitando igualmente
as consultas.
A Editora
Prefácio
Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos Céus, qual imenso
exército que se movimenta ao receber as ordens do seu comando,
espalham-se por toda a superfície da Terra e, semelhantes a estrelas
cadentes, vêm iluminar os caminhos e abrir os olhos aos cegos. Eu vos
digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão
de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as
trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos. As grandes vozes
do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos anjos se lhes
associam. Nós vos convidamos, a vós homens, para o divino concerto.
Tomai da lira, fazei uníssonas vossas vozes, e que, num hino sagrado,
elas se estendam e repercutam de um extremo a outro do Universo. Homens,
irmãos a quem amamos, aqui estamos junto de vós. Amai-vos, também, uns
aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que
está no Céu: Senhor! Senhor!... e podereis entrar no Reino dos Céus.
O Espírito de Verdade
Nota – A instrução acima, transmitida por via mediúnica, resume a um
tempo o verdadeiro caráter do Espiritismo e a finalidade desta obra; por
isso foi colocada aqui como prefácio.
Introdução
I – Objetivo desta obra
Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos:
os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras
que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o
ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a
última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse
código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os
cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se,
quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu
matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se
originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam
as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria,
elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de
cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui
aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias
da vida privada e da vida pública, o princípio básico de todas as
relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e
acima de tudo, o roteiro infalível para a felicidade vindoura, o
levantamento de uma ponta do véu que nos oculta a vida futura. Essa
parte é a que será objeto exclusivo desta obra. Toda a gente admira a
moral evangélica; todos lhe proclamam a sublimidade e a necessidade;
muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados no que ouviram
dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais.
Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a
compreendem e lhe sabem deduzir as consequências. A razão está, por
muito, na dificuldade que apresenta o entendimento Introdução 18 do
Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, é ininteligível. A
forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem que a
maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como leem as
preces, sem as entender, isto é, sem proveito. Passam-lhes despercebidos
os preceitos morais, disseminados aqui e ali, intercalados na massa das
narrativas. Impossível, então, apanhar-se-lhes o conjunto e tomá-los
para objeto de leitura e meditações especiais. É certo que tratados já
se hão escrito de moral evangélica; mas o arranjo em moderno estilo
literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, lhe
constitui o encanto e a autenticidade. Outro tanto cabe dizer-se das
máximas destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial.
Desde logo, já não passam de aforismos, privados de uma parte do seu
valor e interesse, pela ausência dos acessórios e das circunstâncias em
que foram enunciadas. Para obviar a esses inconvenientes, reunimos,
nesta obra, os artigos que podem compor, a bem dizer, um código de moral
universal, sem distinção de culto. Nas citações, conservamos o que é
útil ao desenvolvimento da ideia, pondo de lado unicamente o que se não
prende ao assunto. Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução
de Sacy, assim como a divisão em versículos. Em vez, porém, de nos
atermos a uma ordem cronológica impossível e sem vantagem real para o
caso, grupamos e classificamos metodicamente as máximas, segundo as
respectivas naturezas, de modo que decorram umas das outras, tanto
quanto possível. A indicação dos números de ordem dos capítulos e dos
versículos permite se recorra à classificação vulgar, quando oportuno.
Esse, entretanto, seria um trabalho material que, por si só, apenas
teria secundária utilidade. O essencial era pô-lo ao alcance de todos,
mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas
as consequências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as
condições da vida. Foi o que tentamos fazer, com a ajuda dos bons
Espíritos que nos assistem. Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e
dos autores sacros em geral por si sós são ininteligíveis, parecendo
alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o
verdadeiro sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o
puderam reconhecer os que o têm estudado seriamente e como todos, mais
tarde, ainda melhor o reconhecerão.
Introdução
O Espiritismo se nos depara por toda a parte na Antiguidade e nas
diferentes épocas da Humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os
vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por
que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta
luz não menos viva sobre os mistérios do passado. Como complemento de
cada preceito, acrescentamos algumas instruções escolhidas, dentre as
que os Espíritos ditaram em vários países e por diferentes médiuns. Se
elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma
influência pessoal ou a do meio, ao passo que a diversidade de origens
prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a
esse respeito goza de qualquer privilégio.
1 Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos haurir os meios de
conformar com a moral do Cristo o respectivo proceder. Aos espíritas
oferece aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às
relações estabelecidas, doravante e permanentemente, entre os homens e o
mundo invisível, a lei evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a
todas as nações, já não será letra morta, porque cada um a compreenderá
e se verá incessantemente compelido a pô-la em prática, a conselho de
seus guias espirituais. As instruções que promanam dos Espíritos são
verdadeiramente as vozes do Céu que vêm esclarecer os homens e
convidá-los à prática do Evangelho.
II – Autoridade da doutrina espírita
Controle universal do ensino dos Espíritos
Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não
ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido.
Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão
1 Nota de Allan Kardec: Houvéramos, sem dúvida, podido apresentar,
sobre cada assunto, maior número de comunicações obtidas numa porção de
outras cidades e centros, além das que citamos. Tivemos, porém, de
evitar a monotonia das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às
que, tanto pelo fundo quanto pela forma, se enquadravam melhor no plano
desta obra, reservando para publicações ulteriores as que não puderam
caber aqui. Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. Na maioria
dos casos, não os designamos a pedido deles próprios e, assim sendo, não
convinha fazer exceções. Ademais, os nomes dos médiuns nenhum valor
teriam acrescentado à obra dos Espíritos. Mencioná-los mais não fora,
então, do que satisfazer ao amor-próprio, coisa a que os médiuns
verdadeiramente sérios nenhuma importância ligam. Compreendem eles que,
por ser meramente passivo o papel que lhes toca, o valor das
comunicações em nada lhes exalça o mérito pessoal; e que seria pueril
envaidecerem-se de um trabalho de inteligência ao qual é apenas mecânico
o concurso que prestam de possuir, com exclusividade, a verdade
absoluta.
Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem,
nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob
palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de
sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as
pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a
congregar todo o mundo. Quis Deus que a nova revelação chegasse aos
homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os
Espíritos de levá-la de um polo a outro, manifestando-se por toda parte,
sem conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem
pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim,
quando milhões de criaturas veem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso
uma garantia para cada um e para todos. Ademais, pode fazer-se que
desapareça um homem; mas não se pode fazer que desapareçam as
coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem queimar os
Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina não
deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na
Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se
nela. Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja
atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir. São, pois, os
próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros
médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os
lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete, por mais favorecido
que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que fosse a
classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das
prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao
passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos
os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O
Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum culto
existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode
receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre
seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade.
Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em
vez de apaziguá-las. Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside
a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação.
Ao passo que a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da
imprensa, levaria Introdução 21 séculos para chegar ao conhecimento de
todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os
recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os
aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja
deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas
surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o
malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões
físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos. Não é
essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional
posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os cismas que
pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de
certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas
que traz consigo o remédio, ao lado do mal. Sabe-se que os Espíritos, em
virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de
estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem
a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é
proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem
do que muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e
sofômanos, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por
verdades as suas ideias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais
elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se encontram
despidos das ideias e preconceitos terrenos; mas também é sabido que os
Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não
pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a
tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as
revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho
de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal
ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las
levianamente como verdades absolutas. O primeiro exame comprobativo é,
pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem
exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta
contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados
positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que
seja o nome que traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse
exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas pessoas e
das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões Introdução 22
como juízes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que
não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da
maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve
proceder em face do que digam os Espíritos, que são os primeiros a nos
fornecer os meios de consegui-lo. A concordância no que ensinem os
Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se
dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um
médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É
evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando
com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob
diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na
conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns,
num mesmo Centro, porque podem estar todos sob a mesma influência. Uma
só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que
haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de
grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses
secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina.
Prova a experiência que, quando um princípio novo tem de ser enunciado,
isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo
idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo. Se, portanto, aprouver a
um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas
ideias e com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal
sistema conservar-se-á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas
de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem.
Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que
surgiram na origem do Espiritismo, quando cada um explicava à sua
maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que regem as
relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Essa a base em que
nos apoiamos, quando formulamos um princípio da doutrina. Não é porque
esteja de acordo com as nossas ideias que o temos por verdadeiro. Não
nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a ninguém
dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos.” A
nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião
pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto Introdução 23 não nos
considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque
um princípio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas
porque recebeu a sanção da concordância. Na posição em que nos
encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas
sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em
condições de observar sobre que princípio se estabelece a concordância.
Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em
novos campos que o Espiritismo terá de explorar. Porque, estudando
atentamente as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro,
reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações, que ele tende a
entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um passo
para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas,
hão frequentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram.
Outros julgaram-se os únicos a possuí-las. Tomadas insuladamente, elas,
para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime
gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade,
cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse
movimento geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos
nossos guias espirituais, é que nos auxilia a julgar da oportunidade de
fazermos ou não alguma coisa. Essa verificação universal constitui uma
garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias
contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da
verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O livro dos
espíritos e em O livro dos médiuns foi que em toda a parte todos
receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros
contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê-la,
já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de todas as
concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do
naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não
deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. É que tiveram o
apoio dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também
sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as ideias que,
emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a
prova desse confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.
Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro
em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com intenção hostil,
Introdução 24 objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência
suscitasse comunica- ções apócrifas; que influência poderiam exercer
tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos?
É com a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em
seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a
distância que vai da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os
argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas, quando milhões de
vozes amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos
do Universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já
não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras
publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo? Qual a que
nem lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse
ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou
consigo, sem contar com os Espíritos. O princípio da concordância é
também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o
Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito
próprio e acomodá-lo à vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu
providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de
que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão
cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade. De tudo
isso ressalta uma verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à
corrente de ideias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar
uma pequena perturbação local e momentânea; nunca, porém, dominar o
conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro. Também
ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda
não elucidados da Doutrina não constituirão lei, enquanto essas
instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte,
ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de esclarecimento.
Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se
julgue conveniente publicá-las, importa não as apresentar senão como
opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre
de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de
apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser
acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida. Introdução 25 Com
extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações.
Não atacam as grandes questões da Doutrina senão gradualmente, à medida
que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais
elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à emissão de uma
ideia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo, e tudo
ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos,
que querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo
pretender adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada
coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu
concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, a
tudo respondem; daí vem que, sobre todas as questões prematuras, há
sempre respostas contraditórias. Os princípios acima não resultam de uma
teoria pessoal: são consequência forçada das condições em que os
Espíritos se manifestam. É evidente que, se um Espírito diz uma coisa de
um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a
presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o
único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria
tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os
Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem suficientemente
esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto;
declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se
aguarde a confirmação. Por grande, bela e justa que seja uma ideia,
impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as opiniões.
Os conflitos que daí decorrem são consequência inevitável do movimento
que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e
convém se produzam desde logo, para que as ideias falsas prontamente
sejam postas de lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem
qualquer temor podem ficar perfeitamente tranquilos: todas as pretensões
insuladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do enorme e
poderoso critério da concordância universal. Não será à opinião de um
homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não
será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará a ortodoxia
espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem quer que
seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a
Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial Introdução 26 da
Doutrina Espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a
sua lei assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por
fundamento a cabeça frágil de um só. Diante de tão poderoso areópago,
onde não se conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem
nações, é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições,
todas as pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós
mesmos, se quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas
nossas próprias ideias. Só Ele decidirá todas as questões litigiosas,
imporá silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante
desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de
um homem ou de um Espírito? menos do que a gota de água que se perde no
oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa. A opinião
universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância.
Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma destas é verdadeira,
apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não pode
prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as
individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o
orgulho humano. Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não
passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar
todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão
recebido a missão de se fazer ouvir, para congregar os homens sob a
mesma bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado.
Enquanto isso se não dá, aquele que flutua entre dois sistemas opostos
pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a
indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos,
nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de
qual dos dois sistemas prevalecerá.
III – Notícias históricas
Para bem se compreenderem algumas passagens dos Evangelhos, necessário
se faz conhecer o valor de muitas palavras nelas frequentemente
empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia
naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras
foram com frequência mal interpretadas, causando isso uma espécie de
incerteza. A inteligência da significação delas explica, ademais, o
verdadeiro sentido de certas máximas que, à primeira vista, parecem
singulares. Introdução 27 Samaritanos. – Após o cisma das dez tribos,
Samaria se constituiu a capital do reino dissidente de Israel. Destruída
e reconstruída várias vezes, tornou-se, sob os romanos, a cabeça da
Samaria, uma das quatro divisões da Palestina. Herodes, chamado o
Grande, a embelezou de suntuosos monumentos e, para lisonjear Augusto,
lhe deu o nome de Augusta, em grego Sebaste. Os samaritanos estiveram
quase constantemente em guerra com os reis de Judá. Aversão profunda,
datando da época da separação, perpetuou-se entre os dois povos, que
evitavam todas as relações recíprocas. Aqueles, para tornarem maior a
cisão e não terem de vir a Jerusalém pela celebração das festas
religiosas, construíram para si um templo particular e adotaram algumas
reformas. Somente admitiam o Pentateuco, que continha a lei de Moisés, e
rejeitavam todos os outros livros que a esse foram posteriormente
anexados. Seus livros sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da
mais alta antiguidade. Para os judeus ortodoxos, eles eram heréticos e,
portanto, desprezados, anatematizados e perseguidos. O antagonismo das
duas nações tinha, pois, por fundamento único a divergência das opiniões
religiosas; se bem fosse a mesma a origem das crenças de uma e outra.
Eram os protestantes desse tempo. Ainda hoje se encontram samaritanos em
algumas regiões do Levante, particularmente em Nablus e em Jaffa.
Observam a lei de Moisés com mais rigor que os outros judeus e só entre
si contraem alianças. Nazarenos. – Nome dado, na antiga lei, aos judeus
que faziam voto, perpétuo ou temporário, de guardar perfeita pureza.
Eles se comprometiam a observar a castidade, a abster-se de bebidas
alcoólicas e a conservar a cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram
nazarenos. Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros
cristãos, por alusão a Jesus de Nazaré. Também foi essa a denominação de
uma seita herética dos primeiros séculos da Era Cristã, a qual, do
mesmo modo que os ebionitas, de quem adotava certos princípios,
misturava as práticas do mosaísmo com os dogmas cristãos, seita essa que
desapareceu no século quarto. Publicanos. – Eram assim chamados, na
antiga Roma, os cavalheiros arrendatários das taxas públicas, incumbidos
da cobrança dos impostos e das rendas de toda espécie, quer em Roma
mesma, quer nas outras partes do Império. Eram como os arrendatários
gerais e arrematadores de taxas do Introdução 28 antigo regímen na
França e que ainda existem nalgumas regiões. Os riscos a que estavam
sujeitos faziam que os olhos se fechassem para as riquezas que muitas
vezes adquiriam e que, da parte de alguns, eram frutos de exações e de
lucros escandalosos. O nome de publicano se estendeu mais tarde a todos
os que superintendiam os dinheiros públicos e aos agentes subalternos.
Hoje esse termo se emprega em sentido pejorativo, para designar os
financistas e os agentes pouco escrupulosos de negócios. Diz-se por
vezes: “Ávido como um publicano, rico como um publicano”, com referência
a riquezas de mau quilate. De toda a dominação romana, o imposto foi o
que os judeus mais dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou
entre eles. Daí nasceram várias revoltas, fazendo-se do caso uma questão
religiosa, por ser considerada contrária à Lei. Constituiu-se, mesmo,
um partido poderoso, a cuja frente se pôs um certo Judá, apelidado o
Gaulonita, tendo por princípio o não pagamento do imposto. Os judeus,
pois, abominavam o imposto e, como consequência, todos os que eram
encarregados de arrecadá-lo, donde a aversão que votavam aos publicanos
de todas as categorias, entre os quais podiam encontrar-se pessoas muito
estimáveis, mas que, em virtude das suas funções, eram desprezadas,
assim como os que com elas mantinham relações, os quais se viam
atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque consideravam um
comprometimento ter com eles intimidade. Portageiros. – Eram os
arrecadadores de baixa categoria, incumbidos principalmente da cobrança
dos direitos de entrada nas cidades. Suas funções correspondiam mais ou
menos à dos empregados de alfândega e recebedores dos direitos de
barreira. Compartilhavam da repulsa que pesava sobre os publicanos em
geral. Essa a razão por que, no Evangelho, se depara frequentemente com a
palavra publicano ao lado da expressão gente de má vida. Tal
qualificação não implicava a de debochados ou vagabundos. Era um termo
de desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente indigna de
conviver com pessoas distintas. Fariseus (do hebreu parush, divisão,
separação). – A tradição constituía parte importante da teologia dos
judeus. Consistia numa compilação das interpretações sucessivamente
dadas ao sentido das Escrituras e tornadas artigos de dogma. Constituía,
entre os doutores, assunto de discussões intermináveis, as mais das
vezes sobre simples questões de palavras ou de formas, no gênero das
disputas teológicas e das sutilezas Introdução 29 da escolástica da
Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada uma das quais
pretendia ter o monopólio da verdade, detestando-se umas às outras, como
sói acontecer. Entre essas seitas, a mais influente era a dos fariseus,
que teve por chefe Hillel, 2 doutor judeu nascido na Babilônia,
fundador de uma escola célebre, onde se ensinava que só se devia
depositar fé nas Escrituras. Sua origem remonta a 180 ou 200 anos antes
de Jesus Cristo. Os fariseus, em diversas épocas, foram perseguidos,
especialmente sob Hircano — soberano pontífice e rei dos judeus —,
Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este último, porém, lhes deferiu
honras e restituiu os bens, de sorte que eles readquiriram o antigo
poderio e o conservaram até a ruína de Jerusalém, no ano 70 da Era
Cristã, época em que se lhes apagou o nome, em consequência da dispersão
dos judeus. Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas. Servis
cumpridores das práticas exteriores do culto e das cerimônias; cheios de
um zelo ardente de proselitismo, inimigos dos inovadores, afetavam
grande severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa
devoção, ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo,
excessiva ânsia de dominação. Tinham a religião mais como meio de
chegarem a seus fins, do que como objeto de fé sincera. Da virtude nada
possuíam, além das exterioridades e da ostentação; entretanto, por umas e
outras, exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos passavam
por santas criaturas. Daí o serem muito poderosos em Jerusalém.
Acreditavam, ou, pelo menos, fingiam acreditar na Providência, na
imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição dos
mortos. (Cap. IV, item 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade
e as qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito, que
vivifica, à letra, que mata, se aplicou, durante toda a sua missão, a
lhes desmascarar a hipocrisia, pelo que tinha neles encarniçados
inimigos. Essa a razão por que se ligaram aos príncipes dos sacerdotes
para amotinar contra Ele o povo e eliminá-lo. Escribas. – Nome dado, a
princípio, aos secretários dos reis de Judá e a certos intendentes dos
exércitos judeus. Mais tarde, foi aplicado especialmente aos doutores
que ensinavam a lei de Moisés e a interpretavam 2 N.E. de 1947: Não
confundir esse Hillel que fundou a seita dos fariseus com o seu homônimo
que viveu duzentos anos mais tarde e estabeleceu os princípios
religiosos e sociais de um sistema todo de tolerância e amor, sistema
hoje conhecido por Hilelismo. Introdução 30 para o povo. Faziam causa
comum com os fariseus, de cujos princípios partilhavam, bem como da
antipatia que aqueles votavam aos inovadores. Daí o envolvê-los Jesus na
reprovação que lançava aos fariseus. Sinagoga (do grego synagogê,
assembleia, congregação). – Um único templo havia na Judeia, o de
Salomão, em Jerusalém, onde se celebravam as grandes cerimônias do
culto. Os judeus, todos os anos, lá iam em peregrinação para as festas
principais, como as da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Por
ocasião dessas festas é que Jesus também costumava ir lá. As outras
cidades não possuíam templos, mas apenas sinagogas: edifícios onde os
judeus se reuniam aos sábados, para fazer preces públicas, sob a chefia
dos anciães, dos escribas, ou doutores da Lei. Nelas também se
realizavam leituras dos livros sagrados, seguidas de explicações e
comentários, atividades das quais qualquer pessoa podia participar. Por
isso é que Jesus, sem ser sacerdote, ensinava aos sábados nas sinagogas.
Desde a ruína de Jerusalém e a dispersão dos judeus, as sinagogas, nas
cidades por eles habitadas, servem-lhes de templos para a celebração do
culto. Saduceus. – Seita judia, que se formou por volta do ano 248 antes
de Jesus Cristo e cujo nome lhe veio do de Sadoque, seu fundador. Não
criam na imortalidade, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e maus.
Entretanto, criam em Deus; nada, porém, esperando após a morte, só o
serviam tendo em vista recompensas temporais, ao que, segundo eles, se
limitava a Providência divina. Assim pensando, tinham a satisfação dos
sentidos físicos por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras,
atinham-se ao texto da lei antiga. Não admitiam a tradição, nem
interpretações quaisquer. Colocavam as boas obras e a observância pura e
simples da Lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como se
vê, os materialistas, os deístas e os sensualistas da época. Seita pouco
numerosa, mas que contava em seu seio importantes personagens e se
tornou um partido político oposto constantemente aos fariseus. Essênios
ou esseus. – Também seita judia fundada cerca do ano 150 antes de Jesus
Cristo, ao tempo dos macabeus, e cujos membros, habitando uma espécie de
mosteiros, formavam entre si uma como associação moral e religiosa.
Distinguiam-se pelos costumes brandos e por austeras virtudes, ensinavam
o amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na
ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra,
punham em comunhão os seus bens e se entregavam à agricultura.
Introdução 31 Contrários aos saduceus sensuais, que negavam a
imortalidade; aos fariseus de rígidas práticas exteriores e de virtudes
apenas aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas querelas que
tornaram antagonistas aquelas duas outras seitas. Pelo gênero de vida
que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os
princípios da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que
Jesus, antes de dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à
comunidade. É certo que ele há de tê-la conhecido, mas nada prova que se
lhe houvesse filiado, sendo, pois, hipotético tudo quanto a esse
respeito se escreveu.3 Terapeutas (do grego therapeutai, formado de
therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus ou curadores). –
Eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos
principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os
essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à
prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na
alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida
solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo
judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas,
considerando-os uma seita do Judaísmo. Eusébio, São Jerônimo e outros
Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem
judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles
representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
IV – Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo
Do fato de haver Jesus conhecido a seita dos essênios, fora errôneo
concluir-se que a sua doutrina hauriu-a ele dessa seita e que, se
houvera vivido noutro meio, teria professado outros princípios. As
grandes ideias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a
verdade sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os
caminhos. Depois, chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de
resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de reuni-los em
corpo de doutrina. Desse modo, não surgindo bruscamente, a ideia, ao
aparecer, encontra espíritos dispostos a aceitá-la. Tal o que se deu com
a ideia cristã, que foi pressentida muitos séculos antes de Jesus e dos
essênios, tendo por principais precursores Sócrates e Platão. Sócrates,
como o Cristo, nada escreveu, ou, pelo menos, nenhum escrito deixou.
Como o Cristo, teve a morte dos criminosos, vítima do fanatismo, por
haver atacado as crenças que encontrara e colocado a virtude real acima
da hipocrisia e do simulacro das formas; por haver, numa palavra,
combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus, a quem os
fariseus acusavam de estar corrompendo o povo com os ensinamentos que
lhe ministrava, também ele foi acusado, pelos fariseus do seu tempo,
visto que sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da
unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura. Assim como a
doutrina de Jesus só a conhecemos pelo que escreveram seus discípulos,
da de Sócrates só temos conhecimento pelos escritos de seu discípulo
Platão. Julgamos conveniente resumir aqui os pontos de maior relevo,
para mostrar a concordância deles com os princípios do Cristianismo. Aos
que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não pode
haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que
não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo;
que a de Jesus, mais completa e mais depurada do que aquela, nada tem
que perder com a comparação; que a grandeza da missão divina do Cristo
não pode ser diminuída; que, ademais, trata-se de um fato da História,
que a ninguém será possível apagar. O homem há chegado a um ponto em que
a luz emerge por si mesma de sob o alqueire. Ele se acha maduro
bastante para encará-la; tanto pior para os que não ousem abrir os
olhos. Chegou o tempo de se considerarem as coisas de modo amplo e
elevado, não mais do ponto de vista mesquinho e acanhado dos interesses
de seitas e de castas. Além disso, estas citações provarão que, se
Sócrates e Platão pressentiram a ideia cristã, em seus escritos também
se nos deparam os princípios fundamentais do Espiritismo.
3 Nota de Allan Kardec: A morte de Jesus, supostamente escrita por um
essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi servir de
apoio a uma opinião. Ela traz em si mesma a prova da sua origem moderna.
Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão I.
O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida
aos tipos primordiais das ideias do verdadeiro, do bem e do belo;
separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais ou
menos atormentada pelo desejo de voltar a ele.
Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o
princípio inteligente e o princípio material. É, além disso, a doutrina
da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro
mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do
mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após
a morte. É, finalmente, o gérmen da doutrina dos anjos decaídos. II. A
alma se transvia e perturba, quando se serve do corpo para considerar
qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse ébria, porque se prende
a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo
que, quando contempla a sua própria essência, dirige-se para o que é
puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí ligada,
por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois
que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama
sabedoria. Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as coisas de
modo terra a terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com
justeza, tem de as ver do alto, isto é, do ponto de vista espiritual.
Aquele, pois, que está de posse da verdadeira sabedoria, tem de isolar
do corpo a alma, para ver com os olhos do Espírito. É o que ensina o
Espiritismo. (Cap. II, item 5.) III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a
alma se achar mergulhada nessa corrupção, nunca possuiremos o objeto
dos nossos desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil
obstáculos pela necessidade em que nos achamos de cuidar dele. Ademais,
ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de
mil tolices, de maneira que, com ele, impossível se nos torna ser
ajuizados, nem por um instante. Todavia se não nos é possível conhecer
puramente coisa alguma enquanto a alma nos está ligada ao corpo, de duas
uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a conheceremos após a
morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos então, lícito é
esperá-lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, por nós
mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os verdadeiros
filósofos se exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo
nenhum, temível. Está aí o princípio das faculdades da alma obscurecidas
por motivo dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades
depois da morte. Trata-se, porém, apenas de almas já depuradas; o mesmo
não se dá com as almas impuras. (O céu e o inferno, 1a Parte, cap. II;
2a Parte, cap. I.) Introdução 34 IV. A alma impura, nesse estado, se
encontra oprimida e se vê de novo arrastada para o mundo visível, pelo
horror do que é invisível e imaterial. Erra, então, diz-se, em torno dos
monumentos e dos túmulos, junto aos quais já se têm visto tenebrosos
fantasmas, quais devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem
estarem ainda inteiramente puras, que ainda conservam alguma coisa da
forma material, o que faz que a vista humana possa percebê-las. Não são
as almas dos bons; são, porém, as dos maus, que se veem forçadas a vagar
por esses lugares, onde arrastam consigo a pena da primeira vida que
tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites inerentes à forma
material de que se revestiram as reconduzam a um corpo. Então, sem
dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida
constituíam objeto de suas predileções. Não somente o princípio da
reencarnação se acha aí claramente expresso, mas também o estado das
almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o
Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se diz que a
reencarnação num corpo material é consequência da impureza da alma,
enquanto as almas purificadas se encontram isentas de reencarnar. Outra
coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma, que boas
resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos adquiridos,
traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e ideias intuitivas do
que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência lhe marca
um progresso intelectual e moral. (O céu e o inferno, 2a Parte:
Exemplos.) V. Após a nossa morte, o gênio (daïmon, demônio), que nos
fora designado durante a vida, leva-nos a um lugar onde se reúnem todos
os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados. As almas,
depois de haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a
esta vida em múltiplos e longos períodos. É a doutrina dos anjos
guardiães, ou Espíritos protetores, e das reencarnações sucessivas, em
seguida a intervalos mais ou menos longos de erraticidade. VI. Os
demônios ocupam o espaço que separa o céu da Terra; constituem o laço
que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a divindade em
comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que os
deuses entram em comércio e se entretêm com ele, quer durante a vigília,
quer durante o sono. Introdução 35 A palavra daïmon, da qual fizeram o
termo demônio, não era, na Antiguidade, tomada à má parte, como nos
tempos modernos. Não designava exclusivamente seres malfazejos, mas
todos os Espíritos, em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos
superiores, chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios
propriamente ditos, que comunicavam diretamente com os homens. Também o
Espiritismo diz que os Espíritos povoam o Espaço; que Deus só se
comunica com os homens por intermédio dos Espíritos puros, que são os
incumbidos de lhes transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam
com eles durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra
demônio, a palavra Espírito e tereis a Doutrina Espírita; ponde a
palavra anjo e tereis a doutrina cristã. VII. A preocupação constante do
filósofo (tal como o compreendiam Sócrates e Platão) é a de tomar o
maior cuidado com a alma, menos pelo que respeita a esta vida, que não
dura mais que um instante, do que tendo em vista a eternidade. Desde que
a alma é imortal, não será prudente viver visando à eternidade? O
Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma coisa. VIII. Se a alma é
imaterial, tem de passar, após essa vida, a um mundo igualmente
invisível e imaterial, do mesmo modo que o corpo, decompondo-se, volta à
matéria. Muito importa, no entanto, distinguir bem a alma pura,
verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de ciência e
pensamentos, da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais, que a
impedem de elevar-se para o divino e a retêm nos lugares da sua estada
na Terra. Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os
diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade
de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que
eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova com os inúmeros
exemplos que nos põe sob as vistas. (O céu e o inferno, 2a Parte.) IX.
Se a morte fosse a dissolução completa do homem, muito ganhariam com a
morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do corpo, da alma e
dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos estranhos, mas
com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar tranquilamente a
hora da sua partida para o outro mundo. Equivale isso a dizer que o
materialismo, com o proclamar para depois da morte o nada, anula toda
responsabilidade moral ulterior, sendo, Introdução 36 conseguintemente,
um incentivo para o mal; que o mau tem tudo a ganhar do nada. Somente o
homem que se despojou dos vícios e se enriqueceu de virtudes, pode
esperar com tranquilidade o despertar na outra vida. Por meio de
exemplos, que todos os dias nos apresenta, o Espiritismo mostra quão
penoso é, para o mau, o passar desta à outra vida, a entrada na vida
futura. (O céu e o inferno, 2a Parte, cap. I.) X. O corpo conserva bem
impressos os vestígios dos cuidados de que foi objeto e dos acidentes
que sofreu. Dá-se o mesmo com a alma. Quando despida do corpo, ela
guarda, evidentes, os traços do seu caráter, de suas afeições e as
marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim, a maior
desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com a alma
carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, nem Górgias
podereis provar que devamos levar outra vida que nos seja útil quando
estejamos do outro lado. De tantas opiniões diversas, a única que
permanece inabalável é a de que mais vale receber do que cometer uma
injustiça e que, acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas de
ser homem de bem. (Colóquios de Sócrates com seus discípulos, na
prisão.) Depara-se-nos aqui outro ponto capital, confirmado hoje pela
experiência: o de que a alma não depurada conserva as ideias, as
tendências, o caráter e as paixões que teve na Terra. Não é inteiramente
cristã esta máxima: mais vale receber do que cometer uma injustiça? O
mesmo pensamento exprimiu Jesus, usando desta figura: “Se alguém vos
bater numa face, apresentai-lhe a outra.” (Cap. XII, itens 7 e 8.) XI.
De duas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou é passagem da alma
para outro lugar. Se tudo tem de extinguir-se, a morte será como uma
dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de
nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada, a
passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a
de encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria
examinar de perto os habitantes dessa outra morada e de distinguir lá,
como aqui, os que são dignos dos que se julgam tais e não o são. No
entanto, é tempo de nos separarmos, eu para morrer, vós para viverdes.
(Sócrates aos seus juízes.) Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se
encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que
continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira
que a morte não é nem Introdução 37 uma interrupção, nem a cessação da
vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade. Houvessem
Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo difundiu quinhentos
anos mais tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não teriam
falado de outro modo. Não há nisso, entretanto, o que surpreenda, se
considerarmos que as grandes verdades são eternas e que os Espíritos
adiantados hão de tê-las conhecido antes de virem à Terra, para onde as
trouxeram; que Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles tempos
bem podem, depois, ter sido dos que secundaram o Cristo na sua missão
divina, escolhidos para esse fim precisamente por se acharem, mais do
que outros, em condições de lhe compreenderem as sublimes lições; que,
finalmente, pode dar-se façam eles agora parte da plêiade dos Espíritos
encarregados de ensinar aos homens as mesmas verdades. XII. Nunca se
deve retribuir com outra uma injustiça, nem fazer mal a ninguém, seja
qual for o dano que nos hajam causado. Poucos, no entanto, serão os que
admitam esse princípio, e os que se desentenderem a tal respeito nada
mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns aos outros mútuo desprezo.
Não está aí o princípio de caridade, que prescreve não se retribua o
mal com o mal e se perdoe aos inimigos? XIII. É pelos frutos que se
conhece a árvore. Toda ação deve ser qualificada pelo que produz:
qualificá-la de má, quando dela provenha mal; de boa, quando dê origem
ao bem. Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a árvore”, se
encontra muitas vezes repetida textualmente no Evangelho. XIV. A riqueza
é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama a si mesmo,
nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o
que lhe pertence. (Cap. XVI.) XV. As mais belas preces e os mais belos
sacrifícios prazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que faz
esforços por se lhe assemelhar. Grave coisa fora que os deuses
dispensassem mais atenção às nossas oferendas do que à nossa alma; se
tal se desse, poderiam os mais culpados conseguir que eles se lhes
tornassem propícios. Mas não: verdadeiramente justos e retos só o são os
que, por suas palavras e atos, cumprem seus deveres para com os deuses e
para com os homens. (Cap. X, itens 7 e 8.) Introdução 38 XVI. Chamo
homem vicioso a esse amante vulgar, que mais ama o corpo do que a alma. O
amor está por toda parte em a Natureza, que nos convida ao exercício da
nossa inteligência; até no movimento dos astros o encontramos. É o amor
que orna a Natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita e fixa morada
onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o amor que dá paz aos
homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à dor. O amor, que há
de unir os homens por um laço fraternal, é uma consequência dessa teoria
de Platão sobre o amor universal como Lei da Natureza. Tendo dito
Sócrates que “o amor não é nem um deus, nem um mortal, mas um grande
demônio”, isto é, um grande Espírito que preside ao amor universal, essa
proposição lhe foi imputada como crime. XVII. A virtude não pode ser
ensinada; vem por dom de Deus aos que a possuem. É quase a doutrina
cristã sobre a graça; mas se a virtude é um dom de Deus, é um favor e,
então, pode perguntar-se por que não é concedida a todos. Por outro
lado, se é um dom, carece de mérito para aquele que a possui. O
Espiritismo é mais explícito, dizendo que aquele que possui a virtude a
adquiriu por seus esforços, em existências sucessivas, despojando-se
pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a força que Deus faculta
ao homem de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem. XVIII.
É disposição natural em todos nós a de nos apercebermos muito menos dos
nossos defeitos, do que dos de outrem. Diz o Evangelho: “Vedes a palha
que está no olho do vosso próximo e não vedes a trave que está no
vosso.” (Cap. X, itens 9 e 10.) XIX. Se os médicos são malsucedidos,
tratando da maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem
tratarem da alma. Ora, não se achando o todo em bom estado, impossível é
que uma parte dele passe bem. O Espiritismo fornece a chave das
relações existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage
incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda para a Ciência.
Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta-lhe os
meios de às combater. Quando a Ciência levar em conta a ação do elemento
espiritual na economia, menos frequentes serão os seus maus êxitos.
Introdução 39 XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais
fazem de mal do que de bem. Essa sentença de Sócrates fere a grave
questão da predominância do mal na Terra, questão insolúvel sem o
conhecimento da pluralidade dos mundos e da destinação do planeta
terreno, habitado apenas por uma fra- ção mínima da Humanidade. Somente o
Espiritismo resolve essa questão, que se encontra explanada aqui
adiante, nos capítulos (II, III e IV). XXI. Ajuizado serás, não supondo
que sabes o que ignoras. Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de
que desconhecem até mesmo os primeiros termos. Platão completa esse
pensamento de Sócrates, dizendo: “Tentemos, primeiro, torná-los, se for
possível, mais honestos nas palavras; se não o forem, não nos
preocupemos com eles e não procuremos senão a verdade. Cuidemos de
instruir-nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem proceder os
espíritas com relação aos seus contraditores de boa ou má-fé. Revivesse
hoje Platão e acharia as coisas quase como no seu tempo e poderia usar
da mesma linguagem. Também Sócrates toparia criaturas que zombariam da
sua crença nos Espíritos e que o qualificariam de louco, assim como ao
seu discípulo Platão. Foi por haver professado esses princípios que
Sócrates se viu ridiculizado, depois acusado de impiedade e condenado a
beber cicuta. Tão certo é que, levantando contra si os interesses e os
preconceitos que elas ferem, as grandes verdades novas não se podem
firmar sem luta e sem fazer mártires.
capítulo I
Não vim destruir a lei
• As três revelações: Moisés, Cristo, Espiritismo
• Aliança da Ciência e da Religião
• Instruções dos Espíritos:
A nova era 1. Não penseis que eu tenha vindo destruir a lei ou os
profetas; não os vim destruir, mas cumpri-los: porquanto em verdade vos
digo que o céu e a Terra não passarão, sem que tudo o que se acha na lei
esteja perfeitamente cumprido, enquanto reste um único iota e um único
ponto. (Mateus, 5:17 e 18.)
Moisés
2. Na lei mosaica, há duas partes distintas: a Lei de Deus, promulgada
no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, decretada por Moisés. Uma é
invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se
modifica com o tempo. A Lei de Deus está formulada nos dez mandamentos
seguintes:
I. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, da casa da
servidão. Não tereis, diante de mim, outros deuses estrangeiros. Não
fareis imagem esculpida, nem figura alguma do que está em cima do céu,
nem embaixo na Terra, nem do que quer que esteja nas águas sob a terra.
Não os adorareis e não lhes prestareis culto soberano.4
4 N.E. de 1947: Allan Kardec cita a parte mais importante do primeiro
mandamento, e deixa de transcrever as seguintes frases: “...porque eu, o
Senhor vosso Deus, sou Deus zeloso, que puno a iniquidade dos pais nos
filhos, na terceira e na quarta gerações daqueles que me aborrecem, e
uso de misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os
meus mandamentos.” (Êxodo, 20:5 e 6.) Nas traduções feitas pelas Igrejas
católica e protestante, essa parte do mandamento foi truncada para
harmonizá-la com a doutrina da encarnação única da alma. Onde está “na
terceira e na quarta gerações”, conforme a tradução Brasileira da
Bíblia, a Vulgata Latina (in tertiam et quartam generationem), a
tradução de Zamenhof (en la tria kaj kvara generacioj), mudaram o texto
para “até a terceira e quarta gerações”.
II. Não pronunciareis em vão o nome do Senhor, vosso Deus.
III. Lembrai-vos de santificar o dia do sábado.
IV. Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará.
V. Não mateis.
VI. Não cometais adultério.
VII. Não roubeis.
VIII. Não presteis testemunho falso contra o vosso próximo.
IX. Não desejeis a mulher do vosso próximo.
X. Não cobiceis a casa do vosso próximo, nem o seu servo, nem a sua
serva, nem o seu boi, nem o seu asno, nem qualquer das coisas que lhe
pertençam.
É de todos os tempos e de todos os países essa lei e tem, por isso
mesmo, caráter divino. Todas as outras são leis que Moisés decretou,
obrigado que se via a conter, pelo temor, um povo de seu natural
turbulento e indisciplinado, no qual tinha ele de combater arraigados
abusos e preconceitos, adquiridos durante a escravidão do Egito. Para
imprimir autoridade às suas leis, houve de lhes atribuir origem divina,
conforme o fizeram todos os legisladores dos povos primitivos. A
autoridade do homem precisava apoiar-se na autoridade de Deus; mas só a
ideia de um Deus terrível podia impressionar criaturas ignorantes, nas
quais ainda pouco desenvolvidos se encontravam o senso moral e o
sentimento de uma justiça reta. É evidente que aquele que incluíra,
entre os seus mandamentos, este: “Não matareis; não causareis dano ao
vosso próximo”, não poderia contradizer-se, fazendo da exterminação um
dever. As leis moisaicas, propriamente ditas, revestiam, pois, um
caráter essencialmente transitório.
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Esses textos truncados que aparecem na tradução da Igreja Anglicana, na
Católica de Figueiredo, na Protestante de Almeida e outras, tornam
monstruosa a Justiça divina, pois que filhos, netos, bisnetos,
tetranetos inocentes teriam de ser castigados pelo pecado dos pais,
avós, bisavós, tetravós. Foi uma infeliz tentativa de acomodação da Lei à
vida única. O texto certo que, por mercê de Deus, já está reproduzido
pelas edições recentíssimas a que nos referimos — traduções Brasileira e
de Zamenhof —, que conferem com São Jerônimo, mostra que a Lei ensina
veladamente a reencarnação e as expiações e provas. Na primeira e na
segunda gerações, como contemporâneos de seus filhos e netos, o Espírito
culpado ainda não reencarnou, mas um pouco mais tarde — na terceira e
quarta gerações — já ele voltou e recebe as consequências de suas
faltas. Assim, o culpado mesmo, e não outrem, paga sua dívida. Logo,
tem-se de excluir a 1a e 2a gerações e expressar “na” 3a e 4a , como
realmente é o original. Achamos conveniente acrescentar aqui esta nota,
para facilitar a compreensão do estudioso que confronte a sua tradução
da Bíblia com a citação do Mestre.
O Cristo
3. Jesus não veio destruir a lei, isto é, a Lei de Deus; veio
cumpri-la, isto é, desenvolvê-la, dar-lhe o verdadeiro sentido e
adaptá-la ao grau de adiantamento dos homens. Por isso é que se nos
depara, nessa lei, o princípio dos deveres para com Deus e para com o
próximo, base da sua doutrina. Quanto às leis de Moisés, propriamente
ditas, Ele, ao contrário, as modificou profundamente, quer na
substância, quer na forma. Combatendo constantemente o abuso das
práticas exteriores e as falsas interpretações, por mais radical reforma
não podia fazê-las passar, do que as reduzindo a esta única prescrição:
“Amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo”, e
acrescentando: aí estão a lei toda e os profetas. Por estas palavras: “O
céu e a Terra não passarão sem que tudo esteja cumprido até o último
iota”, quis dizer Jesus ser necessário que a Lei de Deus tivesse
cumprimento integral, isto é, fosse praticada na Terra inteira, em toda a
sua pureza, com todas as suas ampliações e consequências. Efetivamente,
de que serviria haver sido promulgada aquela lei, se ela devesse
constituir privilégio de alguns homens, ou, ao menos, de um único povo?
Sendo filhos de Deus todos os homens, todos, sem distinção nenhuma, são
objeto da mesma solicitude. 4. O papel de Jesus não foi o de um simples
legislador moralista, tendo por exclusiva autoridade a sua palavra.
Cabia-lhe dar cumprimento às profecias que lhe anunciaram o advento; a
autoridade lhe vinha da natureza excepcional do seu Espírito e da sua
missão divina. Ele viera ensinar aos homens que a verdadeira vida não é a
que transcorre na Terra, e sim a que é vivida no Reino dos Céus; viera
ensinar-lhes o caminho que a esse reino conduz, os meios de eles se
reconciliarem com Deus e de pressentirem esses meios na marcha das
coisas por vir, para a realização dos destinos humanos. Entretanto, não
disse tudo, limitando-se, respeito a muitos pontos, a lançar o gérmen de
verdades que, segundo Ele próprio o declarou, ainda não podiam ser
compreendidas. Falou de tudo, mas em termos mais ou menos implícitos.
Para ser apreendido o sentido oculto de algumas palavras suas, mister se
fazia Capítulo I 44 que novas ideias e novos conhecimentos lhes
trouxessem a chave indispensável, ideias que, porém, não podiam surgir
antes que o espírito humano houvesse alcançado um certo grau de
madureza. A Ciência tinha de contribuir poderosamente para a eclosão e o
desenvolvimento de tais ideias. Importava, pois, dar à Ciência tempo
para progredir.
O Espiritismo
5. O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio
de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e
as suas relações com o mundo corpóreo. Ele no-lo mostra, não mais como
coisa sobrenatural, porém, ao contrário, como uma das forças vivas e sem
cessar atuantes da Natureza, como a fonte de uma imensidade de
fenômenos até hoje incompreendidos e, por isso, relegados para o domínio
do fantástico e do maravilhoso. É a essas relações que o Cristo alude
em muitas circunstâncias e daí vem que muito do que Ele disse permaneceu
ininteligível ou falsamente interpretado. O Espiritismo é a chave com o
auxílio da qual tudo se explica de modo fácil. 6. A lei do Antigo
Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento
tem-na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da Lei de Deus,
mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do
ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do
Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão
inumerável de intermediários. É, de certa maneira, um ser coletivo,
formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais
traz o tributo de suas luzes aos homens, para lhes tornar conhecido esse
mundo e a sorte que os espera. 7. Assim como o Cristo disse: “Não vim
destruir a lei, porém cumpri-la”, também o Espiritismo diz: “Não venho
destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução.” Nada ensina em contrário
ao que ensinou o Cristo; mas desenvolve, completa e explica, em termos
claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem
cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a
realização das coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside,
conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o
Reino de Deus na Terra.
Aliança da Ciência e da Religião
8. A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana:
uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral.
Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem
contradizer-se. Se fossem a negação uma da outra, uma necessariamente
estaria em erro e a outra com a verdade, porquanto Deus não pode
pretender a destruição de sua própria obra. A incompatibilidade que se
julgou existir entre essas duas ordens de ideias provém apenas de uma
observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, de um lado e de
outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância.
São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser
completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes
desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser
exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual
e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis
da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e
marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais
desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque
estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a
irresistível lógica dos fatos. A Ciência e a Religião não puderam, até
hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de
vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o
vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço
de união está no conhecimento das leis que regem o universo espiritual e
suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que
regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez
comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé
dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o
materialismo. Mas nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até
serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam
resistir-lhe, em vez de o acompanharem. É toda uma revolução que neste
momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou
mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar
uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as
consequências: acarretará para as relações sociais inevitáveis Capítulo I
46 modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas
estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é Lei de
Deus.
Instruções dos Espíritos
A nova era
9. Deus é único e Moisés é o Espírito que Ele enviou em missão para
torná-lo conhecido não só dos hebreus, como também dos povos pagãos. O
povo hebreu foi o instrumento de que se serviu Deus para se revelar por
Moisés e pelos profetas, e as vicissitudes por que passou esse povo
destinavam-se a chamar a atenção geral e a fazer cair o véu que ocultava
aos homens a divindade. Os mandamentos de Deus, dados por intermédio de
Moisés, contêm o gérmen da mais ampla moral cristã. Os comentários da
Bíblia, porém, restringiam-lhe o sentido, porque, praticada em toda a
sua pureza, não na teriam então compreendido. Mas nem por isso os dez
mandamentos de Deus deixavam de ser um como frontispício brilhante, qual
farol destinado a clarear a estrada que a Humanidade tinha de
percorrer. A moral que Moisés ensinou era apropriada ao estado de
adiantamento em que se encontravam os povos que ela se propunha
regenerar, e esses povos, semisselvagens quanto ao aperfeiçoamento da
alma, não teriam compreendido que se pudesse adorar a Deus de outro modo
que não por meio de holocaustos, nem que se devesse perdoar a um
inimigo. Notável do ponto de vista da matéria e mesmo do das Artes e das
Ciências, a inteligência deles muito atrasada se achava em moralidade e
não se houvera convertido sob o império de uma religião inteiramente
espiritual. Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a
que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam
aos sentidos, do mesmo passo que a ideia de Deus lhes falava ao
espírito. O Cristo foi o iniciador da mais pura, da mais sublime moral,
da moral evangélico-cristã, que há de renovar o mundo, aproximar os
homens e torná-los irmãos; que há de fazer brotar de todos os corações a
caridade e o amor do próximo e estabelecer entre os humanos uma
solidariedade comum; de uma perfeita moral, enfim, que há de transformar
a Terra, tornando-a morada de Espíritos superiores aos que hoje a
habitam. É a lei do Não vim destruir a lei 47 progresso, a que a
Natureza está submetida, que se cumpre, e o Espiritismo é a alavanca de
que Deus se utiliza para fazer que a Humanidade avance. São chegados os
tempos em que se hão de desenvolver as ideias, para que se realizem os
progressos que estão nos desígnios de Deus. Têm elas de seguir a mesma
rota que percorreram as ideias de liberdade, suas precursoras. Não se
acredite, porém, que esse desenvolvimento se efetue sem lutas. Não;
aquelas ideias precisam, para atingirem a maturidade, de abalos e
discussões, a fim de que atraiam a atenção das massas. Uma vez isso
conseguido, a beleza e a santidade da moral tocarão os espíritos, que
então abraçarão uma ciência que lhes dá a chave da vida futura e
descerra as portas da felicidade eterna. Moisés abriu o caminho; Jesus
continuou a obra; o Espiritismo a concluirá. – Um Espírito israelita.
(Mulhouse, 1861.) 10. Um dia, Deus, em sua inesgotável caridade,
permitiu que o homem visse a verdade varar as trevas. Esse dia foi o do
advento do Cristo. Depois da luz viva, voltaram as trevas. Após
alternativas de verdade e obscuridade, o mundo novamente se perdia.
Então, semelhantemente aos profetas do Antigo Testamento, os Espíritos
se puseram a falar e a vos advertir. O mundo está abalado em seus
fundamentos; reboará o trovão. Sede firmes! O Espiritismo é de ordem
divina, pois que se assenta nas próprias Leis da Natureza, e estai
certos de que tudo o que é de ordem divina tem grande e útil objetivo. O
vosso mundo se perdia; a Ciência, desenvolvida à custa do que é de
ordem moral, mas conduzindo-vos ao bem-estar material, redundava em
proveito do espírito das trevas. Como sabeis, cristãos, o coração e o
amor têm de caminhar unidos à Ciência. O reino do Cristo, ah! passados
que são dezoito séculos e apesar do sangue de tantos mártires, ainda não
veio. Cristãos, voltai para o Mestre, que vos quer salvar. Tudo é fácil
àquele que crê e ama; o amor o enche de inefável alegria. Sim, meus
filhos, o mundo está abalado; os bons Espíritos vo-lo dizem sobejamente;
dobrai-vos à rajada que anuncia a tempestade, a fim de não serdes
derribados, isto é, preparai-vos e não imiteis as virgens loucas, que
foram apanhadas desprevenidas à chegada do esposo. A revolução que se
apresta é antes moral do que material. Os grandes Espíritos, mensageiros
divinos, sopram a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e
ardorosos, façais ouvir a vossa voz humilde, porquanto sois o grão de
areia; mas sem grãos de areia não existiriam as montanhas. Assim,
Capítulo I 48 pois, que estas palavras — “Somos pequenos” — careçam para
vós de significação. A cada um a sua missão, a cada um o seu trabalho.
Não constrói a formiga o edifício de sua república e imperceptíveis
animálculos não elevam continentes? Começou a nova cruzada. Apóstolos da
paz universal, que não de uma guerra, modernos São Bernardos, olhai e
marchai para frente; a lei dos mundos é a do progresso. – Fénelon.
(Poitiers, 1861.) 11. Santo Agostinho é um dos maiores vulgarizadores do
Espiritismo. Manifesta-se quase por toda parte. A razão disso
encontramo-la na vida desse grande filósofo cristão. Pertence ele à
vigorosa falange dos Pais da Igreja, aos quais deve a cristandade seus
mais sólidos esteios. Como vários outros, foi arrancado ao paganismo, ou
melhor, à impiedade mais profunda, pelo fulgor da verdade. Quando,
entregue aos maiores excessos, sentiu em sua alma aquela singular
vibração que o fez voltar a si e compreender que a felicidade estava
alhures, que não nos prazeres enervantes e fugitivos; quando, afinal, no
seu caminho de Damasco, também lhe foi dado ouvir a santa voz a
clamar-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, exclamou: “Meu Deus!
Meu Deus! perdoai-me, creio, sou cristão!” E desde então tornou-se um
dos mais fortes sustentáculos do Evangelho. Podem ler-se, nas notáveis
confissões que esse eminente Espírito deixou, as características e, ao
mesmo tempo, proféticas palavras que proferiu, depois da morte de Santa
Mônica: Estou convencido de que minha mãe me virá visitar e dar
conselhos, revelando-me o que nos espera na vida futura. Que ensinamento
nessas palavras e que retumbante previsão da doutrina porvindoura! Essa
a razão por que hoje, vendo chegada a hora de divulgar-se a verdade que
ele outrora pressentira, se constituiu seu ardoroso disseminador e, por
assim dizer, se multiplica para responder a todos os que o chamam. –
Erasto, discípulo de Paulo. (Paris, 1863.)
Nota – Dar-se-á venha Santo Agostinho demolir o que edificou?
Certamente que não. Como tantos outros, ele vê com os olhos do espírito o
que não via como homem. Liberta, sua alma entrevê claridades novas,
compreende o que antes não compreendia. Novas ideias lhe revelaram o
sentido verdadeiro de algumas sentenças. Na Terra, apreciava as coisas
de acordo com os conhecimentos que possuía; desde que, porém, uma nova
luz lhe brilhou, pôde apreciá-las mais judiciosamente. Assim é que teve
de abandonar a crença que alimentara nos Espíritos íncubos e súcubos e o
anátema que lançara contra a teoria dos antípodas. Agora que o Não vim
destruir a lei 49 Cristianismo se lhe mostra em toda a pureza, pode ele,
sobre alguns pontos, pensar de modo diverso do que pensava quando vivo,
sem deixar de ser um apóstolo cristão. Pode, sem renegar a sua fé,
constituir-se disseminador do Espiritismo, porque vê cumprir-se o que
fora predito. Proclamando-o, na atualidade, outra coisa não faz senão
conduzir-nos a uma interpretação mais acertada e lógica dos textos. O
mesmo ocorre com outros Espíritos que se encontram em posição análoga.
capítulo II
Meu Reino não é deste mundo
• A vida futura
• A realeza de Jesus
• O ponto de vista
• Instruções dos Espíritos: Uma realeza terrestre
1.Pilatos, tendo entrado de novo no palácio e feito vir Jesus à sua
presença, perguntou-lhe: “És o rei dos judeus?” — Respondeu-lhe Jesus:
“Meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha
gente houvera combatido para impedir que eu caísse nas mãos dos judeus;
mas o meu reino ainda não é aqui.” Disse-lhe então Pilatos: “És, pois,
rei?” — Jesus lhe respondeu: “Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a
este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à
verdade escuta a minha voz.” (João, 18:33, 36 e 37.)
A vida futura
2. Por essas palavras, Jesus claramente se refere à vida futura, que
Ele apresenta, em todas as circunstâncias, como a meta que a Humanidade
irá ter e como devendo constituir objeto das maiores preocupações do
homem na Terra. Todas as suas máximas se reportam a esse grande
princípio. Com efeito, sem a vida futura, nenhuma razão de ser teria a
maior parte dos seus preceitos morais, donde vem que os que não creem na
vida futura, imaginando que Ele apenas falava na vida presente, não os
compreendem, ou os consideram pueris. Esse dogma pode, portanto, ser
tido como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos
primeiros lugares à frente desta obra. É que ele tem de ser o ponto de
mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e
se mostra de acordo com a Justiça de Deus.
3. Apenas ideias muito imprecisas tinham os judeus acerca da vida
futura. Acreditavam nos anjos, considerando-os seres privilegiados da
Criação; não sabiam, porém, que os homens podem um dia tornar-se anjos e
partilhar da felicidade destes. Segundo eles, a observância das Leis de
Deus era recompensada com os bens terrenos, com a supremacia da nação a
que pertenciam, com vitórias sobre os seus inimigos. As calamidades
públicas e as derrotas eram o castigo da desobediência àquelas leis.
Moisés não pudera dizer mais do que isso a um povo pastor e ignorante,
que precisava ser tocado, antes de tudo, pelas coisas deste mundo. Mais
tarde, Jesus lhe revelou que há outro mundo, onde a Justiça de Deus
segue o seu curso. É esse o mundo que Ele promete aos que cumprem os
mandamentos de Deus e onde os bons acharão sua recompensa. Aí o seu
reino; lá é que Ele se encontra na sua glória e para onde voltaria
quando deixasse a Terra. Jesus, porém, conformando seu ensino com o
estado dos homens de sua época, não julgou conveniente dar-lhes luz
completa, percebendo que eles ficariam deslumbrados, visto que não a
compreenderiam. Limitou-se a, de certo modo, apresentar a vida futura
apenas como um princípio, como uma Lei da Natureza a cuja ação ninguém
pode fugir. Todo cristão, pois, necessariamente crê na vida futura; mas a
ideia que muitos fazem dela é ainda vaga, incompleta e, por isso mesmo,
falsa em diversos pontos. Para grande número de pessoas, não há, a tal
respeito, mais do que uma crença, balda de certeza absoluta, donde as
dúvidas e mesmo a incredulidade. O Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o
ensino do Cristo, fazendo-o quando os homens já se mostram maduros
bastante para apreender a verdade. Com o Espiritismo, a vida futura
deixa de ser simples artigo de fé, mera hipótese; torna-se uma realidade
material, que os fatos demonstram, porquanto são testemunhas oculares
os que a descrevem nas suas fases todas e em todas as suas peripécias, e
de tal sorte que, além de impossibilitarem qualquer dúvida a esse
propósito, facultam à mais vulgar inteligência a possibilidade de
imaginá-la sob seu verdadeiro aspecto, como toda gente imagina um país
cuja pormenorizada descrição leia. Ora, a descrição da vida futura é tão
circunstanciadamente feita, são tão racionais as condições, ditosas ou
infortunadas, da existência dos que lá se encontram, quais eles próprios
pintam, que cada um, aqui, a seu mau grado, reconhece e declara a si
mesmo que não pode ser de outra forma, porquanto, assim sendo, patente
fica a verdadeira Justiça de Deus.
A realeza de Jesus
4. Que não é deste mundo o reino de Jesus todos compreendem, mas também
na Terra não terá Ele uma realeza? Nem sempre o título de rei implica o
exercício do poder temporal. Dá-se esse título, por unânime consenso, a
todo aquele que, pelo seu gênio, ascende à primeira plana numa ordem de
ideias quaisquer, a todo aquele que domina o seu século e influi sobre o
progresso da Humanidade. É nesse sentido que se costuma dizer: o rei ou
príncipe dos filósofos, dos artistas, dos poetas, dos escritores etc.
Essa realeza, oriunda do mérito pessoal, consagrada pela posteridade,
não revela, muitas vezes, preponderância bem maior do que a que cinge a
coroa real? Imperecível é a primeira, enquanto esta outra é joguete das
vicissitudes; as gerações que se sucedem à primeira sempre a bendizem,
ao passo que, por vezes, amaldiçoam a outra. Esta, a terrestre, acaba
com a vida; a realeza moral se prolonga e mantém o seu poder, governa,
sobretudo, após a morte. Sob esse aspecto não é Jesus mais poderoso rei
do que os potentados da Terra? Razão, pois, lhe assistia para dizer a
Pilatos, conforme disse: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo.”
O ponto de vista
5. A ideia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona
inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes consequências sobre a
moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o
qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento,
na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples
passagem, breve estada num país ingrato. As vicissitudes e tribulações
dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por
sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso.
À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se
abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o
exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. Sabendo temporária e
não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção
presta às preocupações da vida, resultando-lhe daí uma calma de espírito
que tira àquela muito do seu amargor. Pelo simples fato de duvidar da
vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida
terrestre. Sem nenhuma certeza quanto Capítulo II 54 ao porvir, dá tudo
ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra,
torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não
há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram
reais. A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano,
uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja
vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que
lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele,
desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes.
Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar
mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o
rodeia. O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande
importância adquire aos seus olhos. Àquele que se acha no interior de
uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas
posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, e logo
bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. É o que sucede ao que encara
a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto
quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. Percebe então
que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um
montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e
lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem
para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco
tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos
está sempre em razão inversa da fé na vida futura. 6. Se toda a gente
pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto
ninguém mais se ocuparia com as coisas terrenas. Não; o homem,
instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por
pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o
melhor ou o menos mal que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com
um espinho debaixo de sua mão, não a retire, para se não picar. Ora, o
desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo
instinto do progresso e da conservação, que está nas Leis da Natureza.
Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo,
desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na
Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao
presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos
seus insucessos, pensando no destino que o aguarda. Meu Reino não é
deste mundo 55 Deus, conseguintemente, não condena os gozos terrenos;
condena, sim, o abuso desses gozos em detrimento das coisas da alma.
Contra tais abusos é que se premunem os que a si próprios aplicam estas
palavras de Jesus: Meu reino não é deste mundo.
Aquele que se identifica com a vida futura assemelha-se ao rico que
perde sem emoção uma pequena soma. Aquele cujos pensamentos se
concentram na vida terrestre assemelha-se ao pobre que perde tudo o que
possui e se desespera. 7. O Espiritismo dilata o pensamento e lhe rasga
horizontes novos. Em vez dessa visão, acanhada e mesquinha, que o
concentra na vida atual, que faz do instante que vivemos na Terra único e
frágil eixo do porvir eterno, ele, o Espiritismo, mostra que essa vida
não passa de um elo no harmonioso e magnífico conjunto da obra do
Criador. Mostra a solidariedade que conjuga todas as existências de um
mesmo ser, todos os seres de um mesmo mundo e os seres de todos os
mundos. Faculta assim uma base e uma razão de ser à fraternidade
universal, enquanto a doutrina da criação da alma por ocasião do
nascimento de cada corpo torna estranhos uns aos outros todos os seres.
Essa solidariedade entre as partes de um mesmo todo explica o que
inexplicável se apresenta, desde que se considere apenas um ponto. Esse
conjunto, ao tempo do Cristo, os homens não o teriam podido compreender,
motivo por que Ele reservou para outros tempos o fazê-lo conhecido.
Instruções dos Espíritos
Uma realeza terrestre
8. Quem melhor do que eu pode compreender a verdade destas palavras de
nosso Senhor: “O meu reino não é deste mundo”? O orgulho me perdeu na
Terra. Quem, pois, compreenderia o nenhum valor dos reinos da Terra, se
eu o não compreendia? Que trouxe eu comigo da minha realeza terrena?
Nada, absolutamente nada. E, como que para tornar mais terrível a lição,
ela nem sequer me acompanhou até o túmulo! Rainha entre os homens, como
rainha julguei que penetrasse no Reino dos Céus! Que desilusão! Que
humilhação, quando, em vez de ser recebida aqui qual soberana, vi acima
de mim, mas muito acima, homens que eu julgava Capítulo II 56
insignificantes e aos quais desprezava, por não terem sangue nobre! Oh!
como então compreendi a esterilidade das honras e grandezas que com
tanta avidez se requestam na Terra! Para se granjear um lugar neste
reino, são necessárias a abnegação, a humildade, a caridade em toda a
sua celeste prática, a benevolência para com todos. Não se vos pergunta o
que fostes, nem que posição ocupastes, mas que bem fizestes, quantas
lágrimas enxugastes. Ó Jesus, Tu o disseste, teu reino não é deste
mundo, porque é preciso sofrer para chegar ao céu, de onde os degraus de
um trono a ninguém aproximam. A ele só conduzem as veredas mais penosas
da vida. Procurai-lhe, pois, o caminho, através das urzes e dos
espinhos, não por entre as flores. Correm os homens por alcançar os bens
terrestres, como se os houvessem de guardar para sempre. Aqui, porém,
todas as ilusões se somem. Cedo se apercebem eles de que apenas
apanharam uma sombra e desprezaram os únicos bens reais e duradouros, os
únicos que lhes aproveitam na morada celeste, os únicos que lhes podem
facultar acesso a esta. Compadecei-vos dos que não ganharam o Reino dos
Céus; ajudai-os com as vossas preces, porquanto a prece aproxima do
Altíssimo o homem; é o traço de união entre o céu e a Terra: não o
esqueçais. – Uma Rainha de França. (Havre, 1863.)
capítulo III
Há muitas moradas na casa de meu Pai
• Diferentes estados da alma na erraticidade
• Diferentes categorias de mundos habitados
• Destinação da Terra. Causas das misérias humanas
• Instruções dos Espíritos: Mundos inferiores e mundos superiores –
Mundos de expiações e de provas – Mundos regeneradores – Progressão dos
mundos
1Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Há
muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já Eu vo-lo teria
dito, pois me vou para vos preparar o lugar. Depois que me tenha ido e
que vos houver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a
fim de que onde Eu estiver, também vós aí estejais. (João, 14:1 a 3.)
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